Individualidade



É estranho como as coisas mudam não é? Já passavam das 18:00 horas quando Wanter se levantou do sofá para cumprir um ritual diário. Desligou a televisão e se dirigiu à cozinha, um pouco tonto por ter se levantado muito rápido. Abriu a segunda gaveta da pia e tirou de lá um pacote de palhas para cigarro e os fósforos. Com uma faca, cortou um pedaço de fumo de corda, que sempre estava acima do fogão à lenha pendurado em um prego.

Foi até a varanda e sentou em sua cadeira de balanço. Colocou o que trazia consigo encima do banco ao lado da cadeira e puxou seu rádio AM/FM de trás do banco, lugar estratégico que poucas pessoas sabiam.

Ligou em sua rádio preferida em um volume baixo, pegou a faca e o fumo, e começou a se embalar na cadeira enquanto cortava o fumo na palma de sua mão.

Walter reparou que as coisas na sua rua não eram como antes. Quando seu filho era pequeno, 12 para 13 anos, a rua estava sempre cheia e movimentada de crianças brincando e correndo. Hoje em dia é raro ver alguma criança saindo de casa para brincar, apesar de haver muito mais casas e pessoas agora do que havia há 20 anos.

Walter olhou para frente e observou sua vizinha, que estava com a cortina aberta, entrar no quarto, jogar a mochila encima da cama e se dirigir ao computador. Ouvindo seu MP3, sentou-se na cadeira giratória rosa e se balançou um pouco, aguardando o computador ligar. Ela tinha 13 anos e estudava no período da tarde.

“A atual base de usuários de celulares no país de 87, 4 milhões de aparelhos.” (2009)

Pouco depois de ela começar a fuçar suas coisas no computador, a mãe abriu a porta e começou a falar algo com a filha. Walter somente acompanhava o movimento da boca de ambas, tentando decifrar alguma coisa. A mãe fechou a porta e logo depois voltou com um prato com alguma coisa que parecia ser um sanduíche e um copo de chocolate. A menina comia e bebia olhando para a tela do computador, que naquele momento era azul, e Walter logo identificou como sendo uma tela do “Orkut”.

Walter, apesar da idade um pouco avançada, sempre estava muito ligado a todas as novidades sobre todos os assuntos, lia muito jornal, revistas e acessava a internet, onde, além de se manter bem informado, comprava livros em sebos online. Tinha uma biblioteca razoável em casa e sempre que ficava sabendo sobre algum livro novo, corria para as lojas para ver os preços.

Com a paciência de um artesão, Walter estava terminando seu cigarro quando ouviu um barulho alto, como um estouro. Olhou sob a casa de um dos seus vizinhos e viu algumas faíscas que saíam de um poste.

Logo, seu rádio desligou. Walter voltou seu olhar para a casa de sua vizinha e viu que ela parecia muito irritada por seu computador ter desligado. Ambos perceberam que a luz tinha ido embora, e que pelo estouro, demoraria muito tempo para voltar.

É incrivelmente estranho como as pessoas não vivem sem luz hoje em dia, parece que elas aprenderam a ter medo do escuro, ou simplesmente não conseguem ficar sem ouvir sua música no rádio, seu reality-show na televisão, ou não poder aquecer rapidamente suas refeições no microondas.

Walter continuou sentado, acendeu seu cigarro e começou a se balançar na cadeira. Percebeu que na casa ao lado, um menino e seu irmão saíram para o quintal conversando, um deles coçando o olho, e ambos com cara de sono. Um deles entrou embaixo da casa e pouco tempo depois empurrou para fora uma pequena trave de ferro, que foi posicionada perto da escada da casa. O menino saiu debaixo da casa batendo as mãos nos joelhos para limpar as calças, enquanto seu irmão trazia uma bola de futebol velha, mas em bom estado.

“O Brasil tem 33,3 milhões de computadores espalhados pelo país.” (2009)

Os meninos começaram a jogar e logo apareceram outros meninos, que também entraram na partida. Era algo como “si contra si”, sem regras, mas muito divertido.

Da casa da frente, mais a direita, um menino saiu, era filho de um vizinho que Walter quase nunca via. O menino parou no portão, olhou para um lado, e para o outro, e logo chegaram mais dois meninos. Os três foram até a frente da casa, no canto da rua, até que um deles posicionou seu calcanhar contra a terra, e começou a girar. Walter logo reconheceu aquela cena, e se levantou para ver. Após fazer um buraco, o menino limpou as laterais e contou alguns passos, fez uma linha e todos se posicionaram atrás dela. Cada um tirou do bolso algumas bolinhas de gude, e lançaram em direção ao buraco.

Walter tentou puxar em sua memória, mas não conseguiu lembrar a ultima vez que viu alguém jogar bolinha de gude, muito menos em sua rua. Voltou seu olhar a janela de sua vizinha, viu que agora ela estava no celular, tentando alguma ligação, mas pode perceber que tinha algo errado com o celular.

Imaginou que a antena poderia ter ficado sem energia, e como não sabia se isso afetava mesmo os celulares, resolver verificar em seu próprio aparelho, que acusava falta de sinal naquele momento.

Olhou ao longe, no final da rua, e viu que quatro meninas vinham e uma delas estava segurando uma bola de vôlei nas mãos. Ao chegar perto da esquina, mais ou menos 60 metros da casa de Walter, fizeram um círculo, e começaram a tocar uma para a outra em movimentos conhecidos do vôlei. Contavam de um a três, e quando chegavam ao três, cortavam em direção a outra menina, tentando elimina-lá do jogo. Três cortes.

