CRISE ÉTICA, CRISE NORMATIVA OU DECADÊNCIA DOS PRINCÍPIOS MORAIS?



Muitos devem estar se respondendo: ora tudo isso representa a mesma coisa e, eu pergunto: será? A tendência ocidental pós-moderna é agregar tudo no nada, é criar conceituações, perpetuar paradigmas, em busca de segurança, acolhimento, pertencimento, mas o que acontece muitas vezes é oposto, estigmatização, segregação, discriminação. A questão é que o risco reside em se perder nesse maquinário e não vivenciar a realidade das coisas e, em buscar sempre e não se abrir para experienciar nunca.
Os princípios morais como bem se definem são representantes de uma moral instituída, moral esta criada para assegurar a fantasmagórica universalidade dos direitos dos sujeitos, se matar vai pagar – não me refiro aqui à forma de punição-, respeite o próximo, não faça ao outro o que não quer que façam a você, enfim, lógicas dos princípios e das regras sociais. E as normas? São as regras que norteiam, que subsidiam a moral. A priori parece uma prerrogativa saudável, afinal evita-se o caos, parte-se em busca da ordem. A resposta seria simples, se a parte integrante da questão não fosse tão complexa: a difícil tarefa de ser e estar humano. Humanos: seres desejantes, com um agravante, a única espécie que reconhece, ainda que, atenuado por crenças, dogmas, espiritualidade, o peso e a certeza de sua finitude.

Isso tudo pode parecer tão distante dessa discussão, mas não está. Está presente, dentro, tão homogêneo que esquecemos de perceber, de sentir, de ouvir... Mas será que tentamos? Queremos? Dialética contida numa constante espiral. O que acontece nos dias atuais? Então por que esse estranhamento, essa afetação? Sintomas de uma angústia social ou será a angústia existencial refletida no grupo social, onde normas e moral não suportam mais tanta demanda?

Há muito se vem tentando, definir, explicar o caos que se infiltra nas paredes rígidas, porém já porosas da moral e, ainda existem os tais valores, lembra? Na mídia as discussões acerca do tema estão em alta, em voga como se fala. Escuta-se: “os valores estão mudando, decaindo...” “as pessoas estão perdendo os valores”. Ao ouvir isso tenho a associação livre como se as pessoas fossem ações em grandes pregões, que desvalorizam, caem, sobem e, digo mais, não morrem vão à falência...

Acredito que até nas terminologias, nas formas de discurso, tendemos a mercantilizar tudo, “eu tenho meu valor”, “você não valoriza meu sentimento”, “tudo têm um preço”, “custa você me ouvir”, enfim percebem o quão introjetado está essa linguagem na nossa vida, a priori podem parecer expressões inofensivas, corriqueiras, sem essa finalidade mercantil, mas efetivamente simbolizam cobranças, permuta. Interessante é que se fala pouco em trocas, se há cobrança, valorização, desvalorização, por que se fala tão pouco ou quase nada de investimento nas relações, nos vínculos?

Não seria esse o grande ponto, o grande norteador dos princípios, das normas, dos valores? O capital e suas relações subjacentes, um parêntese, nós somos as relações subjacentes, nós somos o joguete de um grande imperador, encoberto por um discurso que prega a igualdade, veja que grande truque, como ter igualdade – e não falo dessa igualdade moldada nos padrões maniqueístas - em um mundo de diferentes? Que convivem, mas será que vivem-com? Será que cuidam de si cuidando do outro? Será que existe espaço para o outro? Ou, o outro, não é outro, mas é mero objeto? Estabelecemos então relações objetais, EU e o objeto?? Por que hoje o descomprometimento com o outro é tão manifesto? Há uma tendência a retomada do estereótipo mitológico do Pai totêmico, o qual deseja ser satisfeito ininterruptamente.

