Crônicas do Serviço Público II



A Viúva Carlos Gomes

Convivi na rede pública municipal, ao longo de várias administrações consecutivas, com uma figura ímpar, daquelas que se tornam lendas antes mesmo de desencarnarem.

Uma senhora vistosa e muito elegante, que ocupou vários cargos, ligados hora ao Pedagógico hora ao Administrativo, e que ganhou como “prêmio”  da administração municipal, para uso próprio, a cadeira que ocupou, durante anos, enquanto coordenou determinado espaço público.

Quando me refiro à cadeira não o faço em sentido metafórico, ou seja, o cargo. Refiro-me a uma cadeira giratória, de espaldar alto, estofada e muito confortável, que ela levou para o próximo espaço onde foi atuar.

A principal peculiaridade de nossa homenageada sempre foi a sua dedicação incondicional à memória do grande campineiro, Carlos Gomes.

A sua dedicação extrapolou tanto os limites da atuação profissional e foi tão contínua e ininterrupta, ano a ano organizando “semana de Carlos Gomes”, “mês de Carlos Gomes”, “Seminário de Carlos Gomes”, “mostra de Carlos Gomes”, que ficou conhecida, em muitos segmentos da Rede Pública Municipal de Campinas como “a viúva de Carlos Gomes”.

Durante tantos anos, de uma maneira tão intensa e contínua se deu a sua dedicação que ela acabou sendo, denominada e auto-denominada, “a viúva oficial de Carlos Gomes”.

Ninguém jamais havia ousado questionar a sua legitimidade no “cargo” até o momento em que alguns segmentos da Secretaria Municipal de Educação decidiram entregar a tarefa de representa-la num evento destinado à memória Carlos Gomes.

Foi então que a “viúva oficial” e alguns colegas de trabalho decidiram instituir, além da sua figura, nos eventos destinados às homenagens ao maestro Antonio Carlos Gomes, a “amante de Carlos Gomes”.


Teia de Aranha

Aracnídeos em Campinas, os há de vários naipes: a Viscondessa de Campinas, os barões de Anhumas e de Itapura, o senhor que trabalha na imobiliária, a assessora da Prefeitura, a professora...

Convivi durante muitas gestões consecutivas com uma aracnídea. Nossos encontros foram pontuais e a nossa interação profissional sazonal. O que sempre ficou foi a excelente relação inter-pessoal pois, como já disse numa outra crônica, "os cargos passam, as pessoas ficam".

Trabalhamos juntos na época daquele que mudou de partido no meio do mandato, na época do "velhinho que bebia" – quando também trabalhava conosco "aquele que virava os olhos", que lhe passou uma grande rasteira mas, no frigir dos ovos, também foi tombado – e na época do "bom doutor". Desta última vez posso afirmar que, tanto no aspecto qualitativo quanto quantitativo, formamos uma bela equipe.

É natural às aranhas que teçam as suas teias. Esta minha amiga não foge à regra: passa a vida a tece-las...

As teias podem ser de várias formas, e podem ter várias finalidades: há os que tecem teias para capturar presas e delas se alimentar, há os que tecem teias para dar suporte ou apoio aos que estão caindo, para proteger e alimentar a prole, para socorrer os que se precipitam nos abismos... As teias também podem servir para dar suporte às próprias aranhas, que nelas se agarram quando há um vendaval ou uma tempestade.

Ainda na época do "bom doutor", certa feita, houve um vendaval que derrubou muitas pessoas, que pareciam solidamente assentadas em seus cargos. Nos dias e semanas subseqüentes, só víamos a nossa laboriosa aracnídea subindo e descendo as escadas do anexo, tecendo, tecendo, tecendo...Amarrando os fios de sua teia em todos os lugares que demonstrassem alguma firmeza. Teceu uma teia tão bem feita que o vendaval passou e ela se manteve.

Antes do vendaval passar nossa chefia imediata – personagem de outra crônica, a descendente do bandeirante Anhanguera – foi também levada pelo turbilhão.

A nova chefia – uma pessoa doce e amiga – viu-se, logo nos primeiros tempos,envolvida num episódio insólito, até mesmo surreal, eu diria: eu e a aracnídea tivemos de passar toda uma tarde escondidos com ela em sua sala, a portas fechadas, para escaparmos ao assédio de um casal extremamente agressivo e insistente, que participava de uma reunião na sala em frente a nossa.

