Max Weber: entre racionalidade e irracionalidade



MAX WEBER: ENTRE RACIONALIDADE E IRRACIONALIDADE

O artigo que se segue deverá expor parte de um trabalho que vem sendo realizado ao longo dos quatro últimos anos e que terá a oportunidade de ser devidamente apresentado na forma de uma dissertação de mestrado. O que será aqui discutido consta, sobretudo, em um tópico específico de um dos capítulos da dissertação que está a ser produzida. Nela o tema centra abordado constitui-se através de questões colocadas diretamente pelo domínio da teoria da História e trata, de maneira geral, de como a obra de Weber pode responder a perguntas ainda pertinentes à teoria do conhecimento histórico e tenta dela subtrair, assim, um conjunto de elementos e posições metodológicas a que o historiador deva se ater ao fazer história; aqui, entretanto, nossas ambições haverão de ser menores, mas não injustificáveis. Limitaremos-nos ao domínio específico da causalidade histórica, concentrando nossos esforços em um de seus aspectos essenciais – a retrospecção - e evidenciando o modo como a constituição de uma perspectiva histórica envolve uma reflexão que vai da racionalidade à irracionalidade do devir histórico.

Em todo o trabalho de dissertação, a causalidade histórica é o tema principal, e o modo como Weber encarava a racionalidade e a irracionalidade na história é seu fio condutor. O maior problema prático de um trabalho com essa proposta é lidar com a enorme bibliografia produzida a respeito: quando o assunto então é racionalidade na obra de Weber, ela é exaustiva. O mesmo, entretanto, não acontece com o tema da irracionalidade. Este é um tema que foi por muito tempo ignorado nos estudos sobre Weber e que apenas nas últimas duas décadas vem sendo sistematicamente explorado. Essas novas leituras de Weber que estão a ser produzidas marcam um novo contexto de inquirição de sua obra. Como aconteceu com tantos outros clássicos, o legado de Weber foi vitimado por rótulos interpretativos, isto é, teve o acesso à magnitude de sua expressão limitado por interpretações já concluídas a seu respeito. É o que defende, por exemplo, Basit Bilal Koshul em seu livro "The Postmodern Significance of Max Weber's Legacy".[1] Alan Sica, por sua vez, defende que apenas quando o interesse por Weber deixou de ser um interesse pela "história de Weber" ou pela "história da formulação de suas idéias" e passou a ser um interesse pautado a resolução de problemas colocados pelo presente, é que se possibilitou esse novo ciclo de reflexão sobre o pensamento de Weber:

Though arguments which began in the 1960s about 'presentism' versus 'historicism', and the related anguish caused by anachronistic readings, are commonly known to intellectual historians, specialists in social theory seem not yet enough acquainted with them to have changed their way of doing business. More often the question is 'what can Weber teach us today' rather than what was Weber doing when he did it, and what did he do it that way?" (SICA, 2004: pág. 21)

Aqui, portanto, seguiremos a tendência indicada por Sica. Ao expor um aspecto da causalidade histórica tal qual Weber a concebe, aspecto este que está imbuído com uma crítica ao racionalismo iluminista, deve-se tomar o cuidado necessário para não apresenta-lo como um irracionalista. Vejamos os motivos dessa precaução.

Desde a morte de Weber, em 1920, poder-se-ia lotar bibliotecas inteiras com leituras e interpretações de sua obra: o que se por um lado dificulta seu manuseio, por outro o enriquece.Muitas delas mantiveram certa unidade no diálogo que travavam entre si, tendo recentemente esta tal unidade sido rompida e reavaliada. Grandes leitores de Weber, como Winckelmann, Mommsen, Schuluchter, tomaram sua obra como produto final e, por isso, revisado, do Iluminismo: para esses autores, o essencial do legado teórico de Weber reside na originalidade e capacidade de síntese com que Weber nadou sobre as águas de problemas fundamentalmente colocados pelo Iluminismo filosófico. Tais autores são, pois, centrais para a compreensão de como Weber reverteu esses temas em estudos epistemológicos e culturais para as ciências Humanas.

Uma linhagem mais recente da escola weberiana, aborda a obra de Weber colocando-se em outra perspectiva. Ela se compõe sobretudo de autores como Fritz Ringer, Sam Whimster, Koshul, Alan Sica e alguns outros os quais não pudemos ainda ter um acesso direto. Estes autores, entretanto, buscam compreender Weber a partir daquilo que permanece atual de sua obra em nosso contexto. Seu enfoque está menos ligado à história das idéias de Weber, do que à significação que estas idéias têm para as disciplinas culturais ainda hoje. É claro que essas mais recentes compreensões sobre Weber contaram com paulatinas re-interpretações e gradativas mudanças, sendo intermediada por autores como W. Hennis[2] e F. Tenbruck. Diferentemente daquela primeira corrente de interpretação, que aprecia Weber com um "filho tardio" do Iluminismo, essa segunda corrente avalia aspectos de sua obra que o colocam à frente do Iluminismo, no sentido específico de que Weber supera as dicotomias segundo as quais o Iluminismo se construiu e nas quais esteve preso.

Termos classificatórios como "Iluminista" ou "Pós-Iluminista" não poderão desempenhar aqui nenhuma função importante. Eles apenas situam algumas concepções. Entende-se aqui por "Iluminismo" apenas o conteúdo geral das concepções racionalistas desenvolvidas sobretudo a partir do século XVIII, e que contam com dicotomias e oposições capitais de valor (sujeito/objeto, fato/valor, ciência/religião, idéia/matéria) como o centro de sua produção. Sabemos do profundo impacto do iluminismo na cultura ocidental, e é claro que um intelectual da envergadura de Weber, situado tão próximo desse movimento como estava, não podia se desvencilhar das questões por ele colocadas. Não se trata, portanto, de polemizar a respeito de um Weber iluminista ou um Weber não-iluminista, mas de mostrar como sua obra está imbuída de uma crítica ao iluminismo que lhe permitiu a configuração de um método sólido ainda para os dias de hoje, quando o iluminismo e suas "razões" [3]perderam força.

Diferentes autores trataram do modo como Weber superou essas dicotomias através de dualidades relacionais. Fritz Ringer tratou da dicotomia entre sujeito e objeto, J. C. Alexander da entre idealismo e materialismo, J. Ciaffa da entre fato e valor e Koshul, por sua vez, mostra como estas dicotomias se desenrolam na obra de Weber numa dicotomia fundamental que se estabeleceu entra ciência e religião, entre racionalismo científico e racionalismo religioso, bem como Weber a transpõe na composição de seu método. O motivo fundamental que leva Weber a uma superação das dicotomias e oposições de valor iluministas consiste no fato de que, para Weber, em absoluto, não existem oposições. Seu senso histórico foi agudo o suficiente para perceber que o tempo e sua passagem pelas teias da cultura desvanecem e degradam todas as oposições em gradações. Weber carregou esse emblema em seu discurso durante toda a maturidade intelectual (período posterior à moléstia nervosa que o afastou por uns tempos de sua atividade). Se foi observando que a ciência moderna surgira de elementos das doutrinas e éticas religiosas, ou que a organização do estado Russo pós-revolucionário mantinha práticas e estruturas do capitalismo ao qual se "opunha", Weber deu claros indícios a um leitor atento de que ele havia percebido que aquilo que a um determinado presente aparecia como "oposto" se mostrava no futuro apenas como um matiz "diferente" da mesma escala gradativa.

Agora, diremos brevemente sobre o modo como o tema aqui tratado se encaixa no restante do trabalho. Nossa missão será apresentar um aspecto essencial da causalidade histórica em função dela ter que necessariamente expressar-se na composição de um sentido para a perspectiva histórica, composição esta que se dá sempre de uma maneira retrospectiva, isto é, parte de um presente em devir em direção a um passado "intensivamente infinito", de complexa delimitação. Esta parte do trabalho quer dar conta de pensar o âmbito da causalidade histórica do ponto de vista de sua relação com o modo como o sujeito cognoscente, o historiador, pode interferir naquilo quer seria a trama "real" do passado.

