Um viés da mídia alternativa e comunitária



Dentre os estudiosos da comunicação, não há um consenso sobre a terminologia adequada para designar as comunicações alternativas à grande mídia. Existem divergências também quanto ao viés dessas mídias alternativas. Enquanto alguns consideram-nas como um tentáculo da grande mídia, outros a concebem como uma ruptura ao modelo massivo comunicacional. O artigo propõe-se a discutir os conceitos relacionados a esse tema e busca embasamento conceitual na monografia de conclusão de curso produzida por AVELAR et al.

A comunicação alternativa ou comunitária ou, ainda, popular, compreende os jornais que circulam fora da grande imprensa. Será aqui analisada pelo viés da oposição à comunicação de massa. Constrói-se baseada em uma proposta de transformação social, e difere-se da última quanto ao conteúdo, formato e ideologia. Opta-se por alternativo, comunitário ou popular, considerando-se qual aspecto deseja-se ressaltar em determinada comunicação.
Enquanto os meios de comunicação de massa avançam em prol da homogeneização, alienação e padronização dos valores e hábitos de consumo, a mídia popular propõe um resgate da cultura local, recupera a identidade e valoriza a tradição daquela comunidade. Os meios de comunicação atuam como mediadores na construção da realidade e identidade cultural. A cultura popular é uma das maiores capacitadoras da transformação e construção de sentido de interesses coletivos para o bem estar de todos.A construção da identidade de uma dada comunidade está ligada à participação, consciência e valorização da realidade sócio-cultural de um indivíduo em seu meio.Fazendo uso de interesses coletivos e comuns, de reivindicações sócio-econômicas e políticas de uma identidade local, a mídia popular reforça os princípios, valores e costumes locais. Na contramão da internacionalização e massificação propostas pela primeira, a comunicação popular contribui para a preservação e propagação de perfis históricos e ideológicos específicos de um determinado povo.

Para analisarmos a concepção de comunicação alternativa, podemos utilizar uma definição básica. Segundo o dicionário “alternativo. 4. Que não está ligado aos interesses ou tendências políticas dominantes: imprensa alternativa”. O termo alternativo implica, portanto, na adesão a pautas, agenda, linha editorial e canais de comunicação distintos daqueles utilizados pela grande mídia. Dessa maneira, esse tipo de comunicação propõe-se a agir em favor dos interesses populares e contra o sistema vigente, por meio de uma construção conjunta com a população local e pode ser entendida, de certa forma, como uma luta de classes. Nesse sentido representa a oposição das classes oprimidas contra as classes dominantes, do modelo marginalizado da grande empresa de comunicação contra o modelo massivo. Dentro dessa concepção, a mídia alternativa não pode ser compreendida como complementar a este, mas sim como antagônica e excludente. Uma vez que se propõe a tratar de temáticas sociais de interesse de populações locais que não são abordadas pela imprensa tradicional.

No contexto da pequena comunicação, a mídia comunitária é o termo mais usado atualmente e corresponde ao meio de comunicação utilizado por uma comunidade insatisfeita, capaz de resgatar as forças políticas e transformadoras por meio da criação da consciência cidadã. Sustenta-se sobre os pilares da politização, conscientização e resgate da cidadania de um determinado grupo. Por um lado os meios de comunicação de massa representam os interesses da classe dominante, alienam e pervertem os interesses de populações desfavorecidas, por outro, a mídia comunitária procura dar voz ao povo, o organiza e politiza. Mais do que reivindicadora, ela apresenta-se como mediadora na construção de uma nova realidade para essa comunidade. Ela é estruturada como um instrumento catalisador das forças sociais da comunidade para qual é criada e mantém uma angulação e linha editorial organizada para tal fim.
É importante ressaltar que a construção desse tipo de mídia é feita de forma horizontalizada e democrática, sendo primordial que todos participem e comunguem dos mesmos objetivos. A participação da comunidade por meio do veículo é o caminho definidor na construção da cidadania. Segundo AVELAR et all, um dos problemas enfrentados pela comunicação comunitária é sua restrição a uma parcela da população que, geralmente, corresponde às pessoas politicamente articuladas e engajadas presentes na área social da comunidade a qual pertencem. Enquanto que a comunicação de massa ganha mais espaço na sociedade, pois atinge a um número maior de pessoas em um espaço de tempo menor. É justamente esse alcance a um público limitado que determina o efeito restritivo daquela mídia.

Ainda ao utilizar as idéias dos autores, se pode concluir que a importância da mídia comunitária ocorre da participação desse veículo na transformação e na criação de uma realidade mais decente para pessoas excluídas, sendo essencial seu envolvimento nas questões sociais. É importante ressaltar que é a única mídia capaz de alcançar os movimentos culturais e reivindicatórios. Nem o poder público nem a grande mídia cobrem as necessidades das comunidades locais.

