Uma visita estranha



 

276 - UMA VISITA ESTRANHA

 

A campainha tocou.

Já é tarde, quase dez horas da noite.

Quem será?

Um assaltante, tentando descobrir se há alguém em casa?

Um pobre, pedindo comida, esmola, um cobertor?

Um entregador de pizza, com endereço errado?

Um vizinho, precisando de ajuda?

Melhor não atender, fazer de conta que a casa está vazia.

Sim, mas se for um assaltante, logo estará pulando o muro e entrará na casa com a maior facilidade.

Se for um vizinho, conhecendo os nossos hábitos, vai  insistir e ficar desconfiado. 

Melhor espiar pelo olho mágico.

Surpresa! É o tio Ernesto!

Aquele tio que depois de  uma briga feia, quatro ou cinco anos atrás, nunca mais deu sinal de vida 

Que isto possa acontecer com os conhecidos, com os amigos, vá lá:

a gente desentende-se,  cansa-se, não se encaixa mais.

Como se achou, se perde; como começou, acaba. 

Mas com parentes, com um irmão de minha mãe, que vinha sempre nos visitar, que era quase de casa,  não parece ser uma coisa correta.

E pior, já nem lembramos mais a razão da briga.

Com ele, está a tia Ambrosina, um pouco mais gorda e mais velha;  e minha priminha,   Corina, que era uma garotinha baixinha,  morninha, sem sal, de uns dez anos de idade. Naquela época, claro.

E agora? O que fazer? Abrir ou não abrir?

E depois de abrir, visto a carranca de brabo, que uso para os que vêm pedir uma “lembrancinha”,  ou uso o semblante alegre, próprio para  véspera de Natal?

Tio Ernesto, com certeza, veio preparado.

O que ele terá em mente? Será que quer recomeçar a briga?

Na certa veio pedir satisfações; quer vingança; quer um ajuste de contas.

Não é à toa que ele trouxe a Tia Ambrosina a tiracolo.

Será que eles estão armados? Não, este é um pensamento muito feio, cínico demais.

E se tiverem vindo em paz? Imagino o embaraço do momento. E as desculpas murmuradas .

 Não, desculpas nunca, ele não é tipo de se arrepender.

Mas nós, também, somos duros, difíceis. Não damos o braço a torcer.

Bobagem de parte a parte. Uma grande bobagem.

Enquanto ocorrem estes pensamentos, o tio Ernesto já tocou  a campainha três vezes.

E nós ainda não atendemos. Ele deve ter percebido que tem gente em casa.

Será que ele vai insistir , ou vai embora e não volta mais?

Olho novamente pelo olho mágico.

Eles foram embora.

E aí, vem o arrependimento; cavalgando, apertando, atropelando.

Viro a chave, puxo o cadeado, tiro o ferrolho, abro a tramela, levanto a trava.

Finalmente, abro a porta e chamo: Tio Ernesto! Tia Ambrosina!.

Eles já estavam chegando ao fim do quarteirão.

Param, olham para trás, com uma expressão de incredulidade...

- Venham, entrem, que bom que vieram, passem por aqui, por favor;

- Sentem-se, fiquem a vontade...

- Esta é a Antonieta, minha esposa, lembram-se dela? na ultima vez que os vimos, éramos apenas namorados... Sente aqui, Antonieta, faça-nos companhia.

O constrangimento vai-se, aos poucos; a conversa começa a fluir, as lembranças reaparecem, trocamos notícias de tantos parentes que não vemos mais.

Tenho que me desculpar por não tê-los procurado. Cabia a mim desfazer qualquer  equívoco e restabelecer o relacionamento, de uma forma civilizada. 

Dizem que a vida agitada de S.Paulo é culpada por este distanciamento entre as pessoas.

Não é verdade, não.

É a nossa preguiça diante das distâncias; e a falta de comprometimento com os outros..

Mesmo que a gente goste e sinta falta de um bom papo, teria que sair de casa, tomar um ônibus em Santo Amaro, trocar por outro na praça João Mendes e, chegando no Belenzinho,  andar outros quatro quarteirões; é uma empresa para heróis.

Enfim, eu não fui, mas eles vieram.

A conversa é boa, a troca de idéias, os sorrisos, 

Quando dou por mim, é meia noite.

Eles se despedem. Bom Natal! Bom fim de ano! Um feliz 2010!

Ainda tem ônibus a esta hora?

Sim, com certeza.

Outros sorrisos,  pancadinhas nas costas, abraços e a promessa – apenas uma promessa, viu? – que a gente vai se ver outra vez, logo.

Fiquei contente – e um pouco arrependido por não ter sido eu, a tomar a iniciativa desta visita.

Afinal não foi chata, nem difícil; foi alegre, gostosa, muito agradável. E me tirou da consciência um peso que não sentia, mas estava lá. 

 

 

Na manhã seguinte, logo cedo, toca o telefone; é o meu primo Geraldo – outro que quase não vejo, porque nunca temos tempo.

Entra logo no assunto.

- Lembra-se do tio Ernesto e da Tia Ambrosina?

- Claro que sim. Eles vieram....

Mas ele me corta a palavra, afobado:

- Estavam passando férias nos Estados Unidos; sofreram um acidente feio de carro e  faleceram; foi na semana passada, mas só fiquei sabendo agora.  Sei que vocês tinham brigado, mas achei que devia avisar....

   

Fiquei em estado de choque: estou diante de duas realidades diferentes, irreconciliáveis.

O tempo é apenas uma ilusão?  Ou é a vida inteira, que não passa de uma ilusão?     


Autor: Romano Dazzi


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