Era comum aos historiadores anteriores a Weber (e infelizmente ainda hoje) ao voltarem-se ao passado esquecerem-se de dois elementos centrais que compõe essa sua ação: esquece-se, em primeiro lugar, que o presente do qual partem, munidos com seus conceitos em direção ao passado, não parou de passar enquanto proferem seus juízos e comparações (conceitual), e, por isso, acaba agindo como se ele pudesse separar-se da "realidade atualmente vivida" e atingir assim um ponto imóvel do passado. A segunda negligência, conseqüência desta primeira, é que qualquer fenômeno histórico, na medida em que só vem a ser conhecido através das luzes que lhe são lançadas por um presente que é sua continuação, tem necessariamente que adquirir sentidos e significados distintos.

O êxito de Weber em oferecer respostas a questões desta natureza consistiu em ter conseguido incorporar criticamente elementos das tendências filosóficas irracionalistas, críticas do Iluminismo (Schopenhauer e Nietzsche, principalmente), em seu projeto claramente racional. Por isso, apresentaremos aqui duas tendências filosóficas que estavam dispostas e em luta nos tempos de Weber e a partir delas situarei este último naquilo que ambas tinha de significativo para o modo como abordou a causalidade. A primeira tem Descartes como representante típico e a segunda Schopenhauer. A primeira coloca ênfase na influência que a esfera da consciência, da alma, da subjetividade do pensamento do homem exerce sobre a causalidade em geral; a segunda, por sua vez, para a explicação da causalidade e da ação humana, revela a presença de uma esfera inconsciente, irracional, que de modo algum foi rejeitada por Weber. Fazendo isso, acabaremos por mostrar, indiretamente, que se Weber não pode ser classificado como um irracionalista, tão pouco pode ele ser tido como um racionalista puro: mostraremos, pois, que ele não é nem um e nem outro, mas que movimenta-se numa via de mão dupla entre racionalidade e irracionalidade, retificando uma pela outra.

O pressuposto básico de qualquer teoria da causalidade histórica é que, seja lá qual dos tantos possíveis conceitos de História que se tenha em conta, ela diz respeito, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, às ações humanas ou, mais exatamente, a um padrão explicativo dessas mesmas ações que tem por base o fato de todas elas estarem co-determinadas historicamente e, por outro lado, pelo fato da própria História ser um fruto abstrato das mesmas e de seus conflitos. A interação entre os sentidos dispostos historicamente nas culturas e o sentido executado por um agente em questão é o paradigma básico para a compreensão interpretativa do evento ou ação selecionados.

O que importa nessa parte é mostra como o historiador, ao mover retrospectivamente sua atenção à infinitude do passado e nele fixar uma perspectiva de abordagem, está a empreender nele um sentido, uma configuração que determina o que é essencial e o que não o é, tanto como o que é acidental e supérfluo para aquela série de casas que culminaram em dado evento. Haverá de ser mostrado como o agente histórico, objeto do historiador, executa um sentido do qual não toma, não pode tomar consciência por inteiro no momento de sua ação. Esse sentido, veremos, pode ser encontrado e desvelado apenas retrospectivamente, por um intelecto situado posteriormente à execução do ato. É por isso que definitivamente não concordamos em chamar a metodologia de Weber de intencionista. O rastreamento das intenções dos agentes, a configuração de um quadro conceitual, ideal-típico e, como tal, hipotético, que represente as intenções do agente, serve apenas como meio heurístico de perceber elementos que para aquele agente podiam ser obscuros: tendências irracionais, afetos, paixões, acasos e infortúnios de toda espécie – enfim, elementos que, durante a ação, forneciam-na algo de imprevisível e indeterminado.

Duas serão as premissas desse debate. A primeira consiste na pressuposição básica de que a ciência histórica, ao lidar com o agir humano, é dependente de uma teoria da ação. Esta tem o papel de uma categoria imprescindível para a teoria da história, de tal modo que, mesmo quando esta última parece ignorá-la, ela se faz presente, mesmo que de uma maneira não consciente pra o sujeito cognoscente, o que, por certo, acabará por trazer-lhe problemas à sua fundamentação. A segunda premissa, que deriva da primeira, consiste no fato de que o historiador, para lançar mão desses recursos interpretativos, tem de prestar contas a ele e a seus colegas, uma vez que também a sua ação ao fazer história e ao fazer ciência, carrega um sentido e um significado do qual ele, imediatamente, não pode dar-se conta ou dele estar consciente; assim, o historiador, caso queira galgar uma posição no corredor das ciências, tem de se impor constantemente a questão que pergunta pelo valor do trabalho historiográfico que ele está a produzir. Desse modo, pensar a teoria da ação no domínio da teoria da História é também pensar radicalmente sobre a ação do historiador ao fazer história, ao designar seu objeto e oferecer elementos que possibilitem sua compreensão. A questão que abarca o caráter da ação humana, que pode ser apreciada tanto pelo viés da necessidade quanto pelo viés da liberdade, está diretamente ligada à maneira com a qual a produção historiográfica apresenta os nexos de causalidade.

Esses dois tipos de referência causal à ação humana serão mais bem esclarecidos ao longo desse tópico. A maneira mais geral com que se apresentam consiste em se considerar ou não se considerar a individualidade criativa do agir humano como elemento perturbador da previsibilidade de suas ações. Do ponto de vista da necessidade, o homem sequer tem a chance de mudar seu destino uma vez que sua ação é muito mais determinada por um montante infindo de causas contingentes do que pelas intenções do agente; do ponto de vista da liberdade, entretanto, há um apelo à outra apreciação que constata no homem e em seu agir, um elemento que pode indeterminar tudo o que é racionalmente previsível (previsível segundo regras), de modo então que a intencionalidade criativa presente no agir individual, seu "livre-arbítrio" e capacidade e escolha, configurem um quadro de indeterminação causal para os fenômenos humanos e culturais.

Tais problemas são freqüentemente retomados nos textos metodológicos de Weber e, aqui, para melhor delinear seu posicionamento, faremos uma comparação com dois modos distintos de se ter por critério o valor de alguma decisão intencional quando se refere a uma determinada ação. A apresentação desses dois pontos de vista tem dois objetivos básicos: o primeiro é enfatizar e apresentar como o significado criativo das ações humanas gera um problema complexo para a filosofia da História, qual seja, se tal significado criativo haveria de se opor fundamentalmente à causalidade que está por trás do devir da natureza. O segundo objetivo é situar Weber entre duas tendências claramente distintas: para com isso mostrar que Weber não é um racionalista puro e que suas idéias respondem às chamadas "tendências irracionalistas" da história do pensamento e das idéias.

Assim, devo considerar duas correntes teóricas da ação que aqui divido, repito, segundo o critério que pondera sobre o valor da atribuição causal imputada a uma decisão que se refere a uma determinada ação. A primeira delas tem Descartes como representante típico, cuja teoria, como veremos, ao atribuir a qualidade de imediaticidade ao pensamento, atribuiu sub-repticiamente um exagerado peso causal à decisão que acompanha a ação; a outra corrente, por sua vez, tem Schopenhauer como representante típico: ao separar a esfera do intelecto da esfera da vontade, e subordinar o primeiro à segunda, abriu uma nova fonte de indagação para a teoria da ação. Aos moldes dessa corrente, as intenções conscientes e a decisão racional, exercem menos pressão à realização da ação do que o inconsciente e irracional da vontade, isto é, uma esfera impulsiva que independe do entendimento e da razão.

Deve ficar claro que o interesse aqui não é vincular Weber a uma tradição iniciada por Schopenhauer. É por pura arbitrariedade que às vezes classificamos autores segundo tradições e concepções que permanecem na história do pensamento, mas não sem o prejuízo de, no mais das vezes, acabar ignorando o que aquele autor tem de específico e original. Vejamos, pois, ambas as correntes para posteriormente observarmos como a postura metodológica de Weber responde ao racionalismo tanto quanto ao irracionalismo filosófico, sem para isso necessitar de uma refutação de todos os elementos de ambas as posições.

