Democracia realmente conduz à paz?



A teoria da Paz Democrática teve suas bases fundadas com Immanuel Kant, em seu tratado da Paz Eterna (1981).
Se felizes circunstâncias concorrerem para que sociedades fortalecidas e iluminadas resolvam se organizar numa república, - cuja natureza já predispõe em favor da paz perpétua, - isso irá promover um centro para uma união federativa, incentivando outros Estados a fazer o mesmo, e formando as condições seguras para a liberdade entre todos os Estados, de acordo com a idéia do direito das nações; e tal união irá se estender, no decurso do tempo, pela adição de outras conexões deste mesmo tipo (KANT, 1981).
Kant argumentava que a expansão persistente e gradual de uma federação de repúblicas liberais no cenário internacional fortaleceria a confiança nos direitos internacionais, diminuindo a probabilidade dos países democráticos entrarem em guerra entre si. O autor lança, desta forma, as noções que mais tarde se desenvolveram na Teoria da Paz Democrática.
Esta corrente teórica precisava explicar a seguinte anomalia: embora democracias sejam tão propensas ao confronto bélico como os Estados não-democráticos, elas irão hesitar a entrar em guerra com aqueles Estados reconhecidamente democráticos. A questão central seria, portanto, identificar quais as características especiais dos Estados democráticos que os constringem a não usar ameaças coercitivas, ou mesmo a não entrar em guerra, com outras democracias. Para tanto, duas argumentações foram desenvolvidas: uma em relação às constrições institucionais (decorrente de teorias estruturais) e outra sobre as normas e regras democráticas (decorrente de teorias normativas).
A estrutura política doméstica implantada pela democracia institucionaliza formas de constranger o governo a ser mais relutante ao tomar medidas bélicas por meio de três mecanismos: o sistema eleitoral para a seleção do corpo executivo, a acirrada competição política, e o processo pluralizado das decisões sobre política externa. Michael Doyle (1986) enfatiza o poder dos cidadãos descontentes ao manifestarem sua contrariedade por meio do voto, imputando seus custos pessoais à carreira política daqueles representantes mais beligerantes.
Uma segunda argumentação foca na percepção positiva que Estados democráticos desenvolvem sobre outras democracias. A mesma cultura, com suas noções e práticas, que permite a resolução pacífica de conflitos domésticos é aplicada na política externa de uma nação democrática. Tais Estados assumem igualmente que outras democracias fazem o mesmo, tanto em sua política doméstica, quanto nas suas relações exteriores. Esta concepção cria condições para interações positivas, promovendo a cooperação em torno de interesses comuns. A relação entre estes Estados se sustentaria, portanto, na crença de que a paz entre eles implicaria em benefícios múltiplos, sendo uma situação sempre desejável e facilmente mantida.
De outro lado, se uma democracia se depara com rivais não democráticos, o risco de que este rival use da moderação bélica inerente ao sistema democrático para prejudicá-la faz com que ela opte por responder com todas as armas e estratégias bélicas necessárias à sua vitória.
Quando uma democracia entra em conflito com um Estado não democrático, ela não irá esperar que o outro Estado se sinta constrangido por tais normas [de respeito mútuo provenientes da cultura democrática]. Ela pode se sentir obrigada a se adaptar às normas mais rigorosas da conduta internacional, para não ser explorada ou mesmo eliminada por aquele Estado não democrático que aproveite da moderação inerente às democracias . (RUSSETT, 1993).


Estes argumentos são contestados pela visão realista. O sistema internacional realista é marcado pela anarquia, caracterizando uma situação de acirrada competição entre os Estados pela manutenção da sua sobrevivência e luta por seus interesses. Neste sistema, há ausência de uma autoridade central capaz de fazer e implementar regras de comportamento que constrinjam as unidades estatais a não adotarem condutas ofensivas umas contra as outras. Os resultados das disputas bélicas são, portanto, potencialmente extremos, acarretando desde a perda de parte da autonomia e, conseqüentemente da soberania, pelos vencidos, até a ocupação ou sua completa extinção. Num cenário realista, o medo e a desconfiança entre os Estados é a condição normal, e principal, das relações internacionais. Desta forma, tentativas de cooperação são sempre frágeis e implicam em ganhos e perdas de poder que podem modificar o equilíbrio internacional, provocando, inclusive, guerras mundiais. Não haveria como escapar dos dilemas em favor da segurança, pois os riscos de ignorá-los seriam muito altos.
Desta forma, os realistas baseiam-se nesta análise de contexto para defenderem que, ao contrário do argumento professado pela paz democrática, mudanças na política doméstica dos Estados não alteraram a dinâmica de poder do sistema internacional, cuja natureza anárquica continuaria a promover o medo e a insegurança entre os Estados. Tal perspectiva enfatiza, portanto, que os Estados democráticos irão sempre responder à lógica da situação em que se encontram, mesmo que isso possa significar resultados indesejáveis, como a guerra com outras democracias (LAYNE, 1998).