Sobre este casal e a instância representativa que eles insistiam em se auto-intitular "legítimos representantes", escreverei em momento oportuno, até porque se tratava de uma espécie de "tribunal do Santo Ofício", travestido em espaço de discussão democrática.

A imperatriz das reuniões

"Filho de peixe, peixinho é", conforme a sabedoria popular.

A mãe desta minha amiga (que bem passaria por irmã, diga-se de passagem) sempre foi chamada de "abelha rainha" por um dos filhos e, em várias situações da vida, deu provas da sua majestade. Minha amiga, quer seja pelo seu porte altivo, quer seja pelo dom da oratória – que sempre foi a sua característica mais marcante – não poderia ficar atrás e, em assim sendo, sempre teve atitudes, comportamentos e posturasque mais caberiam à realeza do que a uma militante de esquerda, que ela sempre foi.

Ela já aparece incidentalmente em minhas crônicas, carregando um prato de polenta e sendo levada por um turbilhão, mas faltava me deter mais na descrição de sua personalidade ímpar.

Sobre a "viúva Carlos Gomes" disse que é o tipo de personagem "daquelas que se tornam lendas antes mesmo de desencarnarem". Sobre esta minha amiga, eu diria que ela se torna um mito.

Como disse antes, o seu principal dom é a oratória e ela é, com certeza, uma das poucas pessoas que eu conheço que podem falar ininterruptamente, sobre qualquer assunto, por mais de três horas em seguida...Basta apenas que ela fique em pé, empine os peitos, e assuma uma expressão fisionômica de orador romano. Claro que o seu gestual também ajuda. Cícero, Sêneca ,Caio Graco ou o próprio Júlio César – exímio na arte da retórica -não estariam a altura dela!

Ela é capaz de discursar sobre qualquer assunto, desde um projeto ou programa até a qualidade da água ou o calçamento das ruas...O tema sempre foi algo secundário, já que o essencial é apenas a sua vontade de falar.

Enquanto trabalhamos juntos, num determinado setor da Prefeitura, a divisão de trabalho entre nós – ela enquanto chefia e eu enquanto chefiado – era a ideal: eu realizava todos os trabalhos práticos e ela discursava...Participava com afinco de toda e qualquer reunião para a qual fosse convocada, convidada ou lembrada e falava horas a fio sobre todo e qualquer assunto, fosse ou não da sua alçada, e eu desenvolvia tranqüilamente toda a parte burocrática.

Certa feita, estávamos ambos participando de uma determinada comissão de um dos conselhos da cidade, ela como coordenadora e eu como membro da comissão. Nos reuníamos todas as quintas-feiras à tarde e, numa determinada ocasião, eu despachei sete documentos, enquanto ela falava ao telefone.

Cada um com as suas competências: ela tem o dom da argumentação, o que sempre me deixou seguro em participar de reuniões ao lado dela, e eu tenho o dom da organização, o que sempre a deixou segura em delegar-me a parte burocrática.

"O peixe morre pela boca", também diz a sabedoria popular.

Paradoxalmente, o seu gosto pela oratória, o uso que ela sempre soube fazer da retórica,além da sua necessidade de participar de toda e qualquer reunião onde – ainda quemais remotamente – o assunto lhe dissesse respeito, que foram a razão da sua vitória, levaram-na algumas vezes à derrota.

Uma determinada ocasião em especial, num incidente do qual ela tomou parte, me fez crer que muitas vezes é muito maissábio calar do que falar e que muitas vezes a vitória está em saber o momento de se render.

Mais este favor eu devo à minha amiga: além de ter me levado trabalhar consigo, neste determinado setor da Prefeitura, a sua queda me ensinou como me manter, ainda por algum tempo, dentro dele!

Sobre o fato de ter sido levado a trabalhar com ela, eu a alcunhei – muito justamente – de "a redentora" pois, metaforicamente, ela me "alforriou" ao fazê-lo.

Eu explico: ser professor numa escola distante, na periferia da cidade, muitas vezes se assemelha a uma morte em vida, ao ostracismo, ao esquecimento...Você nunca é lembrado, nunca é ouvido, nunca é consultado.