1.1 – Uma tendência racionalista:

Na obra de Descartes, o pensar situa-se como aquilo que em nós acontece, de tal forma que o percebamos imediatamente por nós mesmos; desse modo, todas as nossas atividades interiores, como querer, sentir, imaginar, são, quanto à sua imediaticidade, o mesmo que pensar. Repare que a esfera do pensamento, para Descartes, atribuída da qualidade de imediaticidade, ganha primazia sobre as demais porque antes de mais nada serve de condição primeira de tais faculdades humanas.

Em suas Meditações, escreve: "Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente" (Descartes, pág.95, 1983). Como podemos perceber, para Descartes o pensamento é a instância que engloba, condiciona e coordena todas as demais faculdades, sendo elas próprias uma extensão do pensamento. É este a faculdade que mediatiza todas as demais faculdades. Apenas através dele é que delas tomamos consciência, tanto quanto é através dele que tomamos consciência de suas habilidades e limitações.

Descartes concebe, pois, o pensamento como função exclusiva da alma, dividindo-o em dois gêneros distintos: as ações e as paixões da alma:

... uns são as ações da alma, outros as suas paixões. Aquelas que chamo suas ações são todas as nossas vontades, porque sentimos que vêm diretamente da alma e parecem depender apenas dela; do mesmo modo, ao contrário, pode-se em geral chamar suas paixões toda espécie de percepções ou conhecimentos existentes em nós, porque muitas vezes não é nossa alma que os faz tais como são, e por que sempre os recebe das coisas por elas representadas. (Descartes, 1983: 224)

Vê-se claramente que Descartes concebe o pensamento e mesmo o qualifica tendo por base o sentimento de sua imediaticidade, como se não se precisasse de mais nada, senão de tal sentimento, para o reconhecimento de sua validade e distinção.

Para ele, o pensamento pode ser designado como atributo e propriedade da alma: a diferença reside, pois, se determinado pensamento é fruto de uma ação da alma ou de uma paixão da mesma. Além disso, tais paixões das quais fala Descartes e que são representadas por elas próprias, referem-se às informações apreendidas pelos sentidos através das sensações e, também, a toda espécie de conhecimento intuitivo. Ele está em busca de uma análise dos aspectos da comunicação entre corpo e alma, e, por isso, se preocupa com o agir humano na medida em que concebe que o conhecimento, uma potência da alma, pode fazer agir o corpo segundo as maneiras que primeiro conhece e depois determina. O conhecimento proveniente da alma pode ser tanto suas percepções, quanto o que Descartes chamou de suas vontades. As vontades são classificadas em duas espécies: aquelas que constituem ações da alma que terminam na própria alma, cujo pensamento aplica-se a objetos que não são materiais, corpóreos, extensos; e aquelas que constituem ações que terminam no corpo, como os movimentos voluntários que coordenamos conscientemente. (Descartes, 1983: pág. 224) Assim, ao conhecimento é, para Descartes, a condição de todo agir que é antecedido por um "querer" correspondente, de modo que quanto ao acontecimento conformado e constituído pela ação, podemos encontrar suas causas já na deliberação do agente. O homem apenas pode querer algo que conhece e, a partir de então, tem liberdade para querê-lo ou não: "Não poderíamos querer coisa alguma sem saber que a queremos, nem sabe-lo a não ser por uma idéia; mas não afirmo de modo algum que esta idéia seja diferente da própria ação". (Descartes, 1983: pág. 224)

A imediaticidade com que Descartes reconhece o pensamento, corresponderia, para ele, no caráter segundo o qual uma coisa não precisaria de outra coisa para exigir o reconhecimento de sua validade, como se, então, fosse o pensamento tudo aquilo sobre o qual imediatamente existe no homem, de forma a servir inclusive de dado para uma constatação da existência. É desse modo que, para Descartes, a validade da proposição "eu sou" é dada pela imediação do pensamento. A alma, enquanto totalidade da experiência interna, tem o pensamento como via única de acesso.

O pensamento assim entendido qualificava-se como a única premissa a qual nenhuma outra é anterior, característica que seus sucessores não livraram da crítica. Na teoria de Descartes, pois, o pensamento era condição de qualquer outra atividade do res cogitans, incluindo o querer.

Ao diferenciar corpo e alma e colocar o querer como atributo do pensamento e como "paixão da alma", Descartes está a definir como a alma e o espírito participam daquilo que é voluntário e intencional no homem. O espírito, não pode ser dividido e, por sua vez, tem a capacidade de dividir o corpo em partes.

"Pois, com efeito, quando considero meu espírito, isto é, eu mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa que pensa, não poso aí distinguir partes algumas, mas me concebo como uma coisa única e inteira. E, conquanto, o espírito todo pareça estar unido ao corpo todo, todavia um pé, um braço ou qualquer outra parte estando separada do meu corpo, é certo que nem por isso haverá aí algo de subtraído a meu espírito. E as faculdades de querer, sentir, conceber, etc., não podem propriamente ser chamadas suas partes: pois o mesmo espírito emprega-se todo em querer e também todo em sentir, em conceber, etc. mas ocorre exatamente o contrário com as coisas corpóreas ou extensas: pois não há uma sequer que eu não faça facilmente em pedaços por meu pensamento, que meu espírito não divida mui facilmente em muitas partes e, por conseguinte, que eu não reconheça ser divisível" (Descartes, 1983: pág. 139)

Essa é basicamente a maneira como o racionalismo filosófico, concebido aqui a partir do "primeiro moderno" no âmbito da filosofia, encarou e concebeu as motivações e o desenrolar do agir humano. Embora tal corrente tenha nos alertado definitivamente a refletir sobre a autoconsciência e sobre o pensamento mesmo, sobre o "Eu Penso", por outro lado ele iniciou uma série de críticas à faculdade de pensar que culminou numa postura filosófica de desilusão das pretensões benévolas do racionalismo. No século XIX, era comum a grandes pensadores a desconfiança em relação ao pensar. Isso não quer dizer que não reconheciam absolutamente o pensamento como primordial no relacionamento de nossas representações, mas menos ainda quer dizer que o agir humano, mesmo o consciente, esteja submetido ao conhecimento oriundo do pensamento.

Nietzsche, por exemplo, mostrou que a despeito da "indispensabilidade necessária" do pensamento, ele não corresponde a uma instância imediata da cognição humana e menos ainda os seus juízos e representações apontam para algo de verossímil ou mesmo de concreta e absolutamente factível. Para Nietzsche, o cogito ergo sun de Descartes traz consigo uma série de pressuposições que são identificadas como situações de fato; ele faz uma crítica aos filósofos para cujos olhos tais atividades interiores, como querer, sentir e pensar, figuraram como certezas imediatas. Essas pressuposições de que fala Nietzsche são: em primeiro lugar, Descartes toma por dado que pensar é atividade e efeito de um ser que é tido e pensado como causa, isto é, o pensar é algo que é causado (se há pensamentos, é porque há um ser que é sua causa); assim, para Descartes a substância nos revela um ser, cuja existência nos é mais conhecida do que a de outros seres, de modo que pode servir de princípio para conhecê-los.