2.4.2- Como o Liberalismo produz a Paz Democrática
John Owen (1998) expõe como os argumentos liberais conseguem responder às questões apontadas pelo realismo.
As idéias liberais seriam a variável independente que influi na política externa das democracias liberais . Tais idéias sustentam três variáveis interdependentes: a ideologia liberal, as instituições domésticas democráticas, e o reconhecimento mútuo entre democracias; os quais irão moldar a política externa. A ideologia liberal proíbe a guerra contra outras democracias liberais, mas, algumas vezes, pede a guerra contra Estados não-liberais. As instituições democráticas permitem que as opiniões e preferências dos cidadãos liberais afetem a política externa e, conseqüentemente, as relações internacionais. Para tanto, é imprescindível que os Estados se percebam enquanto democracias, a fim de que a relação entre eles se sustente na confiança e identificação de interesses comuns.
A ideologia liberal é universal e tolerante. Embora crenças e culturas possam diferir no cenário mundial, os liberais argumentam que todas as pessoas compartilham do mesmo interesse de auto-preservação e bem-estar material. Há, portanto, uma harmonia de interesses entre todas as sociedades. Para que esta harmonia se realize, no entanto, cada indivíduo precisa ter liberdade para seguir suas próprias preferências, até o ponto em que não prejudiquem os direitos de liberdade alheia. Desta forma, a cooperação seria do interesse geral, levando as pessoas a evitarem o uso da coerção e da violência para que a harmonia se instale nas relações sociais.
Os liberais também argumentam que nem todas as pessoas e nações são livres. Para tanto, duas condições são necessárias: que as pessoas ou nações sejam instruídas ou iluminadas de forma a ter consciência de seus interesses e de como eles devem ser assegurados; e que elas vivam dentro de instituições igualmente iluminadas, as quais irão permitir que os verdadeiros interesses nacionais moldem a política. Cabe, portanto, às instituições domésticas proteger o direito dos indivíduos ao governo autônomo de suas preferências, outorgando a eles formas de poder sobre seus governantes que previnam a tirania. Estes objetivos são viabilizados por meio da liberdade de expressão, a qual permite que os cidadãos avaliem as diversas alternativas para a política externa, e o sistema de eleições competitivas, possibilitando a punição de representantes políticos que violem os direitos liberais. O liberalismo acredita que as pessoas que lutam e sustentam a guerra devem ter o direito de serem consultadas na decisão bélica (OWEN, 1997).
Há ainda um terceiro ponto imprescindível ao alcance da Paz Democrática: as democracias precisam acreditar que os outros Estados com os quais elas iram buscar relações pacíficas são igualmente democráticos. Isto significa que não basta que os demais Estados se reconheçam democráticos, é preciso que a percepção dos cidadãos daquela democracia seja neste sentido. A presença de mecanismos de constrição dos governos não é suficiente para assegurar a cooperação e a harmonia, é preciso que aquele Estado democrático perceba a outra parte da relação como igualmente democrática, para que haja confiança nas suas intenções pacíficas. O autor expõe este ponto como a chave central para compreender as aparentes exceções da história à afirmação teórica de que Estados democráticos não irão entrar em guerra uns com os outros. Nestes casos, Owen explica que eles não se reconheciam como democracias, por isso recorreram à guerra para defenderem seus interesses.
O autor argumenta, portanto, que estes três aspectos da dinâmica liberal irão moldar a política externa do Estado, por meio de seis hipóteses.
- Estados liberais irão confiar naqueles Estados que eles considerem, igualmente, como democracias liberais. A política externa liberal seria, portanto, orientada para identificar os Estados no cenário internacional pelo tipo de regime político que adotam, em contraste com o neo-realismo, que distingue os Estados de acordo com suas capacidades. Democracias liberais compartilham dos interesses de auto-preservação e bem-estar, promovendo a harmonia das suas relações.
- Quando liberais observam um Estado estrangeiro implementando os mesmos preceitos, eles passam a adotar medidas que promovam relações pacíficas. Democracias liberais são percebidas como razoáveis, previsíveis e confiáveis, o que incentiva outros Estados a buscar construir interações que promovam a paz entre eles.
- Estados liberais irão acreditar que democracias liberais compartilham de seus interesses, e que Estados não-liberais não. Estados não-liberais são percebidos, a primeira vista, como pouco razoáveis, imprevisíveis, e potencialmente perigosos. Pelo fato de serem governados por déspotas ou mesmo por cidadãos pouco iluminados, estes Estados irão buscar interesses não-liberais, como a conquista de poder, a intolerância, ou o empobrecimento de outros.
- Liberais irão modificar sua política de relações exteriores quando entram em confronto com Estados não-liberais, a menos que esses modifiquem suas instituições para outras mais liberais. Na relação com estes Estados, há sempre o risco da guerra. Sendo que o confronto bélico irá ser defendido quando servir para os propósitos liberais. No entanto, as democracias liberais não irão automaticamente iniciar uma cruzada na defesa e expansão da liberdade. Para tanto, os custos para fazê-lo serão estimados, podendo ser muito altos quando o Estado não-liberal é muito poderoso. Esta situação demonstra que as democracias liberais não escapam por completo dos imperativos da política realista, centrada no poder.
- Elites liberais irão promover políticas liberais diante do risco da guerra. Na prática, são os representantes políticos ou as lideranças elitistas que orientam as decisões políticas de uma nação liberal. Diante da possibilidade do engajamento do Estado em relações bélicas, a elite liberal irá movimentar seus recursos para promover o debate nacional sobre a defesa dos interesses liberais.
- Durante crises nas relações exteriores, o governo irá ser constrangido a seguir a ideologia liberal na prática política. Quando surge o risco da guerra, a população irá se mobilizar para fazer valer seus interesses liberais, uma vez que é ela quem paga os altos custos do confronto bélico, seja com recursos financeiros ou humanos. Para tanto, ela irá fazer uso das instituições liberais, promovendo a liberdade de expressão e a reação eleitoral constrangendo os governos a decidir em favor de suas preferências. Neste ponto, é importante notar que mesmo quando líderes optam por tomar decisões não-liberais, o sistema democrático liberal impede que tais decisões sejam realizadas continuamente.
Desta forma, para o argumento realista de que as democracias eventualmente irão entrar em guerra umas com as outras, Owen aponta duas respostas. A primeira é que as democracias liberais nem sempre consideram uma as outras como liberais, sendo este o motivo para várias das exceções apontadas na história pelos realistas. Em segundo lugar, democracias liberais podem ser governadas por líderes não-liberais que poderão implementar, de alguma forma e por tempo limitado, práticas não-liberais na política externa daquele Estado.


