O avarento de mollière e a corte de Luis XIV



Para você querido leitor ter uma maior compreensão da peça “O Avarento”, escrita por Molière e interpretada por Paulo Autran, vamos ter agora uma lição de história, mostrando um pouco dessa época tão inspiradora e tão magnífica.
Dividimos em tópicos esse texto, e aconselhamos todos vocês a lerem todos eles. Eles explicam a época em que se passa a história e te ensinam a ver os personagens (e possivelmente suas ações), de uma outra maneira.
Então aproveite essa aventura com um bom vinho, no maior estilo high society.

França Século XVII - A nobreza impera

O rei Luís XIV dedicou muito de seu tempo de reinado patrocinando artistas, escritores, pintores, músicos, atores, escultores, cientistas e arquitetos. O rei Sol, como era chamado, foi o responsável pela construção do palácio de Versalhes, pela academia de pintura e escultura, o observatório de Paris, a academia de literatura e a finalização da construção do museu Louvre.
Fortunas foram gastas pelo rei para transformar a França, que estava vivendo seu período pos medieval em um país que se tornou sinônimo de bom gosto, classe e etiqueta até hoje.
Luís XIV foi um rei egocêntrico e extremamente vaidoso, chegando a criar dentro do período barroco seu próprio estilo de decoração, utilizando mármores, brocados vermelhos, ouro e muita extravagância. Ele foi o responsável pela decoração e contínuas reformas na estrutura do palácio de Versalhes, que até hoje é considerado um dos locais mais bonitos do mundo para ser visitado.
O palácio era ocupado por nobres franceses que eram obrigados a seguir uma lista de regras de vestimenta, movimentos e etiqueta. A posição social era determinada pelo aperfeiçoamento no cumprimento dessas normas, pois quanto melhor o desempenho do nobre, maior seria a sua ascensão social, aproximando sua relação com o rei.
Para ser considerado um membro influente da aristocracia, a pessoa tinha que ser convidada para fazer parte dos rituais diários e “privados” do rei.
O primeiro era o de acompanhar o despertar, ajudando o rei a se vestir de manhã. Cerca de sete nobres das mais altas camadas disputavam espaço para ajudar o rei a colocar sua camisa, porém, ainda mais importante que ajudar no ritual matinal, era tomar parte no segundo ritual, que consistia em auxiliar o rei a se despir e a colocar a sua roupa de dormir.
Esses rituais diários eram às vezes acompanhados por até 100 integrantes da aristocracia e, acredite ou não, mas a honra de fazer companhia ao rei Luís XIV enquanto ele defecava era considerada inigualável e incomparável.
Ser convidado para um jantar com o rei era um privilegio de poucos, e também um fardo, pois esse acontecimento, que geralmente durava cerca de 14 horas, era recheado de eventos como jogos, comida, teatro e bailes. Esses eventos serviam como um teste para saber se a pessoa era merecedora de ser parte da nobreza e habitar o palácio. Na maioria das vezes esses jantares não terminavam em uma maneira muito agradável: a pessoa no dia seguinte receberia uma carta do rei convidando a se retirar do palácio de Versailles e tendo seu titulo revogado, devido alguma gafe cometida na conduta de etiqueta.



Como viver na França do Século XVII (para mulheres... ricas).

A silhueta para ambos os sexos era esguia e elegante, com movimentos delicados e muitas vezes baseados em movimentos de ballet.
O corpo da mulher era desenhado com a cintura fina, o busto grande. A delicadeza e a graciosidade eram o ideal feminino da época. A vestimenta era extravagante e exuberante, com corseletes e vestidos muito cavados, com a cauda inteiramente bordado a mão. As mangas dos vestidos cobriam até o cotovelo, e o acabamento era feito com as mais delicadas rendas. Os sapatos eram de salto alto, sendo que o mais importante dos assessórios era o leque, que tinha toda uma etiqueta para ser usado propriamente.
A forma de mostrar reverência era também parte das normas de conduta do palácio. Cada tipo de evento, encontro ou passagem requeria uma movimentação diferente, porém sempre efetuados com a leveza de uma bailarina e o porte de uma rainha.

Como viver na França do Século XVII (para homens... ricos).