A segunda pressuposição cartesiana, derivada da primeira, consiste no reconhecimento equivocado de imediaticidade no pensar. Quando Descartes caracteriza o pensar por sua imediaticidade, ele tem de definir a priori o que vem a ser pensar. Esse tipo de definição a priori é o aspecto acusado por Nietzsche. Para ele, o pensar não pode conceber a si mesmo prescindindo da experiência. O homem enquanto tido por ser cognoscente, para determinar

O que vem a ser pensar, tem necessariamente de haver experimentado a recorrência desse estado designado como pensar, tanto quanto a recorrência de outros estados com os quais se compara o primeiro: "Em resumo, aquele "eu penso" pressupõe que eu compare meu estado momentâneo com outros estados que em mim conheço, para determinar o que ele é: devido a essa referência retrospectiva a um 'saber' de outra parte, ele não tem para mim, de todo modo, nenhuma 'certeza' imediata. (Nietzsche, 2007, pág. 21)

Nietzsche foi um dos continuadores da tradição iniciada por Schopenhauer. Critica este último sobre vários pontos, mas ambos concordam quanto a algo específico que envolve a causalidade da ação e o pensamento e relacionam-se diretamente com o modo através do qual Weber a trata na teoria do conhecimento histórico. Algo que bem pode caracterizar o ponto comum das indagações de Schopenhauer, Nietzsche e Weber quanto à causalidade, é esta citação de um trecho escrito por Nietzsche:

Tudo o que se torna consciente é um fenômeno final, uma conclusão – e que não causa nada -, tudo o que se seqüencia na consciência é completamente atomístico. E nós tentamos entender o mundo com a concepção inversa – como se nada mais fosse atuante e real que não o Pensar, o Sentir, o Querer... (Nietzsche, 2002: pág. 83)

O intuito em apresentar uma visão típica do racionalismo e uma visão típica do irracionalismo é mostrar que Weber não é nem um e nem outro, mas revela-se por sua vez como um grande sintetizador dessas correntes propriamente modernas. Desse modo, é profícuo entender como o embate crítico entre essas tendências dava condições e reclamava um novo método. Se o irracionalismo desvela a vida como manifestação de princípios não-racionais, isso não implica, não deve implicar, no abandono de um projeto e um perspectiva racional. Se a realidade histórica e a maneira com que a vivenciamos e experimentamos tem por trás de si, como seu fundamento, princípios não-racionais, isso não quer dizer que devemos prescindir da Razão pra emitir juízos – sobre tudo juízos com pretensão de validade – a respeito de tal realidade. Weber reconhece no agir humano e na realidade histórica que ele vivencia e luta, um complexo de causas e caracteres que ultrapassam qualquer consideração racional. Sua perspicácia consistiu em usar tipologias racionais para perceber e entrever o impacto de causas irracionais no devir histórico: é por isso que, repito, Weber não pode ser classificado como um racionalista puro. Por vir posteriormente a Schopenhauer e Nietzsche, tinha, de alguma forma, de responder a eles, de fazer concessões a um projeto de otimismo para com a razão e suas vicissitudes.

O que se vê em grande parte da recepção de Weber, entretanto, não condiz exatamente com isso. A associação demasiado intensa do pensamento de Weber à matriz iluminista acabou obscurecendo a importância dada por ele a aquilo de passional e absolutamente casual que move e faz agir tudo o que é humano. Joel Elliot, em seu artigo entitulado "The Fate of Reason", associa tal negligência da literatura weberiana para com o tema da irracionalidade na obra de Weber ao caráter amorfo e pouco sistemático com que ele aparece em seu trabalho. Por sua vez, Elliot também reconhece que, "Logically, irrationality is the necessary antithesis of rationality, baú irrationality is also substantively central to Weber's notion of rationality"(Eliott, 1998, pág. 2).

Com isso, pois, justificamos nossa investida nesse tema, bem como na relaçãopor ele estabelecida com a causalidade e o sentido histórico. Voltemos, pois, ao eixo central da exposição.

1.2Uma tendência irracionalista:

Diferentemente de Descartes, Schopenhauer considera a vontade, e não o pensar, como primordial e primevo ao conhecimento. Para Schopenhauer, a vontade, puramente em si mesma, é inconsciente, "é uma tendência, cega e irresistível."(Shopenhauer, 1966: pág. 37) Quanto ao homem, a capacidade de exercer uma atividade simbólica – de sintetizar e processar estímulos de modo a organizá-los em representações comuns -, diferentemente de outros animais, aos quais também está presente primordialmente a vontade, permitiu-lhe também reconhecer a vontade.

A espécie humana, vista por Schopenhauer, ergue-se sobre a natureza e sobre os animais pelo acréscimo do mundo da representação sobre o mundo da vontade[4], de modo que, através e por via do primeiro, o segundo pode ser reconhecido. Por via da representação, a vontade torna-se consciente de si e de sua existência; o mundo como representação é o espelho através do qual a vontade reconhece a si mesma, adquire consciência do seu querer e do objeto de seu querer. (Shopenhauer, pág. 37, 1966) Sob a perspectiva da representação, a vida, o mundo visível, isto é, a objetividade, o fenômeno, são manifestações da vontade. A representação, operada pelo pensamento, é a via através da qual uma manifestação da vontade pode ser apreendida, traduzida para consciência.

Qualquer fenômeno, qualquer objeto, existem enquanto representação, e porquanto apenas quando submetidos ao "princípio de razão" e suas formas a priori (tempo, espaço e causalidade), nunca sendo uma adequação da "coisa-em-si", da vontade própria, e existindo então apenas enquanto correlativos ao sujeito e a subjetividade de sua cognição. Nesse sentido, também o indivíduo, o sujeito tal qual o consideramos empiricamente, quando tomado por objeto, é um fenômeno da vontade. Thomas Mann, em seu Livro "O Pensamento Vivo de Schopenhauer", escreveu o seguinte sobre o relacionamento do mundo da vontade com o mundo da representação:

"A vontade, pois, este absoluto, exterior ao espaço, ao tempo e à causalidade, cegamente e sem razão, mas com o irresistível ardor de seu desejo e de sua alegria de existir, reclamaria a vida, a objetivação, e esta objetivação se realizaria de ta maneira que a sua unidade primitiva se tornaria multiplicidade, o que caracteriza perfeitamente o princípio de individuação. Para saciar seu desejo, a vontade ávida de vida objetivar-se-ia segundo esse princípio, espalhando-se em miríades de parcelas que constituiriam o mundo dos fenômenos, o do espaço e do tempo e, entretanto, até no menor e no mais isolado desses fragmentos permaneceria inteiramente produto e expressão da vontade , sua objetivação no espaço e no tempo. Mas, além disso e ao mesmo tempo, a vontade seria outra coisa ainda: seria representação de cada indivíduo e representação de si por cada um – especialmente por meio da inteligência que conhece e que, nos graus superiores de sua objetivação, a vontade criou para torná-la seu facho. Notemo-lo bem: não seria a inteligência que produziria vontade, mas, ao inverso, esta que engendraria aquela. (Mann, 1940: pág. 13 e 14)

Como se pode perceber, a citação de Thomas Mann já abarca a diferença fundamental de Schopenhauer em relação a Descartes. O pensamento, para o primeiro, muito antes de constituir uma instância imediata da existência humana e causa primeira de si mesmo e de todo o resto, nada mais é do que a vontade sob a óptica da representação, que por sua vez está submetida pela capacidade humana de processar seus estímulos. O conhecimento tem o papel de servir à vontade provendo-a de motivos e não o de coordenar as ações humanas:

 

... a inteligência – independentemente de sua tarefa, que consiste em projetar um pouco de luz na vizinhança imediata da vontade e em ajudá-la em sua luta pela existência num grau mais elevado – tem por única missão servir de porta-voz à vontade, justifica-la, provê-la de motivos 'morais', em suma, racionalizar nossos instintos. (Mann, 1940: pág. 15)

Pode-se dizer, pois, que para Schopenhauer, também a natureza, é fenômeno e realização da vontade como coisa em si, em sua "unidade primitiva", e sua forma objetivada é o tempo, o espaço e a causalidade. Apenas o fenômeno individual da vontade é o que principia e acaba no tempo, de modo que o mesmo não concerne à vontade como coisa-em-si. Permanência e destruição, que pressupõem mudança de estados e demarcação de um fluir temporal são condições da vontade objetivada, sendo que, portanto, o indivíduo perece apenas como fenômeno e é como fenômeno que se diferencia de outros objetos. (Schopenhauer, pág 48 e 49, 1966)

Schopenhauer distingue, assim, o mundo da vontade do mundo fenomênico, ao primeiro atribuindo o estatuto de coisa-em-si. O mundo, em todos os seus fenômenos é objetividade da vontade, a qual, não sendo ela própria nem fenômeno, nem representação, nem objeto, não está submetida ao princípio de razão que é a forma através da qual cada objeto se diferencia no tempo e no espaço. Em outras palavras, isso significa dizer que a vontade não é efeito de uma causa, que não é ela a conseqüência de um estado antecedente e não é, portanto, necessária: a vontade, como coisa-em-si, é livre, incondicionada.