2.4.3- O processo de democratização
Conforme foi demonstrado pela perspectiva liberal, o sistema democrático apresenta vantagens no auxílio à construção da paz, uma vez que estabelece um conjunto de regras legítimas que imputam aos grupos políticos condições igualitárias na livre competição pelo poder e administra as demandas sociais dentro de um jogo de barganha não violento (SISK, 2004).
No entanto, a construção da democracia é um processo que precisa de tempo para articular as forças sociais na maturação dos novos arranjos institucionais (MANSFIEL e SNYDER, 1995). A adequação dos esforços de democratização ao contexto social particular também é decisiva na mobilização dos diversos sujeitos do processo político, promovendo uma pluralidade de interesses que poderá contribuir positivamente na formulação de propostas criativas. É enfático apontar, portanto, que a democratização é um movimento gradual e complexo, devendo ser compreendido enquanto tal, por parte dos agentes que tentam induzi-lo (BÄCHLER, 2004).
Por muitos anos, presumiu-se que a democracia não era um sistema governamental adequado para aquelas sociedades divididas do pós-guerra. Acreditava-se que as políticas de igualdade de competição, de liberdade de decisão, e outras implementadas pelo sistema democrático eram ideais demasiadamente difíceis de serem alcançados pelas sociedades emergentes de conflitos (SISK, 2004). De fato, o processo de democratização tende a sofrer reveses no curto prazo, apresentando resultados completamente opostos aos pretendidos. Este fenômeno decorre da dificuldade em se distribuir recursos de poder entre os grupos de interesse da sociedade. Antigas elites políticas tendem a usar da imperfeição das recém-criadas instituições democráticas para mobilizar insatisfações e pressões sociais em manifestações contrárias ao processo que se busca instaurar, inclusive com o retorno ao conflito violento (MANSFIEL e SNYDER, 1995). Os riscos de um retorno à confrontação bélica e a dificuldade da frágil sociedade civil em superá-los são agravados ainda mais quando a urgência dos agentes de construção da paz em resolver o conflito, desejando pôr fim definitivo às forças divergentes do contexto social, implantam soluções de fora para dentro, sem a devida consideração com as necessidades sociais responsáveis pela articulação de instituições eficazes e sustentáveis.
Esta perspectiva adquiriu, no pós-Guerra Fria, novos contornos. A maioria dos atores diretamente ligados à promoção da paz passou a defender que a melhor solução então disponível para reconciliar os interesses sociais em conflito seria aquela ofertada pelo sistema democrático (DIAMOND, 1995). A eficácia das propostas alternativas ao embate violento, em direção a uma administração pacífica dos impasses sociais, se legitimaria por meio de procedimentos democráticos, tais como a competição eleitoral pelo poder, a criação de partidos políticos, a participação pública e o estabelecimento de um Estado de Direito. A superioridade do sistema democrático se fundamentaria, portanto, na sua natureza participativa, representativa e eqüitativa.
O receio aos riscos do processo de democratização deveria ser superado com o maior envolvimento da sociedade plural, imputando aos diversos grupos de interesse (e não somente às elites) a capacidade de manifestar suas propostas políticas através de um sistema institucionalizado. Larry Diamond (1995) sintetizou esta perspectiva em quatro pontos fundamentais ao sucesso da transição democrática:
- O reconhecimento das identidades plurais;
- A proteção legal dos direitos dos grupos minoritários;
- A devolução da capacidade de poder às várias localidades e regiões;
- A implementação de instituições políticas que promovam barganha e legitimação do poder central.
Neste sentido, a construção de um sistema democrático deveria viabilizar a participação igualitária dos diversos grupos sociais através da qualificação dos seus meios procedimentais de decisão. A implementação destes programas provocaria uma redistribuição das forças políticas criando, assim, um contra-balanceamento à influência das elites, e maior eficácia das instituições na transição política.
Embora tal mudança de perspectiva apresente, de fato, ganhos consideráveis ao sucesso dos projetos implementados, a urgência em se resolver a dinâmica conflitiva permaneceu constante por parte dos agentes de construção da paz. Apesar do processo de democratização ter se tornado mais complexo, necessitando, da forma como foi estruturado, de um auxílio presente por parte dos agentes externos (CALL, 2001), a preocupação com a questão do tempo permanece diante da tensão imposta pelo problema do financiamento das atividades. O resultado desta incongruência de planejamentos (projetos que demandam tempo, mas que devem ser articulados no curto prazo) se reflete na ausência de sustentabilidade das propostas implementadas assim que os agentes interventores diminuem suas atividades.
A indução de um processo democrático de fora para dentro é notoriamente difícil; e se agrava se a urgência na construção de estruturas acarreta na exportação de regras e instituições prontas e insensíveis às diferenças nos contextos sociais (SISK, 2004). Outro fator passível de acontecer é a excessiva concentração de esforços na reconstrução do aparato estatal, em prejuízo das políticas públicas de mobilização, participação e educação da população afetada pelo conflito (BÄCHLER, 2004).
No entanto, a atenção às dimensões relacionais, pessoais e culturais do conflito é, conforme exposto nos argumentos de Lederach (1997), imprescindível. O autor demonstra como as forças que orientam a dinâmica conflitiva se sustentam nos relacionamentos sociais, estando, portanto, arraigadas na história de cada sociedade; as quais requerem tempo para serem compreendidas e modificadas. No entanto, a urgência com que o processo de democratização é implementado pode acarretar em sérios riscos à viabilidade dos projetos de transformação política se negligenciar a importância das forças sociais na dinâmica do problema.
Para resolver este problema, Lederach vai ainda mais longe. O autor defende ser necessária uma reformulação da perspectiva que embasa as atividades de peacebuilding deste seu ponto de partida. A compreensão do conflito enquanto algo positivo à evolução social, uma vez que movimenta energias que provocam mudanças necessárias, implica em repensar o momento como uma oportunidade que deve ser aproveitada e não sanada. A expressão violenta de tais reformas somente denota o grau de importância que lhes é conferida pelos grupos sociais em contenda; sendo esta a prática que deve ser suplantada. A condução de projetos de transformação social pode se beneficiar largamente da energia gerada pelo conflito, desde que o desejo de competição política via confrontação bélica passe a ser administrado dentro de formatos pacíficos de negociação. E neste ponto, caberia aos agentes indutores da democracia minimizar os riscos do retorno à violência e maximizar os ganhos de uma transição harmoniosa.
A partir da proposta de Lederach, portanto, torna-se evidente a importância em se adotar uma visão ampliada do processo de democratização. O reconhecimento da necessidade de um planejamento de longo prazo, assim como da valorização e mobilização das diversas dimensões do problema conflitivo, angaria recursos preciosos à condução de um movimento de transformação tão profundo, complexo e gradual como o é a construção de arranjos sociais democráticos. A particularidade de sua perspectiva a respeito dos processos de mudança social permite, neste caso, que os instrumentos disponibilizados pela democracia atendam as demandas prementes à construção da paz, ao mesmo tempo em que trabalham com as forças subjacentes do contexto conflitivo, fundamentando novas interações sociais.
Para que a análise deste processo possa ser compreendida com profundidade, entende-se ser essencial o exame das forças que agem na democratização de sociedades marcadas pelo conflito intra-estatal. Neste sentido, o objetivo será iluminar aqueles elementos disponibilizados pela perspectiva democrática e sua eficácia no arranjo pacífico das interações políticas. É parte desta proposta enfatizar, ainda, como a formatação de tais processos dentro de uma plataforma mais ampla de ação pode viabilizar sua continuidade autônoma no longo prazo.
Torna-se válido iniciar a análise do processo democrático verificando como se dá a restauração do consenso e a volta à obediência civil diante da crise de governabilidade que freqüentemente se instala em conflitos intra-estatais. Segundo esta proposta, o ponto central do processo democrático implica no desenvolvimento da obediência enquanto ato de escolha dos cidadãos (REIS, 1987). Desta forma, passa a ser fundamental que a construção da democracia trabalhe, principalmente, a legitimidade a ela outorgada pela dinâmica social particular, a adequação das reformas institucionais às forças políticas culturais, e a implementação de procedimentos eficazes à promoção de arranjos participativos.