Podemos ter todas as restrições ideológicas a Benito Mussolini – e certamente nós as temos – mas, uma frase de sua autoria, em especial, deve ser levada em conta: "mais vale um dia como leão do que cem anos como cordeiro"...

Esta minha amiga viveu um ano num dos espaços centrais de discussão da rede pública municipal de educação de Campinas. Quando lá estava, fui lembrado, e ela então levou-me a estar consigo, dividindo não apenas o trabalho, mas também a glória.

Sou eternamente grato.

Ao contrário das demais crônicas que eu escrevo, que omitem todos os nomes próprios, esta eu quero que todos saibam que é dedicada a minha amiga, Rachel Aparecida Bueno da Silva: "Rachel, a redentora".

Refiro-me a ela como aquela que segura o prato de polenta nas mãos, na crônica que se chama exatamente O prato de polenta. Éela a descendente do bandeirante Anhanguera, e que tem o mesmo sobrenome.

Foi muito fácil às pessoas se dizerem suas amigas enquanto ela estava num cargo de prestígio. Vi dezenas de aduladores dela se aproximarem naquela época.

Eu poderia muito bem ter escrito esta crônica naqueles dias... Não o fiz.

Ensinaram-me muito cedo, que nos momentos de glória todos querem ser conhecidos como seus amigos, mas é nos momentos de dificuldade que você os reconhece.

A senhora que não acreditava em Deus

Já ouvi que "o importante não é se você acredita ou não em Deus, mas sim se Ele acredita ou não em você."

Meu pai era materialista. Criado em Colégio Confessional, onde minha avó o colocou muito cedo, pois havia ficado viúva, ele conhecia todas as vicissitudes da Igreja Católica, todos os seus cacoetes...Sabia a missa toda em latim, ladainhas,vidas dos santos...Não acreditava em nada!

Criou-nos acreditando que todos éramos capazes de mudar o próprio destino e que o único juízo de valor que pesaria sobre todos nós, durante o resto das nossas vidas, era o nosso mesmo. Mostrou-nos que o nosso próprio juízo de valor, na forma da autocrítica,era muito mais rigoroso do que os dez mandamentos da lei de Deus e os cinco mandamentos da Igreja juntos!

Como os valores dele eram humanos e não divinos, ensinou-nos a ser íntegros, a ter ética e a nunca prejudicar a outrem, fosse quem fosse, para não darmos margem a que alguém julgasse justo nos prejudicar. Nunca me lembro de tê-lo visto ter atitudes preconceituosas de qualquer tipo, fosse em relação à cor, à raça, à ideologia, confissão religiosa ouopção sexual e nunca me lembro de tê-lo visto infringir qualquer lei, nem mesmo a legislação de trânsito!

Jamais praguejou ou agrediu verbalmente a quem quer que fosse, mesmo durante os 5 longos anos em que ficou morrendo de câncer no esôfago. Nos últimos 6 meses, morrendo devagar, perdeu a capacidade de se comunicar, e a única solicitação foi para morrer em casa.

Minha mãe, em contrapartida, que o acompanhou por quase quarenta anos (5 anos de namoro e 32 de casamento), teve com ele 5 filhos e que cuidou dele até o final,é uma "beata" confessa. Faz parte da Irmandade do Santíssimo Sacramento, é catequista (assumiu o ofício por sentir falta da sala de aula, de onde saiu aos 64 anos, como professora de Educação Infantil na rede pública municipal de Jundiaí-SP), guarda "domingos e festas", "reza" o tempo todo que tem livre...É, como se diria, "papa-hóstia" convicta! Uma legítima "rata de sacristia"!

Em comum com o meu pai, os ideais igualitários (cada um a sua maneira), a idéia da fraternidade entre as pessoas e a completa ausência de preconceitos: ela, querendo ganhar o céu, e ele querendo modificar a terra.

Conto esta historinha familiar para ilustrar melhor a personalidade da pessoa que dá nome a esta crônica: uma Diretora de Departamento que sempre me lembrou muito meu pai, não apenas na ausência de convicção religiosa, mas também na presença da convicção ideológica.

Pode parecer herético da minha parte e, com certeza, nem a "homenageada" concordará, mas, na verdade, quem conviveu com ela pode afirmar que "na prática, a teoria é outra", ou seja, que "acreditar" é que faz a diferença.