Com isso, podemos ter por claro como a filosofia da vontade de Schopenhauer anula a primordialidade do pensamento que havia sido concebido com Descartes. Não mais o pensar, mas a vontade corresponde à instância imediata da qual derivamos nosso conhecimento. São muitas as questões fundamentais para a causalidade das ações humanas que daí decorrem, tanto quanto para o desenvolvimento específico que este tipo de embate epistemológico tomou nos séculos seguintes, quando eram empreendidos esforços numa fundamentação epistemológica de uma ciência que lidasse com fenômenos humanos.

Tem-se de ressaltar, pois, que no sistema de Schopenhauer, o fenômeno, o objeto, é necessariamente determinado pela concatenação de causas e efeitos, que de sorte alguma admite qualquer interrupção. Já a existência em geral desse objeto, a Idéia que nele se manifesta, o seu caráter, é fenômeno imediato da vontade, de modo que são as idéias, e não os indivíduos, que têm uma realidade verdadeira, atemporalmente válida e presente.

Por mais maciço e imenso que e seja este mundo, sua existência depende , em qualquer momento, apenas de um fio delgadíssimo: a consciência em que aparece. Esta condição, irrevogavelmente ligada à existência do mundo, imprime-lhe, a despeito de toda a sua realidade empírica, o selo da idealidade e, em seguida, de puro fenômeno. (Mann, 1940: pág. 52)

Eis que, nesse sentido, a vontade como coisa-em-si, sendo livre, a idéia que dela se manifesta num dado objeto, poderia não existir, ou poderia ainda ser essencialmente outro, o que mudaria toda a rede causal. Este aspecto já coloca, pois, muito do que corresponde à grande contribuição de Schopenhauer para a questão da liberdade ou necessidade dos fenômenos históricos. A necessidade do acontecer causal, vista pelo filósofo, não tem lugar no mundo da vontade como coisa-em-si. Mas a questão de que um determinado acontecimento, por exemplo, ter acontecido de uma maneira específica e individual, não quer dizer que tal acontecimento não poderia ter sido outro que não aquele.

Assim, Schopenhauer percebia, para todo fenômeno, a presença de duas esferas que compunham o processo de sua representação: ele precisou, pois, diferenciar o caráter empírico do fenômeno de seu caráter inteligível para poder esclarecer o sentido da causalidade do agir humano. Tinha que mostrar que, no plano empírico, predominava a causalidade e a concatenação de causas e efeitos numa rede de motivos que determinavam necessariamente o objeto. A liberdade, por sua vez, estaria pra além das aparências fenomênicas e de tudo aquilo que é racionalmente concebível, de modo que embora o agir se desenrole com necessidade, a existência da liberdade em relação ao mesmo estaria sempre presente como possibilidade:

 

... a 'sã razão humana' enganava-se inteiramente quanto à liberdade, que não estaria no ato, mas no ser, não no 'opera ri' mas no 'esse'; no ato, é verdade, reinariam, pois, inelutavelmente a necessidade e o determinismo, mas o ser continuaria originalmente e metafisicamente livre. (Mann, 1940: pág 25)

Como qualquer outra coisa na natureza que tem suas forças e suas qualidades que contra uma ação determinada reagem de uma determinada maneira, e constituem seu caráter, assim também o homem tem um caráter em virtude do qual os motivos lhe provocam os atos de necessidade. É por meio desses atos que se revela o seu caráter empírico, que por sua vez é marcado pelo caráter inteligível, pela vontade-em-si, de que ele é fenômeno determinado. Assim, em relação à conduta de um indivíduo, apesar de ser ele um fenômeno da vontade livre, a pessoa humana nunca é livre, uma vez que é determinada por tal vontade, que, ela sim, é livre. Supor que um homem poderia agir de modo fundamentalmente diferente estando exatamente sob as mesmas condições, variáveis e motivos – sempre incontáveis em sua globalidade – significaria a possibilidade, equivocada para Schopenhauer, de uma mudança na vontade, o que a faria existir no tempo e não ter mais a qualidade de unicidade, "de unidade extra-temporânea da vontade em si".

É por isso que, ao distinguir entre o caráter inteligível e o caráter empírico do fenômeno, Schopenhauer apenas pôde fazê-lo sob uma base teórica que separa a esfera do intelecto da esfera da vontade, subordinando a primeira à segunda; desse modo, o caráter inteligível de um fenômeno constitui um ato extra-temporâneoda vontade, que existe aquém do tempo, consequentemente indivisível (em causas e efeitos, essencial e inessencial, por exemplo) e invariável, cujo fenômeno e objetividade desenvolvidos e multiplicados no tempo, no espaço e na causalidade, nas formas do princípio de razão, constituem por sua vez o caráter empírico que se revela experimentalmente no conjunto da conduta e em toda a existência do indivíduo.

Aqui coloca-se uma questão que redimensionou os alicerces racionalistas da teoria da ação e serviu como base futura de vários questionamentos. Apesar de Weber posicionar-se criticamente em relação a Schopenhauer e Nietzsche e, principalmente, ao romantismo com que o irracionalismo se manifestou, as contribuições de ambos à teoria do conhecimento podem indicar motivos centrais por que Weber deu tamanha atenção para o impacto da irracionalidade humana na história e nos conflitos sociais; além disso, esse embate filosófico reconfigurava as discussões sobre a ação do indivíduo na história, que sempre podia ser questionada sob os parâmetros da liberdade ou da necessidade.

Nesse sentido, a contribuição essencial de Schopenhauer, para os fins deste trabalho, consiste em que, ao separar o intelecto da vontade, dando à última a qualidade de imediata, Schopenhauer secundariza o intelecto. Este, dependente das formas da representação, só é informado dos caminhos seguidos pela vontade a posteriori e empiricamente. Isso porque, separado da vontade, como seu espectador, o intelecto, a princípio, não tem nenhum conhecimento do caráter inteligível em virtude do qual, estabelecidos os motivos através do princípio de razão, uma só ação é possível e, por conseguinte, necessária. Apenas depois que a vontade atua é que pode o intelecto, retrospectivamente, lançar-lhe luz. É por essa via que Schopenhauer explicita sua teoria sobre a determinação e indeterminação do agir. No memento em que a ação se executa, o intelecto não pode conceber os complexos grupos de nexos causais, menos ainda a absoluta casualidade de sua posição naquele momento específico do devir histórico-empírico, de modo que se quer pode perceber que sua decisão, antes de mais nada está condicionada por uma série infinita de causas supra-racionais. O intelecto está sempre aquém de reunir as condições necessárias, sempre inauditas para ele nos momento em que se executam a ação, para que o fenômeno fosse "aquele" e não "outro".

A partir disso, conclui-se que a decisão da vontade individual, fenomênica, empírica, só é indeterminada para seu espectador, o intelecto, o sujeito cognoscente. A indeterminação é relativa e subjetiva, de quem não pode separar-se do tempo e de sua passagem para formular um juízo que determine seu agir; objetivamente, em presença de uma escolha a fazer, a decisão é, pois, imediatamente necessária e determinada. Com relação à decisão de fato, o intelecto está em expectativa passiva, podendo, quando muito, a posteriori, expor as razões respectivas, a natureza dos motivos. Desse modo, os motivos que constituem o que determina a maneira pela qual o caráter inteligível se manifesta em caráter empírico, existem e são estabelecidos por intermédio do conhecimento.