2.4.4- Concepções de democracia
A concepção primária de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, consiste em apontar um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que irão estabelecer quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos (BOBBIO, 1992). A democracia caracteriza-se, portanto, pelo exercício do poder público (para o qual se utiliza o conceito de responsiveness, enfatizando que este poder deve ser responsável pelos interesses coletivos), em público (isto é, publicamente controlado, característica essa identificada pelo conceito de accountability).
No que diz respeito aos sujeitos chamados a tomar (ou a colaborar para a tomada de) decisões coletivas, o regime democrático pretende atribuir este poder (que estando autorizado pela lei fundamental, torna-se um direito) a um número elevado de membros do grupo social (SARTORI, 1994). O ideal-limite de um governo de todos e para todos realizou-se, originalmente, na democracia direta ou participativa, enquanto sistema de tomada de decisões sobre assuntos públicos, no qual os cidadãos estão diretamente envolvidos (HELD, 1995). Ela firmou a regra áurea da participação democrática fundamentando-a na decisão da maioria; ou seja, a regra à base da qual são consideradas decisões coletivizadas - e, portanto, vinculatórias para todo o grupo.
Vale apontar, no entanto, que em sociedades complexas, como são as modernas sociedades industriais, implantar esta democracia ideal, enquanto um sistema de participação direta de todos, em todas as decisões a eles pertinentes, torna-se algo impraticável. Para sanar esta dificuldade foi desenvolvido o modelo de democracia representativa, caracterizando um sistema de governo que envolva “oficiais” eleitos que tomam para si a tarefa de “representar” os interesses e pontos de vista dos cidadãos dentro do quadro de referência do “governo da lei”. Este modelo passou a ter uma relação intrínseca com os ideais liberais, na segunda metade do século XIX, enfatizando que a forma política democrática deve pressupor uma liberdade individual para se alcançar igualdade social e bem-estar econômico (HELD, 1995).
Para tanto, uma condição é indispensável: que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam colocados diante de alternativas reais (proposta que implica, igualmente, no poder de agenda dos participantes) e postos em condição de poder escolher entre uma e outra (através do debate e da transformação de preferências).
Para que tais condições se realizem é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão, de reunião, de associação, etc. – os direitos à base dos quais nasceu o estado liberal e foi construída a doutrina do Estado de Direito em sentido forte, isto é, de estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados do reconhecimento constitucional dos diretos “invioláveis” do indivíduo. As normas constitucionais serão o pressuposto necessário para o correto funcionamento dos mecanismos procedimentais conforme os princípios que caracterizam o regime democrático.
É fundamental apontar ainda que as concepções a respeito de democracia continuam sofrendo profundo alargamento (HELD, 1995). Cientistas sociais já reconhecem que as questões políticas encontram-se imersas numa esfera mais ampla de relações sociais, o que faz com que toda decisão política seja condicionada ou até mesmo determinada por aquilo que acontece na sociedade civil.
Em decorrência desta nova perspectiva, vislumbra-se o processo de democratização, ou seja, a expansão do poder ascendente, se estendendo da esfera das relações políticas stricto senso, daquelas nas quais o indivíduo é considerado em seu papel de cidadão, para a esfera das relações sociais, onde o indivíduo é considerado na variedade de seu status e de seus papéis específicos.
O deslocamento do ângulo visual do Estado para a sociedade civil implica na consideração de outros centros de poder além do governamental. Existe um pluralismo no nível político, quando existem vários partidos ou vários movimentos políticos que disputam entre si, através do voto ou de outros meios, o poder na sociedade e no Estado; um pluralismo no nível econômico, onde existe uma concorrência entre as partes de uma economia de mercado; e ainda um pluralismo ideológico, na medida em que não existe uma doutrina de estado única, mas diversas orientações de pensamento, visões do mundo e programas políticos de livre curso, dando vida a uma opinião pública não homogênea.
O pluralismo, portanto, permite compreender uma característica fundamental da democracia dos modernos em comparação com a democracia dos antigos: a liberdade do dissenso. Esta característica baseia-se no princípio segundo o qual o dissenso, desde que mantido dentro de certos limites (estabelecidos pelas denominadas regras do jogo), não é destruidor da sociedade, mas força criadora de mudanças e avanços sociais.
Percebe-se, assim, que a democracia moderna é uma luta travada em dois fronts: contra o poder autocrático, que parte do alto, para o qual deverá ser ministrado o remédio da teoria democrática, com um poder que vem de baixo; e contra o poder monocrático, concentrado em um grupo único de interesses, para o qual a teoria pluralista propõe o poder distribuído. Desta forma, a democracia representativa moderna conta com a garantia do controle indireto, que vem de baixo, assim como com o controle recíproco entre os grupos que representam interesses diversos, os quais se exprimem, por sua vez, através de diversos movimentos políticos que lutam entre si pela conquista temporária e pacífica do poder.
Sendo assim, na tarefa de se analisar diferentes estágios democráticos, não se pode mais considerar unicamente o número de pessoas que têm o direito a votar, mas o número de instâncias (diversas daquelas políticas) nas quais se exerce o direito de voto (HELD, 1995). A democratização do Estado encontra-se intimamente ligada à democratização da sociedade civil.
A liberdade de dissentir tem necessidade de uma sociedade pluralista; uma sociedade pluralista consente uma maior distribuição do poder; uma maior distribuição do poder abre as portas para a democratização da sociedade civil; e, enfim, a democratização da sociedade civil alarga e integra a democracia política (HELD, 1995).
A análise dos elementos que perpassam o processo de democratização realizada neste trabalho tem, portanto, por objetivo, enfatizar a importância da participação como uma perspectiva abrangente do dissenso, imprescindível à construção de uma sociedade pacífica nas situações de conflito intra-estado.

