Seria apenas uma Galinha ?
Neste conto de Clarice Lispector, tem se um movimento de ida e volta, de saída à rua e de nova reclusão, da súbita experiência de liberdade e de auto -descoberta, mesmo que seguida de nova alienação.
"Uma galinha" é uma espécie de fábula irônica. Um domingo, a galinha escolhida para ser comida no almoço escapa do quintal e foge pelos telhados, perseguida pelo dono da casa improvisado em roupas de banho. Este, finalmente, a alcança, levando-a de volta e depositando-a com certa violência no chão da cozinha, instante em que ela, de susto, põe um ovo e se salva, já que a menina da casa, seguida do próprio pai, reconhecem neste um filho, único motivo para a sobrevivência da galinha.
Como não reconhecer aí o mesmo movimento de outros contos de Clarice protagonizados por mulheres? há expressões que se aplicam à galinha mas que valem para o estereótipo feminino. Como não ver a mulher passiva e doméstica de tantos outros momentos da obra que subitamente tenta um gesto, mesmo que fugaz, de independência, nessa galinha "estúpida, tímida e livre" que "tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar sem nenhum auxílio de sua raça"? Mais ainda se observarmos que o ovo salvador é como um filho "prematuro" e que a galinha "nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada"? E, sobretudo quando a ela se aplicam as expressões: "jovem parturiente", "esquentando seu filho", "correr naquele estado", "rainha da casa" e "deu à luz"?
Como não ver na representação da galinha, a figura da mulher, uma extrema ironia por parte de Clarice que não ignora a utilização da palavra galinha para significar mulher da rua, mulher fácil, mulher de muitos homens? Resgatando a dignidade da galinha e encarnando nela a mulher objeto, Clarice discute ironicamente essa grosseira comparação.
Se juntamos portanto ao movimento de saída à rua e volta à casa com o que ele significa como tentativa de desalienação da mulher, a essa disputa com o homem, chegamos a iluminar outro aspecto que me parece da máxima importância em Clarice e que considero um ponto cego da crítica tanto quanto o foi, por muito tempo, a desconsideração do feminino nessa mesma obra . Trata-se da descoberta da pobreza por essa mulher confinada e protegida por um bom negócio matrimonial, mas reduzida a mecânicos atos quotidianos de auto-anulação, infeliz e culpada. A descoberta da pobreza dá-se junto com a auto-descoberta como consumidora e parasita social, o que, de modo fulminante, desvenda o sem sentido da sua vida e da vida dos homens numa cidade grande que expõe talvez mais duramente os contrastes de uma sociedade injusta.
Como uma galinha, essa mulher é e não é e, depois de muito pensar é como se não pensasse nada. Como se diz em "Felicidade clandestina": "Para falar a verdade, a galinha só tem mesmo é vida interior.
Bibliografia:
Texto extraído do livro “Laços de Família”, Editora Rocco — Rio de Janeiro, 1998, pág. 30.
Autor: Helen Souza Isidoro Soares Alvares
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