A movimentação das pernas e dos braços dos homens, juntamente com as vestimentas, também eram baseados no ballet, dança muito apreciada e praticada por Luís XIV.
A esgrima, esporte que tinha que ser dominado por todos os homens de boa posição social e reputação, também influenciava na movimentação e gesticulação dos membros masculinos da corte. Os sapatos para homens eram de bico quadrado, salto alto e adornados com laços feitos das mais nobres fitas de seda.
O andar, para ser considerado apropriado, tinha que ser similar a o de uma pessoa andando nas pontas dos pés, o que dava a os homens um jeito delicado e quase afeminado. Perucas de cachos longos e chapéus também faziam parte da vestimenta, porém chapéus nunca poderiam ser utilizados perante o rei, que criou inclusive a etiqueta de como se retirar o chapéu propriamente perante a sua pessoa.
As calças eram feitas de seda e eram usadas extremamente justas ao corpo, com meias brancas que deixavam os calcanhares a mostra, parte que era considerada extremamente sexy no corpo masculino. O colete, geralmente de cores vivas, sempre combinava com a jaqueta ajustada, e a camisa era coberta pela cravata, um lenço de seda com vários babados e o acabamento feito em renda.
Outras três peças fundamentais na vestimenta masculina eram as bengalas com laços combinando com os dos sapatos; lenços grandes e quadrados de tecido, com renda nas bordas; e as espadas, trabalhadas e ornamentadas, usadas como adorno na lateral do corpo na altura da cintura.


Molière: o queridinho do rei.

Foi nesse contexto, que no dia 15 de janeiro de 1622 nasceu Jean-Baptiste Poquelin, filho de um dos tapeceiros reais.
Desde pequeno ele teve acesso as melhores escolas e a corte do rei, onde passava boa parte do seu tempo imitando membros da realeza. Após a morte de sua mãe, Jean-Baptiste teve que se tornar aprendiz se seu pai no ramo de tapeçaria. Porém a localização do ateliê de seu pai teve um grande impacto na vida de Jean, pois era próximo aos dois mais importantes teatros da cidade: Pont-Neuf e o hotel de Bourgogne.
Pont-Neuf era o teatro onde os artistas faziam comédias e farsas para vender remédios, enquanto o hotel de Bourgogne tinha peças mais sérias, apresentadas por companhias teatrais patrocinadas pelo rei.
Aos 21 anos, e totalmente apaixonado por uma atriz, Jean-Baptiste resolve juntamente com seus amigos e sua amada a formar sua companhia teatral, chamada de L'Illustre Théâtre, e dedicar sua vida, corpo e alma ao teatro. Para poupar seu pai do desgosto de ter um membro de uma companhia teatral na família, Jean-Baptiste Poquelin muda seu nome para Molière.
Em Paris a companhia teatral não conseguiu obter sucesso, e após dois anos de fracassos, os sete membros restantes da companhia teatral decidem deixar Paris e ir para cidades menores.
Por doze anos, Molière e sua companhia teatral viveram uma vida nômade, aonde ele escrevia, dirigia e atuava nas peças apresentadas. Quando o boato de que o irmão do rei, o duque de Anjou, estava à procura de uma companhia teatral para apadrinhar, a trupe de Molière resolve voltar a Paris e tentar a posição de protegidos do Duque.
Molière exibiu para o rei Luís XIV a apresentação de um drama (escrito por outro autor), que não foi recebido com entusiasmo. Percebendo a reação da corte e do regente, Molière pede uma segunda chance de reapresentação, montando então sua própria peça. A montagem foi um sucesso, e garantiu a pequena companhia de teatro o direito de se apresentar no Hôtel du Petit Bourbon, que na época era um dos três principais teatros de Paris.
Muitas peças de Molière eram críticas diretas a sociedade de costumes da época. Retratando as pessoas e suas particularidades de maneira sarcástica e, na maioria das vezes, cômicas, Molière formulou a expressão "ridendo castigat mores" (rindo se castigam - ou criticam - os costumes), o que trouxe para ele uma boa gama de inimigos poderosos na corte.
Porém, sem nenhuma razão aparente, Molière estava na lista dos queridos de Luís XIV, que mesmo tendo que autorizar o fechamento do Hôtel du Petit Bourbon, concedeu o uso do Théâtre du Palais Royal, onde Molière escreveu, dirigiu e atuou suas peças ate (literalmente) o dia de sua morte, em 17 de fevereiro de 1673.
Moliére escreveu uma quantidade enorme de monólogos, dramas, farsas, comédias e alguns poucos poemas. Dentre sua obra podemos destacar grandes textos, que foram imortalizados pelo tempo e pelo teatro, tais como: Escola de Maridos (1661); Escola de Mulheres (1662); A crítica da escola de mulheres (1663); Tarfugo(1664, 1667, 1669); Don Juan (1665); O avarento (1668); O Burguês Fidalgo(1670); Psyché (1671); Doente Imaginário(1673).