A restauração do consenso diante da crise de governabilidade
A crise de governabilidade é uma realidade comum nos conflitos intra-estatais, e se caracteriza, principalmente, na perda do monopólio da força coercitiva pelo Estado (WEBER, 1982).
Uma característica marcante de tais sociedades é a politização das forças sociais em conflito. Samuel Huntington (1975) usa a expressão “sociedade pretoriana” para designar estas circunstâncias, numa tentativa de apontar o aspecto politizado que se refere à intervenção dos militares na política, ou mesmo de outros grupos sociais. Num sistema pretoriano, as forças sociais se enfrentam diretamente, uma vez que as instituições políticas efetivas capazes de mediar, refinar e moderar a ação política dos grupos, não são mais reconhecidas e aceitas como intermediários legítimos. Outro fator importante é a ausência de acordo entre os grupos quanto aos procedimentos reconhecidos para dirimir os conflitos. Isto significa que, numa sociedade pretoriana, o poder está fragmentado, manifestando-se de muitas formas e em pequenas quantidades.
Numa sociedade em que as instituições políticas não são efetivas, um problema crítico passa a ser a conciliação de diferentes interesses e agendas (políticos, desenvolvimentistas, humanitários, bélicos, civis, etc.), uma vez que todos eles demandam profundas reformas e são igualmente urgentes para os diversos grupos sociais. Tais movimentos de luta por interesses adquirem, na sua expressão, a tônica da violência. A eficácia da violência e da desordem para estimular a reforma decorre diretamente da extensão em que ela anuncia o grau de importância da mobilização política dos grupos de interesse. A violência não se apresenta, aqui como uma reação anômica a uma situação geral, com alvos difusos e incertos, mas está diretamente relacionada com a ação em torno de uma questão política particular. As partes em conflito se servem do choque e da novidade resultantes do emprego de uma técnica política extrema para promover as reformas necessárias. É a disposição demonstrada de um grupo social de ultrapassar os padrões aceitos de ação que dá ímpeto às suas demandas. (REIS, 1984).
Esta violência é, portanto, reflexo do colapso dos fatores subjacentes à obediência, conduzindo ao abandono do consentimento. Aqueles que desejam a mudança utilizam a desobediência, especialmente em sua forma violenta, como recurso de barganha.
O abandono do consenso pressiona a mudança quando eleva os custos do Estado para manter a obediência daqueles que não mais aceitam ou deslegitimam os recursos coercitivos em voga. O caráter coletivizado das decisões políticas , que se tornam soberanas, inescapáveis e sancionáveis em decorrência da própria institucionalização, acaba por impor altos custos à sua implementação diante do solapamento do consenso.
Existe uma tendência de que, neste caso, o Estado tente resgatar sua autoridade por meio da imposição de sanções contra aqueles que “quebram as normas”; porém, os mais importantes incentivos e desincentivos para a volta à obediência são cognitivos e sociais.
Sartori (1987) por sua vez, expõe que tais incentivos de obediência enquanto consenso são contingentes de dois tipos de fatores: a aprovação da barganha social, e a submissão dos que fornecem a dos que contribuem para a provisão de serviços. Margareth Levi (1991) compreende este fenômeno como decorrente de uma “norma de fairness”. Ele produziria um tipo de consentimento que é tanto normativo, como utilitário, incluindo um elemento de reciprocidade: estar cumprindo expectativas alheias porque outros também o fazem. Se os indivíduos estão convencidos de que a “norma de fairness” continua em operação, é maior a probabilidade de que se comportem de acordo com as regras de conduta decorrentes desta norma. Já Katzenstein (1998) aponta para ação das “estruturas intersubjetivas”, que conseguiriam formar preferências e consolidar interesses comuns, de forma endógena ao processo de interação.
O ponto central à transformação política, enfatizado por tais propostas, se concentra, portanto, no desenvolvimento de arranjos institucionais mais eficientes que a simples incorporação de um sistema normativo de regras formais. Ela utiliza destas como guias de comportamento, o que, por conseqüência, garante uma previsibilidade nas ações humanas e, assim, a paz. Mas, tal não significa que ela se restrinja à simples positivação de normas sociais.
As regras representam mais do que instrumentos ou mecanismos para a implementação de práticas cooperativas; elas são inerentes aos agentes e às estruturas em que interagem. Faz-se importante, portanto, qualquer processo político atente para os problemas da constituição e preservação da autoridade. Autoridade esta, que deve ser compreendida como relação de reconhecimento que gera obediência. Obediência, portanto, como um ato de escolha, e não submissão através da violência, ou persuasão ou obediência por reconhecimento do ato de hierarquia (REIS, 1984).
O reconhecimento voluntário de obediência por meio da democracia sustenta-se, portanto, numa igualdade de autoridade política entre o povo, que se encontra nas leis e não nos governantes. Para tanto, a construção de canais institucionais e pacíficos de debate político consistem em pontos fundamentais para alavancar o processo democrático. No entanto, a legitimação da obediência democrática depende, ainda, da ativa participação política, por meio da qual as particularidades locais passam a ser devidamente valorizadas nos fóruns de decisão, as regras formais provêem de demandas substantivas do amplo contexto em conflito, e o arranjo institucional estabelecido passa a ser um modelo organizacional flexível às forças de evolução social.