Se tivermos uma Bíblia sobre o aparador da sala - aberta no Salmo nº 91 - ou um volume do Capital na estante e não tivermos convicção, o efeito é o mesmo: nenhum!

Da mesma maneira, se acreditamos em alguma coisa, em algo, ou em alguém (independente do que, ou quem) estaremos imbuídos de uma força interior que nos faz capazes de transformar o mundo.

Na prática cotidiana, esta senhora sempre foi altruísta, humana, sincera eética.

Sem acreditar em Deus, eu a vi ser levada às lágrimas, pela indignação e sensação de impotência, ao ouvir um pai de determinada comunidade se referir a alguns adolescentes como sendo "bandidos".

Sem acreditar em Deus, ela se responsabilizou por um completo estranho, que havia chegado de Piracicaba e precisava de uma orientadora para pleitear uma bolsa de estudos. Era um jovem carente, que não tinha condições de se manter estudando na Universidade. Ele mesmo me contou este episódio.

Sem acreditar em Deus ela sempre afirmou que o seu objetivo último, enquanto Diretora do Departamento, era conseguir oferecer "uma escola melhor às nossas crianças."

Sem acreditar em Deus ela investiu em pessoas do povo, que conseguiram chegar, por esforço pessoal e pela boa vontade de alguns "notáveis" – como ela própria – a algum cargo.

Sem acreditar em Deus ela conseguiu construir uma carreira sólida, enquanto educadora e enquanto teórica da educação, comprometida com uma escola de qualidade para as classes trabalhadoras...

Sem acreditar em Deus, ela sempre se preocupou em receber bem e tratar de uma maneira respeitosa e igualitária todas as pessoas que a procuravam.

Foi ela quem me ensinou como devo me comportar numa reunião, fazendo "cara de paisagem", para que os interlocutores jamais saibam se estou contra ou favor das suas proposições, guardando a minha neutralidade. Também foi ela a primeira pessoa que disse – em quase vinte anosque atuo na rede pública municipal de Campinas – que eu sou "importante" dentro da Secretaria...

Por todos os motivos descritos acima, talvez até à revelia da "homenageada",eu encerro afirmando que ela pode até não acreditar em Deus...mas Ele acredita (e muito) no trabalho dela!

"Fazendo farofa"

Em todas as épocas, quando a educação das camadas populares foi gerida por membros da elite, sempre se fez questão de manter um certo ar burguês, uma certa "compostura".

Ao analisarmos fotografias de escolas públicas, das décadas de 30, 40 e até de 50, do século passado, veremos alunos de gravatinha, alunas de saia plissada e sapato de "boneca", escolas impecáveis e, muitas vezes, 2 professoras ao mesmo tempo dentro da mesma sala de aula.

Em compensação, quando membros das camadas populares acabam ocupando cargos de especialistas de educação, tais como diretores e supervisores, as coisas mudam um pouquinho...

Existe um grau de "entrosamento" tal entre os sujeitos do processo de ensino-aprendizagem que permite algumas situações bastante pitorescas, que ilustram muito bem o caráter da cultura popular.

Lembro-me muito bem que foi logo após a inauguração do Shopping Galleria, "podre de chic", que uma determinada orientadora pedagógica, "oriundi" como eu mesmo, decidiu levar os alunos da EJA, para assistirem ali uma sessão de cinema.

Alugamos alguns ônibus, tomamos o cuidado de convidar a supervisora responsável pela escola – outra "oriundi", extremamente simpática e com forte sotaque paulistano, e que na ocasião estava muito acima do peso – os alunos colocaram as suas roupas dominicais...Estávamos todos bastante discretos e tentando parecer chiques.

Ao chegarmos ao novo Shopping, um primor de arquitetura contemporânea com fontes e "ilhas" com vegetação, os alunos ficaram deslumbrados...Confesso que eu mesmo não havia ainda conhecido aquele espaço.

Tudo corria bem, até o momento em que a supervisora se lembrou que os alunos ficariam sem merenda.

Ela então tratou de ir a uma rede que vende comida árabe...Aquela mesma que o leitor pensou, mas que não posso citar para não fazer merchandising.

Estava eu, sentadinho e quietinho com os alunos, todos muito finos e discretos... eis que entra a senhora supervisora carregandovárias caixas fechadas e se pôs a gritar: "Quem quer kibe?"..."Alguém quer esfiha?"