A montagem atual de ”O Avarento”, com direção Felipe Hirsch.

É claro que eu vou começar a contar sobre a peça falando do protagonista, Paulo Autran, que no auge dos seus 84 anos, continua sendo com certeza um dos melhores atores de teatro de todas as gerações. Para a peça, que comemora a sua nonagésima produção teatral, Autran compôs seu personagem de forma magnífica.
O fato do ator já ter participado de outras quatro montagens de peças de Molière (O Burguês Fidalgo, em 1968; As Sabichonas, em 1971; e Tarfugo em 1985), deu a ele uma vantagem incrível no momento de dar vida ao Avarento, pois o ator já conhece na intimidade o mundo e a mente de vários personagens criados pelo teatrólogo.
A impressão que eu tive é que Paulo Autran conseguiu transcender a barreira do tempo, que separa o escritor do ator e, trouxe para o palco um personagem cheio de dimensões e faces, acontecimento que só pode ser fruto de um entendimento íntimo do contexto histórico em que a obra foi escrita, e conhecimento pleno do trabalho do autor e da peça que vai ser interpretada.
Autran, que há muitos anos atrás deixou sua carreira de advogado para iluminar os palcos, mostra o protagonista criado por Molière na medida certa. Seu personagem Harpagão, o protagonista que é mais conhecido como o avarento, faz o público rir de uma maneira ingênua e prazerosa, com uma seqüência rápida de acontecimentos que obstrui a capacidade lógica do espectador de julgar o que sente pelo personagem.
Nos olhares da platéia vemos vários tipos de emoções misturadas, talvez pena e raiva sejam os dois sentimentos mais evidentes, porém nenhuma das pessoas presentes no teatro pode questionar a honestidade do personagem, que é exposta de maneira hilária quando ele assume o seu amor incondicional por dinheiro, o que me leva a imaginar e desejar que um dia nós teremos o prazer de ver Paulo Autran atuando em o Mercador de Veneza, de William Shakespeare.

Com um tempo impecável os diálogos da peça são extremamente bem reproduzidos, não só por Autran, mais por todo o elenco que trabalha em perfeita sincronia e harmonia. Cleanto, filho do avarento, interpretado por Gustavo Machado, mostra a caricatura dos nobres que pretendiam freqüentar a corte de Luís XIV e que para isso seguiam todas as normas de etiqueta e movimentação apropriada, ditadas pelo rei.
Elisa (interpretada por Claudia Missura) é a outra filha do avarento. Seu personagem mostra o lado exagerado de uma jovem dama do século XVII, que em segredo se apaixona por um criado. É injusto citar apenas alguns dos personagens da peça, sendo que todo elenco atua de maneira que só pode ser descrita com elogios.
A peça conta a história de um homem avarento, que tem uma fortuna escondida em seu jardim, e sua relação danificada com seus filhos por causa de sua mesquinhez. Entre encontros e desencontros amorosos, a peça enfoca temas como lealdade, honestidade, solidão, avareza e manipulação humana.
A peça é uma obra tragi-cômica, que com muito humor trás uma forte crítica a sociedade. Mesmo os expectadores mais difíceis de impressionar e a facção de não amantes de Molière vão achar algo para ser apreciado nessa montagem de “O avarento”.
Chamo a atenção dos leitores para o figurino que é muito bem montado e para completar essa peça que já veio com tudo para arrasar, faltou apenas dizer que o cenário só pode ser descrito como maravilhoso!
A primeira cena da peça onde todos os personagens são “encaixotados” dentro do cenário é de tirar o fôlego e provavelmente inesquecível. Infelizmente O Avarento vai ficar em cartaz por apenas mais quatro semanas, e se você correr e tiver sorte, pode ser que ainda consiga um ingresso para assistir a peça que em todas as apresentações tem mantido o teatro lotado (e satisfeito).
Autor: Adriana Zimbarg


Artigos Relacionados


Fonoaudiologia E A Arte De Encenar

O Teatro No SÉculo Xvii Em Mato Grosso

Considerações Sobre Literatura Clássica Do Século Xvii

Ricardo Iii

Notas Sobre A Disciplina "interpretação E Direção".

Peça Teatral: O Santo E A Porca – Ariano Suassuna

Teatro - Uma Forma De Vida