É neste aspecto que há uma explícita ruptura com o modelo racionalista iniciado com Descartes. Como visto, em Descartes, o pensamento é a instância que, tendo a qualidade de imediaticidade, coordena a vontade. Nesse sentido, o homem haveria se tornado o que é em seguida ao seu conhecimento. Precisou conhecer para se configurar tal como é agora. Isso significa, pois, que a possibilidade da mudança de sua conduta concentra-se sobre o conhecimento dessa outra possibilidade. Já em Schopenhauer, para qualquer ação, o primordial e primitivo é a vontade, de modo que o pensamento apenas pode atuar sobre o substrato da vontade. Para ele, o homem, através do conhecimento ao longo de sua experiência, aprende aquilo que é, aprende a conhecer seu caráter, sendo que a possibilidade de mudar a conduta não é seguida pela possibilidade de mudar o caráter: na obra de Schopenhauer, usando a linguagem dos behavioristas, querer não constitui uma "reação aprendida". Na tradição cartesiana, quer-se em conformidade e em conseqüência ao conhecimento; já em Schopenhauer, conhece-se em conformidade em conseqüência à vontade. Na primeira, o homem quer o que conhece; na segunda, conhece o que quis.

Em consonância ao que já fazia Schopenhauer, Weber situa seu método com uma postura teórica que é crítica do conceito de "livre-arbítrio" através do qual atribui-se um significado causal à decisão; esta, para Weber, como também para Schopenhauer, é o resultado de causas que podem ser tidas como "suficientes", mas que nunca esgotam a realidade do momento presente e de todas as circunstâncias que o envolvem durante a decisão; sendo que, dessa maneira, os motivos que determinam uma ação, apesar da necessidade empírica com que se manifesta tal ação, atuam não da maneira como existiram por si mesmos, mas apenas pela maneira intermediada pelo conhecimento e suas representações, que, por sua vez, não se exerce sobre a vontade mesma, mas sobre a manifestação desta por meio de atos. Vejamos, pois, as contribuições específicas de Weber para este terreno da teoria.

III – Uma síntese weberiana:

Quando o pensamento deixa de ser visto e compreendido como uma instância imediata da cognição humana e passa a ser percebido como subjugado a princípios, impulsos e substratos inconscientes e irracionais, então também o caráter e o status das representações causais que o pensamento produz a cerca da realidade e de si mesmo deixam de ser imediatamente evidentes. Deixemos claro que de modo algum Weber é seguidor de Schopenhauer. Entretanto, como alguém que veio depois dele, tendo em vista as contribuições do primeiro para a história da filosofia e a admiração que sentia por ele, Weber não podia e não pôde ignorar a seriedade de seus escritos[5].

Diferentemente de Schopenhauer, Weber tinha claras preocupações metodológicas. Isso, por si só, já o afasta do "irracionalismo" do primeiro. O que Weber incorporou de Schopenhauer foi apenas algumas lições sobre a teoria da causalidade e que lhe ajudaram a em suas próprias reflexões sobre a liberdade e a necessidade do acontecimento. O comum a Schopenhauer e Weber (e, nesse sentido, também Nietzsche), é que da perspectiva de um "eu", isto é, de um sujeito cognoscente, um intelecto interpretante, o mundo exterior, tomado como acontecimento, atua sobre nós (e nós, evidentemente, atuamos sobre ele), tendo seus efeitos apreendidos pelos órgãos dos sentidos, preparados, elaborados (conceitualmente) e reconduzidos, então, à sua causa. Em seguida, a causa é projetada como representação e somente então os estímulos nos chegam à consciência como fato. Isso significa que o mundo dos fenômenos aparece para nós como causa apensas depois que esta atua e que, portanto, apenas retrospectivamente é que podemos selecionar-lhes os motivos e definir se a natureza destes, no caso das ciências culturais, são de ordem econômica, social, estética, política, religiosa, ou demais variações.

Já sabemos, pois, que a noção de causalidade retrospectiva trouxe conseqüências enormes para o domínio do conhecimento. Quais seriam, pois, as implicações que tal aspecto da causalidade teria para uma ciência histórica em específico? Quais as conseqüências de o sujeito cognoscente não poder abandonar a própria atualidade, a atualidade de seu próprio querer, ao voltar-se para seu objeto, o passado? Podemos perceber pelo menos três implicações fundamentais.

A primeira delas consiste no seguinte. A história, vista do ponto de vista da causalidade retrospectiva, compõe-se de uma dualidade que permanentemente se realimenta: uma dualidade entre a atualidade de presente que constantemente se renova - isto é, a realidade em que subjaz o historiador e os valores que o influenciam – e de um passado que constantemente se estende até o momento que está a passar. É de um presente em devir, de um presente que constantemente torna-se passado e constantemente está em vias de esgotar-se no futuro, que o historiador volta sua atenção para a infinitude da realidade histórica e lhe recorta uma perspectiva, "um segmento finito da infinitude do acontecimento-mundo" (Weber, pág. 131, 2001). O vínculo e a relação que o historiador, o sujeito cognoscente, estabelece com seu objeto é direto, no sentido exclusivo de que ele também é fruto de causas que ali (no passado) operaram e, se por um lado é impossível pensar num presente que independa de sua história, também é impossível conceber uma história que independa da atualidade do contexto em que foi produzida. Se há uma enorme quantidade de histórias já escritas, ainda há infinitas esperando para o serem. Esse também é o sentido da Historia Absdondita de que fala Nietzsche.[6]

Trabalhando pela epistemologia, mais detalhadamente por uma metodologia empírica para as ciências culturais, Weber estava engajado na explicitação disso que evidenciava-se como a fonte da inesgotável renovação da ciência histórica, tanto quanto das relações diretas que os seus resultados mantinham com o espectro de indagações de um presente em devir, isto é, com o presente do historiador e suas condições interpretativas.

É incondicionalmente certo que toda 'história' foi escrita a partir do ponto de vista dos interesses de valor do presente e que, consequentemente, todo presente faz novas perguntas ao material histórico ou, pelo menos pode fazê-las, porque sempre se modifica, precisamente, o seu interesse, que é orientado por valores. (Weber, 2001: pág. 188)

Não há como o cientista da história escapar à dualidade entre o passado e o presente. O presente infinitamente torna-se passado; tal presente não pára de passar enquanto se escreve a história: inserida num presente como este, a ação do historiador ao fazer história orienta-se segundo as condições interpretativas que são, via de regra, delineadas por valores que se modificam. Quando o historiador faz um recorte e uma seleção de seu objeto em meio a infinitude, ele reduz a potencia infinita que é o presente enquanto possibilidade de realização à conseqüência determinada daquele passado. Não se pode fugir a essa dualidade que subjaz à relação da realidade histórica com o entendimento humano. Embora uma perspectiva histórica só seja possível a partir de um presente que é sua consecução, o presente mesmo é uma potência absolutamente a-histórica: como ápice da imensidão do passado, é impossível fazer uma história do "presente", porque cada segundo que se esgota reúne o encadeamento de todas as histórias já contadas e que ainda estão por contar.

O presente imediato não só ainda não se transformou em causa histórica como também nem é um indivíduo histórico... Só o futuro 'decidirá, em definitivo sobre a significação causal dos fatos do presente. (Idem.)

Eis o dilema de toda historiografia na constituição de seu objeto. De um lado o passado, o já-vivido, e do outro, um presente que é tanto seu ápice quanto seu espectador. As questões que o presente do historiador lançam ao passado, não podem, pois, esgotar uma realidade histórica "que não esperou por elas para existir"(Merleau-Ponty, pág. 4, 2006). Inserido em um presente que passa, o historiador, por sua vez, não pode negligenciar a esfera de interesses valorativos que, em meio a "infinitude intensiva" da realidade empírica[7], seleciona aquilo que é significativo e aquilo que não o é:

Pois os 'pontos de vista', orientados em valores a partir dos quais observamos os objetos de cultura, e que em geral passam a ser para nós 'objetos' da investigação histórica,... são expostos a mudanças e porque o são e na medida em que o são ... convertem-se em fatos sempre novos e passam a ser historicamente 'essenciais' de maneira sempre renovada.(Weber, 2001: pág. 189)