As relações emergem de uma sociedade onde existe a máxima: Dar e receber, receber e receber. Nascemos querendo receber tudo e mais um pouco, por gozar do princípio do prazer, como conhecido na velha nova freudiana. Na prática o principio do prazer não é associado com a realidade, ele representa um período de gratificação intensa e, mesmo que o bebê tenha sofrido inúmeras frustrações a idéia inconsciente será sempre de um período de plenitude ao qual ele fantasia, patologicamente ou não, retornar. Aos poucos as feridas narcísicas vão sendo desferidas, percebemos que existem os outros, com seus desejos, suas vidas, e que eles não são extensão contínua de mim, eles são indivíduos, são outros, já não somos tão onipotentes, então surge a segunda tópica: princípio da realidade. E qual é a ligação disso tudo com as transformações na esfera da ordem das sociedades? Bem a questão é que o mundo real não nos oferece tantas vantagens quanto o mundo fantasiado de outrora, constantemente queremos retornar ao principio de prazer, para encontrar a tão desejada quietude e satisfação. As normas e a moral surgem como estorvo a esse regresso, elas nos puxam para o real, para vivenciar a realidade, nos dita a dimensão na qual permanecemos, aí a finalidade das leis, sem elas estabeleceríamos patologicamente um corte com o real.

A ética emerge nessa relação dialógica entre o homem e sua existência. Éthos palavra grega que significa morada. Alguma semelhança? Então não é isso que buscamos? Morada, acolhimento, familiaridade? Através da ética buscamos sentido, buscamos subjetividade. Veja só, um sujeito tem um filho que chora faminto, o pai sem dinheiro algum entra em uma loja e pega um biscoito sem pagar, o que diz os princípios morais? É roubo, não pode. O que diz a norma? Vai pagar. E a ética? A ética não diz, ela se manifesta, ela se manifestou neste sujeito e transcendeu os princípios e as normas, não porque ele não os conhecesse, não porque não sejam conteúdos dele, não porque não tenham significado na vida dele ou ele os desconsidere, mas se pode dizer que ele ouviu o que lhe fazia sentido naquele momento.

Não é a norma ou moral que estão desconexas com o ser humano, mas o sentido que produz, a representatividade, a aplicabilidade. A presença de leis que regem sociedades, que fundam parâmetros para a vida em grupo, são repertórios indispensáveis para a construção da subjetividade, dessa forma sabemos que todo momento no nosso convívio esses interditos irão estar pautando, norteando nossas ações, ora sabemos que todo funcionamento possui seus princípios, as sociedades não difeririam. Acontece é que as regras vêm dotadas de homenidade, o que não significa que sejam humanistas, é feita por homens que fantasiam, que idealizam, que racionalizam uma sociedade quimera, mas que cada vez mais se afastam das possibilidades de sentir, de experienciar, por estarem baseadas em princípios e limites que estão ora muito além dos homens, ora muito aquém da existência.

Sob esse prisma, ética não parece diferente de moral? Nos faz sentir a ética como ontológica, isto é, parte presente do ser humano, não parece nada instaurado, mas uma eterna obra em construção, os pilares sempre corresponderão à história de cada um, cada um constrói sua morada, e é a partir desse sentimento de pertencimento que a ética torna-se diferente da moral, das normas, porque acolhe e compreende o sujeito nos seus desejos, na sua angústia, nos dá uma sensação de familiaridade, costumes. A crise ética representa, ao meu ver, o reflexo de uma conjuntura do ser humano na forma de lidar com as formas de ser e estar no mundo, frente a tantas incertezas, tantas desigualdades, tanto vazio, que muitas vezes obliteram a busca por sentido. Talvez a partir de reflexões nesse sentido, possamos caminhar em busca de novas formas de se pensar as normas, de se criar princípios, uma vez que não podemos ser tão utópicos para prescindir de tais determinações, mas podemos buscar aliviar esse estranhamento, produzido por esse desalojamento interior, no alojamento e ancoramento do campo ético, pautado no cuidado proposto por Leonardo Boff, grande autor que fala de ética, cuidado, finitude a partir de uma visão comprometida com os homens na condição de seres dotados de inquietações, limitações e buscas incessantes. Quem sabe dessa forma estaríamos falando em investimento, igualdade de diferentes, trocas justas, enfim, ética na existência...
Autor: Marjorie Vieira


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