A construção do processo democrático
Diante das dificuldades que perpassam o fortalecimento de um arranjo político pacífico (observando-se, numa ampla noção de política, a capacidade de transformação dos sistemas de poder construídos), duas questões fundamentais envolvem o processo de democratização. De um lado, há a necessária reforma do poder do Estado, por meio da reconstrução do aparato institucional; já, de outro lado, está a reestruturação da sociedade civil, mobilizando as forças que irão concretizar os objetivos democráticos. Ambos processos atuam como dimensões interdependentes, e imprescindíveis à transformação política. David Held aponta este processo como o “duplo caráter da democratização” (1984).
No ocidente, a necessidade em se democratizar as instituições políticas tem se restringido, em sua maior parte, a questões como a reforma do processo de seleção dos líderes dos partidos e a modificação das leis eleitorais. Outras questões que têm sido defendidas ocasionalmente incluem o financiamento público das eleições para todos os partidos que alcancem um mínimo de apoio; um acesso mais genuíno e uma distribuição mais eqüitativa do tempo dos meios de comunicação; a liberdade de informação; a dispersão dos serviços públicos em diferentes regiões; a defesa e força dos poderes locais frente às decisões estatais centralizadas e rígidas; além de pesquisas sobre como fazer as instituições estatais mais responsivas perante seus “consumidores”. Todas estas são questões importantes, que devem seguir desenvolvendo-se para que estratégias mais adequadas à democratização das instituições estatais sejam elaboradas. No entanto, nenhuma delas dará uma contribuição efetiva à transformação do sistema político numa democracia se não fizerem frente a um problema ainda mais difícil: como reconciliar as exigências de uma vida pública democrática (debate aberto, acesso aos centros de poder, participação geral, etc.) com aquelas instituições estatais que desenvolvem meios de garantir interesses particulares, convertendo-se, como Weber colocou, em “estruturas de aço”, insensíveis às demandas do demos? Esta questão aponta um problema urgente que só pode ser afrontado ao se analisar formas de garantir a soberania do parlamento sobre o Estado, e a da sociedade – e de todos seus cidadãos – sobre o parlamento. (HELD, 1984).