Para Weber, em última análise, o historiador, ao fazer história, tanto quanto os indivíduos históricos sobre os quais ele reflete, é alguém que age. Na medida em que age, que fazer história constitui uma ação com sentido, o historiador não pode referenciar-se a si mesmo, enquanto sujeito cognoscente, como se estivesse apartado à história, separado de seu objeto; pelo contrário, escrevendo a história o historiador continua sendo, em um só, seu fruto imediato e protagonista de suas vicissitudes. Não há, pois, um limite fixo que separe de forma definitiva o sujeito e o objeto; no momento em que nos consideramos inseridos numa realidade histórica, não podemos então renunciar a ser ambos, de maneira fluída e alternada. Se, por um lado somos objetos determinados pela consecução de causas passadas, por outro somos sujeitos de nosso presente que está a passar. Maurice Merleau-Ponty, em seu ensaio "A Crise do Entendimento", descreve este aspecto do pensamento de Weber melhor do que eu o poderia fazer:

Pode-se portanto dizer que a históriaé a ação no imaginário ou, ainda, o espetáculo que nos damos de uma ação. Em contrapartida, a ação consulta a história, que , diz Weber, certamente não nos ensina o que é preciso querer, mas o verdadeiro sentido de nossas vontades. O saber e a ação são dois pólos de uma existência única. Nossa relação com a história não é, pois, apenas a relação de entendimento, a do espectador com o espetáculo. Não seríamos espectadores se não estivéssemos implicados no passado, e a ação não seria grave se não concluísse toda empresa do passado e não desse ao drama seu último ato. A história é um objeto estranho: um objeto que somos nós mesmos; e, nossa vida insubstituível, nossa liberdade selvagem já está prefigurada, comprometida, arriscada em outras liberdades hoje passadas. (Merleau-Ponty, 2006: pág.4)

Como se vê, essa primeira implicação, por si só, já renova a relação entre o conhecimento e a conduta do homem e, se Weber não compartilha de uma visão schopenhauriana, menos ainda está a empreender-se como um racionalista puro. Neste ponto, pois, entramos na segunda implicação de que falávamos anteriormente.

Para Weber, a conduta do homem não tem como determinante um "querer-agir-assim-e-não-de-outro-modo", mas está por sua vez condicionada por uma rede de nexos causais que permanece, em sua totalidade, indeterminada para o espectador, de modo que apenas pontos específicos desta rede de motivos podem ser reunidos e organizados pelo conhecimento: "o domínio do trabalho científico não tem por base as 'conexões' objetivas [reais] entre as coisas, mas as conexões conceituais [ideais] entre os problemas" (Weber, 2001: pág. 121). Assim, para o estudo das ações humanas, de suas causas (perante um contexto histórico), a intenção do autor da ação não tem um valor real preponderante para sua consecução naquele e não em outro formato, mas sim um extraordinário valor cognoscitivo, heurístico, para que se conheça demais influências causais sobre o devir real, e se defina e compreenda o porquê de ter se desenvolvido assim e não de outros modos, tanto quanto estabelecer, de forma "adequada", os elementos sem os quais o evento tenderia à outra direção.

Vejamos, então, a extensão deste posicionamento de Weber, o que também nos leva para a nossa segunda implicação. Temos que, a princípio, distinguir entre o que seria para Weber a irracionalidade do devir histórico e a irracionalidade do agir humano. Que há, para ele , uma clara diferença entre ambos, não temos dúvidas:

[...] Supondo que haja uma relação entre a chamada liberdade de agir e a irracionalidade do devir histórico, percebe-se claramente, que esta relação, de maneira nenhuma pode ser interpretada como sendo de mútuo condicionamento, ou seja, no sentido de haver também na presença ou no aumento de um desses fatores um aumento do outro fator. (Weber, 2001: pág. 50)

A irracionalidade do devir histórico, tanto quanto a massa infinita de causas indefiníveis que convergem casualmente em cada momento recortado deste devir, não prescreve, contudo, que o agir humano deva ser, em absoluto, irracional. O sentido deste irracional, deve-se esclarecer, diz respeito ao seu caráter não-previsível e não deve ser confundido com ausência de causalidade. De uma maneira vulgar, aquilo que seria a irracionalidade do agir humano corresponderia à sua incalculabilidade, sintomática do "livre-arbítrio". Weber, entretanto, queria anular a pretensão de especificidade das ciências do espírito calcada na concepção de livre-arbítrio. Isso porque, para ele, considerar a liberdade no âmbito da metodologia da história, eliminaria o seu caráter de ciência empírica. Assim, pois, colocava-se o problema: como lidar metodologicamente com uma ação que não se pode considerar como estando determinada exclusivamente por vontades inconscientes e irracionais e nem, por outro lado, determinada por escolhas e deliberações racionais? A despeito de estar consciente da dimensão afetiva e inconsciente que move o ser humano mesmo na perseguição mais racional de seus fins[8], como metodólogo de uma ciência empírica, Weber teve de conseguir uma maneira para que tais caracteres da ação humana não a tornasse indeterminável, isto é, impassível de ser concebida a partir de uma consideração causal.

Eis aqui o viés eternamente racionalista de Weber: não abrir mão de desvendar causalmente, de uma maneira válida, o acontecimento. A maneira por ele encontrada foi o uso de tipologias racionais: construtos artificiais que representam, através da estilização, de conceitos ideal-típicos, o devir histórico como influenciado puramente pelas escolhas racionais e significativas dos indivíduos que ali interagem entre si. No âmbito do comportamento e da ação humana, mesmo aquelas ações que aparentemente não constituem sentido algum, como no caso em principia-se o ator num estágio "patológico" de "loucura", podem ser compreendidas ainda que externamente e, dentro desses limites, também esperada. Essa, pois, é a função das tipologias: não descrever o devir concreto, nem emitir um juízo sobre o que ele é ou deveria ser ou ter sido, mas possibilitar, por sua vez, uma comparação com o devir concreto a ser analisado; é através dessa comparação é que se pode compreender as influências irracionais em tal devir concreto e que nele estavam a operar. Através desta comparação, em outras palavras, precipita-se aquilo de irracional que causalmente colaborou para que aquele segmento específico do devir histórico se configurasse naquele e não em outro caminho.

Isso é suficiente para explicar porque não se pode deduzir um "intencionismo" latente das idéias de Weber: a dimensão intencionista do aparato metodológico construído por Weber corresponde, em resumo, na constituição de tipos conceituais-heurísticos a partir dos quais rastreia-se na realidade histórica causas sem o conteúdo racional subscrito às intenções e ações humanas e que, mesmo assim, podem ser imputadas ao acontecimento. Procura, a partir da postulação ideal (estilizada) de um devir racional puro, causas irracionais que atuaram no devir real e que sob aquelas circunstâncias eram inauditas e completamente obscuras para os agentes históricos considerados.

Weber não é um intencionista porque não quer compreender a realidade histórica segundo as intenções que os agentes históricos nela depositam, nem identificar as intenções a um eixo real dos motivos que a determinaram. O vislumbre das intenções é só um meio. Somente através de um modelo heurístico pautado na postulação ideal das intenções e ações racionais dos agentes históricos, é que Weber sugere podermos sondar e perceber, a respeito do decurso histórico observado, as causas não-queridas, isto é, que embora lá estivessem presentes e em interação com a globalidade do acontecimento e seu contexto, não puderam ser previstas por tais agentes ou não foram levadas em consideração por eles, e que mesmo assim tiveram um papel significativo e preponderante. Assim, a compreensão dos "fins subjetivamente visados" corresponde apenas no procedimento inicial que prepara e permite a imputação de causas reais. Weber não é um intencionista, portanto, por ser posterior a um tipo de pensamento como o de Schopenhauer, por saber que o "querer" que é atual pode apenas ser objeto de uma re-vivência, de uma reconstrução interior, jamais de uma experiência: com sua tipologia, ele distingue fundamentalmente este "querer" como tal, como vivência, daquilo que viria a ser um possível conhecimento sobre ele (tendo em vista que a atualidade do querer não se submete à experiência).

Aquilo que o historiador experimenta numa re-vivência não deve por ele ser confundido com aquilo que fora realmente vivenciado. Essa experiência que re-vivencia o acontecimento, não deve ter como base uma transposição empática do eu, pois este não pode livrar-se da própria atualidade durante o processo revivenciativo, de modo que tal projeção consiste no mínimo num auto-engano retórico e concerne no máximo à "vaga sensação de lá sentir e lá estar".