O Loucutor - Um estudo de caso

Por meio da iniciativa dos usuários e técnicos do Centro de Saúde Mental do Barreiro (Cersam-Barreiro), foi lançada, no ano de 1994, a primeira edição do jornal “O Loucutor”. O veículo surgiu como um instrumento político, capaz de representar e defender a ruptura com o tratamento segregacionista e manicomial, predominante durante anos como única forma terapêutica no tratamento das doenças mentais, no Brasil. Desde sua primeira edição, “O Loucutor” foi trabalhado para atuar fundamentalmente como estratégia de tratamento dos usuários do Centro. Para tal, essa mídia conta com a participação desses usuários em sua produção, proporciona-lhes um espaço de comunicação e socialização, e atua como um dispositivo clínico. Apesar de adversidades financeiras e técnicas, “O Loucutor” teve dez edições circuladas entre os anos de 1994 e 1997.

O jornal foi retomado em 2005, em parceria com a Universidade Fumec, como um projeto de Extensão interdisciplinar dos cursos de Comunicação Social e Psicologia. Desde o início do projeto pudemos observar que a ótica dos profissionais e estagiários da psicologia e a do jornalismo têm sido divergentes no que se refere ao conteúdo e objetivos do jornal. Enquanto o jornalismo comunitário configura preocupações informativas, politizantes, conscientizadoras e reivindicatórias, a visão da psicologia privilegia o espaço terapêutico oferecido pelo veículo.

Em maio de 2005, foi lançada a primeira edição do jornal, dentro desse projeto. Essa edição manteve estrutura semelhante às edições anteriores, sendo dividida nas seções “Loucutando”, “Especial”, “Loucultura” e “Mural”. A primeira seção contém opinião, notas de usuários e de envolvidos no projeto. A editoria “Especial” traz matéria e entrevista sobre a temática da edição, nesse caso, o dia nacional da Luta Antimanicomial. A terceira é composta de desenhos, textos e poemas produzidos por usuários do Cersam. Finalmente, “Mural” contém a agenda de 2005, os endereços do atendimento público na saúde mental e a nota do editor. Essa tiragem, de três mil exemplares, teve sua distribuição realizada entre usuários, técnicos, familiares, instituições de Saúde e alunos da Fumec. O veículo configurou-se horizontalmente. A participação e colaboração do usuário foram imprescindíveis para sua construção. Em função de priorizar a participação dos usuários na construção de conteúdo, do ponto de vista técnico e jornalístico algumas matérias ficaram prejudicadas. No momento em que esse texto é escrito tais questões ainda são objetos de discussão, um dos frutos que a extensão deve render. Uma vez que a atividade extensionista é uma produção acadêmica, voltada para o aprendizado, e não deve preocupar-se somente com a prática como também com a análise do que é produzido.

A partir da conceituação de mídia alternativa e comunitária, realizada na primeira parte desse artigo, pode-se compreender aspectos de relevância desse projeto. O desafio de “O Loucutor” é atuar tanto como instrumento clínico quanto como veículo de comunicação popular e coletiva. A exclusão de qualquer dos aspectos implicará no fim da interdisciplinaridade do projeto. O jornal estrutura-se como um equipamento eficaz no resgate à cidadania, politização, consciência e auto-estima do doente mental, porém, ainda, não é produzido pela comunidade do Barreiro e tampouco catalisa suas forças sociais. Quando alterado esse aspecto, o impresso terá alcançado um de seus objetivos de maneira eficaz. O jornal apresenta-se como dispositivo terapêutico na medida em que oferece uma oportunidade de socialização, reconhecimento e expressão para um determinado grupo. Na medida do possível, é um instrumento contestador que utiliza a linguagem popular na busca de melhoria da rede básica de saúde mental.

Toda a edição é construída em conjunto com os portadores de sofrimento mental, que não só sugerem o conteúdo como até mesmo produzem-no. Pode-se dizer que é um instrumento clínico participativo e engajado.
A problematização proposta pelo artigo nos remete, na prática, à hipótese de que o conceito de mídia comunitária pode ser revisto. Como apresentado anteriormente, esse conceito implica na utilização de um veículo por uma população delimitada física e geograficamente, geralmente um bairro ou comunidade. A experiência com o jornal “O Loucutor” permite traçar a hipótese de uma nova classificação, considerando sua especificidade. Um veículo que representa a luta pela melhoria do atendimento à saúde mental e aglutina forças dentro da própria rede de saúde pode ser visto como uma mídia comunitária-especializada. Embora não vivam em uma mesma região, os afinados com a rede básica de saúde mental compartilham dos mesmos interesses sociais e formam uma comunidade específica.


Referências Bibliográficas

AVELAR,Fernanda; PORTO,Karine; CORRÊA,Patrícia e FERREIRA,Sinária. Comunicação popular nos dias de hoje: análise comparativa entre o jornal dos bairros e o jornal do Barreiro. Monografia de conclusão de curso. Belo Horizonte: Universidade Fumec, 2004.
Autor: Camila de Oliveira Guimarães


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