O autor explica que uma prática comum no controle e fiscalização do governo encontra-se nas limitações legais definidas de forma explícita nas Constituições e Declarações de Direitos, submetidas ao escrutínio público, à revisão parlamentar e ao processo judicial. Esta idéia é extremamente válida, sendo fundamental à defesa dos princípios democráticos. No entanto, se se pretende que as pessoas sejam livres e iguais no direito em determinar as condições de suas próprias vidas, é preciso que elas estejam em posição de desfrutar dos mesmos direitos também na prática. Os direitos dos cidadãos devem ser tanto formais como concretos. Isto implica na criação de um sistema muito mais amplo de participação pública que possibilite as atividades coletivas dentro de um amplo horizonte de dimensões.
Isto significa que garantir a igualdade de direito ao voto e arregimentar um aparato estatal democrático não basta se as condições para uma participação efetiva, uma compreensão bem informada, e no estabelecimento de uma agenda política não forem trabalhadas (HELD, 1984).
Desta forma, tanto o trabalho com as questões estatais, como aquelas pertinentes à sociedade civil, deve converter-se em pressuposto ao desenvolvimento democrático. E, neste processo, estratégias de adaptação dos velhos padrões de poder da sociedade civil terão que ser elaboradas, assim como novas circunstâncias que permitam aos cidadãos desfrutarem um maior controle de seus projetos políticos (KEANE, 1987). Para que os indivíduos sejam livres e iguais na determinação das condições de sua própria existência devem existir uma multiplicidade de esferas sociais que permitam aos seus membros o controle dos recursos a sua disposição, sem a interferência direta do Estado. Possíveis modelos para a organização destas esferas teriam muito a se beneficiar das concepções de participação direta.
Em suma, se a vida democrática não implica em nada mais que o exercício do voto periódico, o âmbito de ação da sociedade civil se limita ao setor privado, vinculando as possibilidades de transformação política aos recursos que alguns grupos de interesse possam dispor. Existirão poucas oportunidades para que os cidadãos atuem como politicamente, e para que a participação ativa proposta pela democracia se realize.
O desafio em se instaurar um processo democrático implica, portanto, na construção de estruturas de debate político, na interação de idéias e o desenvolvimento de projetos comuns que abram espaço à participação ativa da população. Espera-se que a democracia produza uma transformação de preferências, por meio de debate, e um maior poder de agenda, uma vez que o reconhecimento das áreas de identidade substantiva entre os atores (múltiplos pertencimentos) contribui à formação de respostas políticas criativas e eficazes.
Neste sentido, evidencia-se a importância da escolha das regras de tomada de decisão política. “A escolha das regras do jogo é de crucial importância para a delimitação dos graus e da natureza da participação política, bem como do universo dos participantes e das alternativas disponíveis à apreciação” (ANASTASIA, 2002). Elas são endógenas ao processo político e incidem decisivamente sobre os resultados . As instituições em si são meros procedimentos políticos que operam sob certas condições, as quais não iniciam um processo democrático por terem sido instituídas, simplesmente. É fundamental que as condições sociais, isto é, as forças culturais que movem os relacionamentos da vida política, sejam compreendidas e endereçadas propriamente para que as instituições apropriadas à realidade social se fortaleçam, promovendo a democracia de fato. É preciso, portanto, não só institucionalizar como qualificar a participação. Desta mesma forma, Dahl (1989) observa:
A vida democrática gira, em suas raízes, em torno de pequenos grupos, de relações face a face de uma sociedade multigrupal e de governos privados, indo muito além de uma forma política. O Estado-nação só pode fornecer o quadro de referências dentro do qual a boa vida política é possível; não pode desempenhar as funções dos pequenos grupos. Quando tenta fazê-lo, o Estado-nação só pode fornecer ou um substituto mais pobre das funções do pequeno grupo, ou uma distorção grotesca delas.

A instrumentalização da participação política
Segundo Dahl (1989), “a teoria da democracia diz respeito a processos através dos quais cidadãos comuns exercem um grau relativamente alto de controle sobre líderes”. Dahl enfatiza duas dimensões essenciais ao exercício da democracia: a possibilidade de contestação pública e o direito à participação.
O desenvolvimento de um sistema político que permite oposição, rivalidade ou competição entre um governo e seus oponentes é o aspecto mais importante da democratização. Mas os dois processos – democratização e desenvolvimento da oposição pública – não são, a meu ver, idênticos. (DAHL, 1997).

Para medir a extensão em que tais princípios são adotados (enquanto regras) numa organização social, o autor estabelece oito condições empiricamente observáveis que irão maximizá-las o tanto quanto possível. Estas condições funcionam como escalas contínuas e podem ser usadas como medições, embora sejam ideais provavelmente inatingíveis. Desta forma, o conceito de poliarquia é desenvolvido enquanto instrumento de análise do processo de democratização de uma sociedade.
A poliarquia permite comparar regimes diferentes segundo a amplitude da oposição, da contestação pública ou da competição política. No entanto, como um regime poderia permitir o exercício da oposição a uma parte muito pequena ou muito grande da população, será preciso ainda analisar outra dimensão. Os regimes variam também na proporção da população habilitada a participar, num plano mais ou menos igual, do controle e da contestação à conduta do governo. Uma escala refletindo a amplitude do direito de participação na contestação pública permite comparar diferentes regimes segundo sua inclusividade (DAHL, 1989).