A compreensão tipológica dos fins subjetivamente visados, assim, corresponde a uma ferramenta metodológica, um meio de precisar uma atmosfera de casualidades que paralelamente agiam e concorriam com as escolhas racionais subjetivas deferias pelos indivíduos históricos. Saber que a realização de uma dada ação, por um lado, e o conhecimento que podemos ter da mesma, por outro, são de tal maneira que estão apartados em duas esferas distintas de um problema complexo. O problema de só se estar apto a conhecer um ato da vontade, de traduzi-lo para a consciência, apenas posteriormente à sua consecução. Tal problema, entretanto, não diz respeito apenas as ciências que lidam com a compreensão causal das ações humanas:

Não é uma particularidade da explicação causal psíquica a circunstância de nós ficarmos sabendo da 'disposição psíquica' apenas depois do acontecer factual de determinada decisão. Nos processos 'naturais', acontece, por vezes, a mesma coisa e nos casos em que nos interessa a dimensão qualitativo-individual de 'determinados processos. (Weber, 2001: p

Portanto, não é este aspecto retrospectivo da causalidade da ciência histórica aquilo que poderia a vir anular sua cientificidade, uma vez que também as ciências da natureza compartilham a mesma problemática. Porque, então, a análise dos motivos e das causas de um fenômeno histórico, tem de atentar-se ao querer dos indivíduos e não apenas com os contextos gerais de sua enunciação? Qual é, pois, para uma ciência histórica, o valor de uma consideração causal que leva em conta, como referência para a análise dos motivos, as ações individuais e os objetivos a que tendiam tais ações? Uma resposta de Weber a essa questão pode ser encontrada na nota número 6 de seus "Estudos Críticos sobre a Lógica das Ciências da Cultura", publicado pela primeira vez em 1906. Diz Weber:

E a investigação dos motivos – isto é, a análise do que realmente se pretendeu e dos fundamentos deste 'querer' – é, por um lado, um meio de impedir que aquela análise degenere numa pragmática a-histórica, mas, por outro, se apresenta como o principal ponto de partida do 'interesse histórico': queremos, sem dúvida (entre outras coisas) observar como o 'querer' do homem se transforma no seu 'significado' por meio do encadeamento dos 'destinos históricos'. (Weber, 2001: pág. 162)

Max Weberlutou pela construção de um método que ousa fazer um balanço entre as forças e sentidos racionais, por um lado, e as forças e casualidades irracionais de toda espécie, por outro, tanto quanto um balanço do impacto que esses dois tipos de condicionamentos, conjugados, tiveram para o desenrolar do acontecimento,. Uma imputação causal histórica tem por objetivo, portanto, evidenciar, a partir da construção de um devir racional puro, o papel de causas e condicionamentos irracionais, tanto quanto avaliar em que medida as decisões reais dos agentes históricos puderam fazer frente à "irracionalidade" do devir e, assim, influenciá-lo eficazmente. A causalidade histórica, para Weber,

... tem a forma de um juízo teleológico sobre a situação histórica, conforme com os conceitos de 'meio e fim', possui manifestamente, [...], o sentido exclusivo de possibilitar um juízo sobre o significado histórico causal dos fatos, e, portanto, de comprovar que, exatamente naquele momento, não se 'perdeu' uma 'oportunidade' de se fazer tal decisão, por que o 'autor' desta decisão possuía a 'força da alma' para mantê-la em face a todos os obstáculos [racionais e irracionais]: desta maneira, percebe-se o grau de 'importância' causal desta decisão e das suas pré-condições caracteriológicas, como também a medida e o sentido em que a existência destas 'qualidades de caráter' constituiu um 'momento' de 'alcance' histórico. (Weber, 2001: pág. 161 e 162).

Neste ponto, chegamos finalmente à terceira e última implicação que subjaz à noção de causalidade retrospectiva aplicada à causalidade histórica. De certa forma tal implicação já estava prefigurada em Nietzsche e diz respeito ao que Weber chamou de "paradoxo das conseqüências".

A história nunca pode provar 'os objetivos', pois a única coisa clara é que aquilo que os povos e indivíduos quiseram era sempre essencialmente diferente daquilo que era alcançado. Em poucas palavras, tudo o que se alcançava era absolutamente incongruente com o que se queria.

Quem conhece a noção de Weber do paradoxo das conseqüências e desavisadamente lesse essa citação, poderia compreensivamente supor que ela fosse extraída de algum escrito de Weber. Mas não é; é de Nietzsche. [9] A noção de paradoxo, pois, remete, ao outro lado da questão, isto é: o historiador não deve desconsiderar os fins subjetivamente visados e as escolhas conscientes e racionais com que os indivíduos tentam tomar as rédeas de sua própria vida; não pode desconsiderar o papel e o significado que tais investimentos racionais da ação humana tiveram para o decurso da História; observando-os, entretanto, Weber chegou a conclusões bastante similares à que Nietzsche fala na citação anterior. Voltando-se retrospectivamente sobre a ação, o historiador, e até mesmo o autor da ação que está em questão, pode facilmente constatar que seus resultados são sempre distintos do que fora racionalmente buscado e racionalmente pretendido.

Isso porque, quando agimos, nenhum de nós pode levar em consideração a totalidade de elementos que estão a nos influenciar e tanto menos levar em consideração aquilo que, no mundo, poderá ser posteriormente tomado como significativo, isto é, o impacto que nossa ação terá sobre o decurso do processo global em que está inserida. É inevitável: o homem, como ser social, isto é, pelo fato de sempre, ao agir, ter de fazer uma referência explícita ou implícita ao agir de outros[10] e que, por isso mesmo, sua ação só se define num contexto onde quem age apenas pode dominar algumas poucas das inúmeras variáveis que a determinam, tem sempre de conviver com os paradoxos. É certo que os puritanos e calvinistas não "sabiam" que estavam a definir uma "ética prática de vida" completamente afim com os princípios produtivos do capitalismo quando perseguiam sua salvação religiosa. É certo também que nossa própria ação, esta que realizamos agora, no momento que passa, está submetida à irracionalidade dos paradoxos. A escola de Frankfurt, particularmente Horkheimer e Adorno, mostraram como alguns séculos de ações que perseguiram a verdade e o progresso conseguiram resultados um tanto quanto paradoxais. [11]

Mesmo o agente histórico que age especificamente de modo racional com relação a fins não pode fugir à condição de estar inserido numa totalidade caótica, da qual, mesmo no grau mais frio de sua racionalidade, pode controlar, de forma débil, poucas de suas variáveis, de tal maneira que todo indivíduo que age e persegue um objetivo nunca em exato o atinge. Os resultados de sua ação sempre ultrapassam a esfera do que foi querido. Em outras palavras, as conseqüências que cada qual pode prever de suas ações intencionais são sempre distintas das conseqüências reais que são percebidas após a ação. Isso porque, como já disse, como seres culturais e históricos que somos, não constitui tarefa simples e fácil tomar consciência dos "demônios" que estão a reger a orquestra de nossa vida[12]. Estaria aí, talvez, um novo sentido para a ciência? Poderá a ciência ser mais que uma das principais forças que levam ao desencantamento?[13]Poderá ela servir a uma elucidação mais límpida do papel que estamos a desempenhar a cada gesto que deferimos inseridos na realidade histórica? Estaria aí o valor da ciência? Essas são questões que nos levam longe demais para serem abordadas nesta oportunidade. Elas certamente ganham, entretanto, lugar num espaço mais longo de discussão.

A tarefa deste artigo pode ser resumida a evidenciar alguns aspectos do modo como Weber considerou a causalidade histórica. Neste empenho, revelou-se fundamental entender como sua idéia de causação histórica buscava compreender a história a partir de um balanço entre motivações irracionais e racionais que compõem o agir histórico do homem.

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ADORNO, Theodor W. e HOCKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar Editora:1985.




Autor: Ulisses do Valle


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