ACRE: de Galvez a Chico Mendes



“Acho que vamos mostrar ao Brasil um lado bonito da história do nosso país... Uma história que contada com talento, vai emocionar muita gente” (Extraído do Jornal Pg20 de 07/02/06)

A história é descontinua já diriam Nietzsche e Foucault. Como agrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos e relacioná-los em um único princípio organizador? A regularidade histórica é um efeito de sentido criado pela ideologia. A ideologia se materializa na linguagem, que é inerentemente dialógica. Então, como levar a sério uma história do Acre pasteurizada pela TV Globo e comercializada como entretenimento?

A minissérie “Amazônia: de Galvez a Chico Mendes” escrita pela acreana Glória Perez tem estréia marcada para janeiro de 2007. A novelista pretende contar a história do Acre do processo de anexação do Acre ao Brasil até os empates nos anos 80. Para isso, já convidou os globais José Wiker para interpretar Galvez; Alexandre Borges, para representar Plácido de Castro e Cássio Gabus Mendes, para fazer o papel de Chico Mendes. As gravações começam em breve e contam com cerca de 40 atores e 110 figurantes.

O título da minissérie já nos diz muita coisa. É uma história feita de homens, do início ao fim, de Galvez a Chico Mendes. É uma história feita por heróis - não é uma história da “Revolução Acreana” aos Empates - mas de Galvez a Chico Mendes. É uma história em que o Acre não passa de uma desculpa para se falar da Amazônia e da cobiça internacional pelas suas riquezas – não é Acre, mas Amazônia: de Galvez a Chico Mendes.

É exatamente a cobiça das riquezas da Amazônia que torna o Acre de Galvez verossímil ao de Chico Mendes. Em ambos os casos, a expansão do capitalismo produziu uma catastrófica desigualdade social. Em ambos os casos, o desejo de lucro foi o motor principal. Em ambos os casos, a morte foi banalizada – em Galvez, acreanos mataram índios, índios mataram acreanos, acreanos mataram bolivianos; em Chico Mendes, acreanos mataram acreanos, paulistas mataram acreanos, e acreanos mataram paulistas.

Mas como diz a epígrafe desse artigo, a história do Acre vai ser contada com talento. Talento para mostrar os seringalistas, juntamente com o governo do Amazonas, patrocinando um movimento armado por motivos patrióticos. Talento para mostrar como revolucionário, um movimento que ficou indiferente à semi-escravidão do seringal. Talento para representar o Acre como um grande seringal, totalmente ruralizado, sem vida urbana. Enfim, talento para tornar a história da concentração de renda, do autoritarismo, da chacina e dos desmatamentos, num “lado bonito da história do nosso país”.

No mundo midiático tudo é possível. O Jornalista José Arbex no livro “O jornalismo Canalha” referindo-se à Guerra do Iraque em 2003 assim fala: “como foi possível falsificar as imagens e os cenários de um conflito transmitido ao vivo?”. Ora, se conseguiram fazer essa façanha num fato transmitido “on-line”, que dirá com acontecimentos já empoeirados pelo tempo.

O Acre de Galvez é o mesmo de Neutel Maia. O Acre de Plácido de Castro é o mesmo de Gabino Besouro. O Acre de Chico Mendes é o mesmo de Darly Alves. Como separar o protagonista do antagonista? Ambos contracenam num mesmo palco: o Acre. Então, como fazer com que se orgulhem de um Acre em que viveu Chico Mendes, se nesse mesmo Acre palmilharam dezenas de Darlys.

A mídia é uma máquina de construir sentidos. Sentidos fortemente marcados por relações de poder. Sentidos regrados por uma ordem do discurso que estabelece aquilo que se pode e se deve dizer. Nessas condições, toda história é feita de censuras, pois há seleção, classificação e hierarquização dos acontecimentos. O silêncio nas vozes das personagens e o não-mostrado nas cenas filmadas formam os bastidores desse processo de significação.

Em breve, as cortinas do circo serão abertas e o Brasil inteiro vai se divertir com a história do Acre. O espetáculo será em horário nobre. Pipoca de milho suíço e coca-cola - patrocinadora da seleção brasileira – não podem faltar. O show será o Acre. Morte, traição, patriotismo e triângulo amoroso farão parte do enredo. Nossa, que exótico! A história do Acre é mesma diferente do “resto” do Brasil, não é verdade?
Autor: eduardo de araújo carneiro


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