O autor enfatiza, portanto, que, na falta do direito de exercer oposição, o direito de “participar” é despido de boa parte do significado que tem num país onde existe a contestação pública. Um país com sufrágio universal e com um governo totalmente repressivo certamente proporcionaria menos oportunidades a oposição do que um país com um sufrágio limitado, mas com um governo fortemente tolerante. Conseqüentemente, quando os países são classificados exclusivamente de acordo com sua capacidade de inclusão sem levar em conta as circunstâncias ambientes, os resultados são anômalos (DAHL, 1989).
Em situações de transformação de regimes hegemônicos ou oligarquias competitivas para democracias poliárquicas, quanto maior for o conflito entre governo e oposição, mais provável é o esforço da cada parte para negar uma efetiva oportunidade de participação à outra nas decisões políticas. Em outras palavras, quanto maior o conflito entre um governo e seus oponentes, mais difícil se faz a tolerância de cada um para com o outro. Desta forma, quanto mais baixos os custos da tolerância, maior a segurança do governo. Já quanto maiores os custos da supressão, maior a segurança da oposição.
As garantias a seguir, portanto, constituem requisitos para a formação de regimes substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação pública. São elas:
1. Liberdade de formar e aderir a organizações;
2. Liberdade de expressão;
3. Direito de voto;
4. Elegibilidade para cargos públicos;
5. Direito de líderes políticos disputarem apoio;
6. Fontes alternativas de informação;
7. Eleições livres e idôneas;
8. Instituições para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de preferências (Dahl, 1989).
Em contraposição aos modelos de análise postulados previamente , o maior diferencial (e ganho à proposta deste trabalho) da poliarquia é que ela sugere que as primeiras e cruciais variáveis para as quais os cientistas políticos devem dirigir sua atenção são sociais e não constitucionais.
Em contraposição ao madisonianismo, a teoria da poliarquia focaliza-se principalmente não em requisitos constitucionais prévios, mas nas condições preliminares a uma ordem democrática. A diferença é de grau: Madison (...) não era indiferente às necessárias condições sociais para sua república não tirana. Mas certamente não será injusto dizer que sua maior preocupação era com os controles constitucionais prescritos e não com os controles sociais operantes, com os controles constitucionais recíprocos e não com os controles sociais mútuos. (DAHL, 1989).


A prescrição poliárquica de Dahl sustenta-se, portanto, numa perspectiva pluralista que busca incentivar a formação e o funcionamento dos grupos de interesse, através dos quais os indivíduos poderão organizar-se para manifestar suas preferências intensas quanto a determinados issues.
O contexto moderno de crescentes complexidade e heterogeneidade sociais acarreta na consolidação de novos conteúdos e identidades e a multiplicação das clivagens socioeconômicas e políticas. Tais fenômenos atestam os limites interpostos aos partidos para continuarem retendo, juntamente com o monopólio da representação, o oligopólio da participação (ANASTASIA, 2002).
Assiste-se a proliferação de conteúdos contrários à “forma-partido”, que pressionam pela organização de novas formas políticas capazes de expressá-los institucionalmente. Offe (1984) se refere aos “novos movimentos sociais”, aos arranjos neocorporativos e menciona, na ausência de alternativas como essas, o recurso último à repressão desses conteúdos, com óbvias repercussões negativas no grau de democratização da ordem política. (ANASTASIA, 2002).


Percebe-se, dessa forma, que o problema da participação é maior do que a solução propiciada pela representação. Sabe-se, no entanto, que a representação é condição sine qua non da democracia nas sociedades de grandes números e vastas extensões territoriais (Dahl, 1989). Afinal, o método representativo permite, como assinala Sartori, reduzir os riscos externos (de opressão) sem aumentar os custos decisórios (1994). Sendo assim, o desafio que se coloca para a democracia hoje é aquele relativo à institucionalização de novas formas de participação política que venham acoplar-se aos mecanismos clássicos da representação e não substituí-los. A questão passa a ser, então: como conferir à participação o mesmo grau de institucionalização já conferido à representação?
O grande desafio é, portanto, o de transformar a democracia em um conjunto institucional que permita o exercício continuado do controle dos governantes pelos governados , o que significa torná-los operante também nos interstícios eleitorais.
Poder-se-ia argumentar que tal operação já ocorre desde que foram inventados os checks and balances, que facultam o controle permanente de um poder instituído pelos demais. Tal afirmação procede, mas se restringe aos mecanismos de accountability horizontal (O’Donnell, 1994), não se aplicando, portanto, à accountability vertical que continua confinada, na maioria das democracias contemporâneas, às eleições e, algumas vezes, a outros contextos descontínuos, como plebiscitos e referendos. (ANASTASIA, 2002).

Fátima Anastasia (2002) enfatiza que este último ponto seria crucial diante da proposta democrática. O próprio Dahl aponta a importância da institucionalização de mecanismos de accountability vertical quando argumenta que “as oportunidades de se formular preferências, de exprimir preferências e ter preferências igualmente consideradas na conduta do governo” (DAHL, 1989) são questões centrais e que devem ser garantidas pelo processo democrático.
No entanto, embora o tema da responsiveness, assim como aquele relativo à accountability horizontal já estão incorporados à teoria dahliana, o modelo poliárquico não se refere explicitamente ao um controle público dos governantes pelos governados que seja operante também nos interstícios eleitorais.
Para tanto, a autora propõe a inclusão de uma última condição à listagem de medição da poliarquia, a qual outorgaria continuidade aos contextos decisórios democráticos. Seria esta (9) “a formação de instituições que permitam o exercício do controle público nos interstícios eleitorais” (ANASTASIA, 2002).
A observação dessa nona condição –assim como o cumprimento mais efetivo do direito de vocalização de preferenciais – só será possível se a democracia passar a ser organizada como um jogo interativo (participativo), jogado em contextos decisórios contínuos (Sartori, 1994), e em múltiplas arenas (Tsebelis, 1990; Anastasia, 2001; Azevedo; Anastasia, 2002).
Autor: Mariana Gomes Pereira


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