TRABALHO E SÓ TRABALHO



No exato momento em que eu acabava de morrer na terra, em outro lugar uma outra pessoa também morria. A princípio vi uma criança e até me lembro de sua voz, porém logo mais vi a mesma pessoa que setransformara em um mancebo de estatura mediana, de rosto ovalado, abocagrande, gordo e

baixo. E houve uma grande simpatia entre nós dois. Encontramo-nos em espírito, mas não tivemos muito tempo para conversar, pois a nossa meta era chegar imediatamente a Deus.

Fomos procurar o céu e qual não foi a nossa surpresa. O céueraalimesmo onde estávamos. Ali onde chegava e saía gente, onde o espaço era pouco mais de quatro metros, onde ninguém reparava como o João ou a Maria se vestiam, onde todos trabalhavam espantosamente entrando e saindo de uma oficina. O céu era lá dentro? Sim, era outra parte do céu. Entramos. Que decepção! O lugar não passava de uma oficina. Sim, uma oficina de armazenamento, onde todos se abasteciam e saíam para novo serviço.

E Deus que não aparecia? Fiz um esforçomentalenormepara ver Deus:sujeito pomposo, alto, bonito, tododebranco, falandogrosso e cavernoso - isto no meu pensamento. Dez mil vezes maior a minha decepção. Deus estava ali mesmo conosco, entrando e saindo da oficina, entregando uma coisa a um, uma coisa a outro, num vai-vem, num labutar, sem parar. Deus não falou que era Deus. Um influxo mental entrou em mim e Oreconheci. Olhei o Senhor e falei:

- Que tal, Senhor, cumpri o meu dever?

- Ele olhou-me e disse:

- Muito pouco, poderia ter feito muito mais.

Fiquei escandalizado perante Deus.Eu queria não ficar escandalizado,mas o meu ser interior envergonhava-se.

Enquanto isto Deus não parava detrabalhar. Entrava e saía, atendia a um e outro. Atendia a todos num momento.

Conversei com meu colega. Ele disse que tinha já sido reiegovernador. Acabava agora de vir de uma escravidão. Sim, fora escravo, porém não bastou. Teria que voltar ao mundo outra vez.

Fomos procurar Deus novamente.

- Pai, exclamei, o que farei agora?

Ele olhou-me bondosamente.Seu olhar penetrou todo o meu ser, então disse:

- Trabalho, filho. Trabalho e só trabalho.

Deus saiu e foi trabalhar. Fiquei refletindo e conversando com o meu colega.

- O que você vai ser agora? - Perguntei.

- Padre. Vou fazer o bem a todos sem pedir nada em troca.

Apertei a mão do meu colega, pois também eu decidira a ser padre.

Eu não sabia porque, mas voltei a procurar Deus e perguntei:

- Pai, explique sobre minhas vidas passadas.

Ele olhou-me e sorriu. Foi buscar uma ficha no armário.

- Meu nome era A ... - falei - mas dizem que meu nome verdadeira é... Pereira.

Ele veio com minha ficha.

- Realmente você é o Pereira, mas não pode saber tudo o que fez em vidas passadas. Terá que trabalhar muito e só depois ser-lhe-á permitido rasgar as cortinas e olhar o passado.

Deus saiu. Eu fiquei fazendo planos com o outro. Decidimos ser padres e nascermos em lugares diferentes.Seríamos os dois maiores padres do mundo, mas o ideal de cada um jamais seria igual. Haveria divergência de pensamento.No final da vida nós nos uniríamos para uma vitória total das massas. Estava feito o nosso plano.

Procuramos Deus pela última vez para comunicá-lo. Falamos tudo, explanamos bem a nossa decisão, mas Deus desaprovou-nos.

- Em vez de nascerem dois padres em lugares diferentes, com idéias diferentes, porque não nasçem na mesma terra,com os mesmos ideais e opiniões? Vocês não acham que progrediriam mais?

Ele saiu novamente deixando que nós decidíssemos.Concordei com meu colega sobre o plano de Deus. Passando perto de Deus, paramos. Ele olhou-nos compenetrado.

- Senhor, preciso fazer um bom plano para isto, expliquei.

Fixando-me fortemente o olhar, Ele disse:

- Trabalho e só trabalho.

Então vi-me sendo padre, a barba comprida, balas,canhões, sangue escorrendo, bombardeio e... procurei Deusrapidamente. Ele tinha desaparecido. Eu estava sozinho sentindo tudo aquilo. Parecia que tudo estava dentro de mim e não fora. Onde quer que eu fosse, aquilo me acompanhava. O jeito era viver aquele quadro monstruoso do futuro que eu iria viver brevemente. Nenhum alívio, nenhum momento de paz, aguentaria?

Eu iria renascer em pleno deflagramento de uma guerra. E teria que partir com o fechar das cortinas do tempo.

Depois de contemplar aquele quadro, vi-medesaparecendo lentamente e abraçar o novo caminho para a purificação e paz do próprio espírito.


Autor: Henrique Araújo


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