Logo chegaram mais pessoas, meninos e meninas que aumentavam cada vez mais o círculo humano buscando jogar com elas.

“Orkut registrou 26 milhões de usuários em setembro.” (2009)

Walter ouviu um barulho de lata, mas não soube identificar de onde vinha. Subindo a rua que dava ao lado da casa de sua vizinha, ele viu que alguns garotos vinham chutando duas latas e segurando alguns pedaços de pau nas mãos. Eram tacos, e eles rapidamente posicionaram as latas e fizeram um buraco em frente a cada uma delas, para apoiar os tacos. Bets, ou Betes. É difícil lembrar como escreve, mas o jogo é difícil esquecer. Walter sentiu vontade de correr e jogar junto. Ele andou calmamente até o portão de sua casa para poder observar mais de perto, enquanto os meninos lançavam a velha bola de tênis em direção ao batedor, que quando acertava, corria junto com seu companheiro para bater os tacos e marcar pontos.

Aquele momento a noite começava chegar e uma lua cheia começava a se armar no céu. Primeiro em tons avermelhados, clareando aos poucos e mais a noite, branca como a neve.

A roda de vôlei se desfez e a bola ficou ao lado da rua. Todos saíram correndo, ao mesmo tempo em que uma das meninas tentava pegar os outros. Pega-Pega. Aqui no sul tinha o nome de “MÃE”, mas Walter nunca soube por que.

Era incrível ver as crianças e adolescentes correndo, se divertindo, vivendo, longe da solidão que é o mundo atual. As pessoas se tornaram individualistas demais. Os adolescentes perdem mais tempo na internet se expondo a pessoas que nem conhecem, do que conversando com seu próprio vizinho, que mora ao lado a mais de 10 anos e a menos de 5 metros de sua casa.

“Brasil tem 35,5 milhões de usuário de internet em casa ou escritório” (2009)

Por onde olhava, Walter via cada vez mais crianças e adolescentes chegando. Viu uma rodinha de meninos com figurinhas de coleção, umas sob as outras, e logo um deles fazia uma concha com a palma da mão e batia sobre elas, pra ver quantas conseguia virar. Viu vários meninos e meninas se escondendo enquanto um deles contava até 50 em uma árvore. Pik-Esconde, ou simplesmente, brincar de se esconder.

Walter notou que via aquelas crianças e adolescentes somente quando elas estavam indo ou voltando da escola. Nunca tinha visto nenhuma delas interagindo umas com as outras.

Nesse momento Walter olhou mais uma vez para sua vizinha, que agora estava na janela observando a movimentação na rua, mas sem esboçar nenhum movimento para sair de casa. De cara fechada, tentava insistentemente movimentar seu celular para ver se conseguia sinal.

Nesse momento, Walter viu uma coisa que realmente não achava que fosse possível. Três quadras dalí, na única rua asfaltada, viu dois meninos descendo com um carrinho de rolimã. Um deles sentado e o outro em pé, com as mãos nos ombros do que estava sentado e dando empurrões com um dos pés. Walter observou eles descerem algumas vezes, e em uma delas, eles levaram um tombo que fez um deles sangrar no joelho e no cotovelo.

Depois de alguns minutos, voltaram a descer, e desta vez com mais velocidade e com gritos de ambos. Era incrível ver o que uma simples queda de luz provocou em sua rua.

“A média de cada usuário de internet no Brasil é de 66 horas e 24 minutos por mês.” (2009)

A menina que estava na janela finalmente conseguiu sinal de celular, e parecia falar rapidamente com alguém. Fechou a janela depois da ligação e saiu até a rua, ainda com a cara amarrada, segurando uma corda em mãos. Posicionou-se segurando as pontas da corda, tomou ar, antes de começar a bater a borda e pular ao mesmo tempo. Logo duas amigas dela chegaram, cada uma com um celular em mãos, cabelo impecavelmente arrumado e fones nos ouvidos. Não sei como conseguiam conversar.

Todas deixaram seus aparelhos na varanda da casa da menina, foram para a rua e sem se preocupar com nada, começaram a pular corda, cantando músicas que Walter não escutava há muito tempo.

Talvez elas tenham aprendido as músicas em alguma comunidade virtual, ou talvez tenha um jogo online onde o participante tem que usar o mouse para pular uma corda desenhada na dela do computador. Parece ironia não? Mas existem comunidades que debatem, na individualidade de cada usuário, como as coisas mudaram e como as pessoas estão cada vez mais reservadas a si mesma, em frente aos seus aparelhos. Todos têm uma opinião formada sobre o assunto, geralmente uma crítica cruel a isso, mas nenhuma delas faz algo para mudar. Acomodação. Talvez seja mais fácil sentar e usar os dedos para criticar a sua própria situação.

Walter olhou para frente e um garoto o fitou como se quisesse dizer alguma coisa. O menino começou a cantar uma música e Walter deu um pulo de sua cadeira e acordou.

A mesma música que o menino começara a cantar estava tocando em seu velho rádio. A noite já tinha caído sobre a cidade. Ele olhou para a casa de sua vizinha e viu que o cenário não havia mudado, que a luz não tinha caído e que a rua continuava deserta como sempre. Com frio, desligou o rádio, recolheu suas coisas e entrou.
Autor: Tiago Beims


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