Todos ficaram agitadíssimos e passaram a comer ruidosamente! Fomos alertados pelos administradores do cinema a não produzirmos lixo naquele espaço.

A nossa "finesse" rolou por terra e passamos todos a comer alegremente, como um bando de "farofeiros" em visita à Praia Grande em tarde de domingo!

Todos adoraram o passeio!

Uma questão de nível

Estava eu diretor de escola e adentrou ruidosamente a minha sala uma mãe de aluna.

Notei que a camiseta dela estava furada, mas fiz de conta que não percebi.

Ela passou a vociferar e praguejar...Disse que a escola era uma "zona", uma verdadeira "bagunça"...Que imperava o desgoverno.

Disse também que ninguém ali tinha nívelque as meninas eram "baixas" e que o espaço não era digno da filha dela!

Para sua surpresa, enquanto diretor da escola, concordei com todas as suas afirmações: disse que eu pedia desculpas, mas reconhecia mesmo que a escola era uma "zona". Pedi a uma funcionária que lhe trouxesse um cafezinho e fiz com que se sentasse.

Arrematei dizendo que ninguém ali tinha mesmo nível – inclusive eu mesmo – e que, desta maneira, a escola não era digna de uma moça tão fina e educada como a filha dela...

Mas, o dever do gestor escolar não é apenas identificar o problema, mas sim propor uma solução e então disse que resolveríamos o problema naquele exato momento, transferindo a filha dela para uma escola que estivesse à sua altura.

A senhora ficou lívida...Não esperava esta reação da minha parte.

Ponderou que não seria fácil encontrar umavaga para a sua filha aquela altura do ano...Ponderou que não teria tempo de procurar...

Eu então a tranqüilizei e disse que ela não precisaria se preocupar com nada: eu mesmo conseguiria uma vaga.

Peguei o telefone e, após apenas duas ligações, estava feita a troca: transferi a filha dela para uma escola ao lado do aterro sanitário, uma boa escola da rede estadual.

Ela, num misto de surpresa e arrependimento, assinou a guia de transferência.

Na semana seguinte ela voltou: queixava-se da nova escola, dizia que parecia uma cadeia cheia de grades...Queria traze-la de volta para a escola.

Eu respondi que ela mesma havia dito que a "minha" escola era uma "zona" e não era digna da filha dela...

Ela se conformou, e saiu cabisbaixa.

"E aí,morreu o Neves..."

Estudei em escolas públicas estaduais desde a primeira série até à pós-graduação.

Muitas das professoras, especialmente da primeira à quarta-série, haviam sido colegas de escola da minha mãe, então, havia algumas falas recorrentes e alguns ditos comuns que eu ouvia tanto em casa quanto na escola.

Ultimamente, acompanhando pela imprensa e outras mídias a releitura do 11 de setembro de 2001, quando as torres gêmeas do World Trade Center, vieram abaixo, me lembrei de um destes ditos.

Certa vez, determinado aluno fez colocações impertinentes e inoportunas, a respeito de algo que não lhe dizia respeito, uma das professoras disse: "E aí morreu o Neves...A sogra do Magalhães botou luto. O que ela era?"

Começou uma grande especulação na sala, onde cada um arriscava seus palpites: ela seria prima, ou irmã do Neves...Talvez cunhada...

A professora, para nossa surpresa, arrematou; "intrometida!"

O episódio em questão aconteceu na segunda série, em 1974. Daquele ano em diante, até a oitava série, todas as vezes que alguém era pego dando palpite na vida alheia, ou se intrometendo em assunto que não lhe dizia respeito, bastava que alguém dissesse: "E aí morreu o Neves..."

Esta questão me leva ao episódio do World Trade Center: por acaso algum estilhaço de bomba, ou destroço das torres gêmeas chegou às praias de Santos? À Praça da Sé em São Paulo? À baia da Guanabara?

Por acaso o episódio (que empanou o brilho das exéquias do prefeito de Campinas, Antonio da Costa Santos, assassinado um dia antes) repercutiu de alguma maneira na vida cotidiana dos brasileiros?

Por acaso morreram mais pessoas neste dia do que na invasão do Afeganistão ou do Iraque?

O orgulho ferido dos estadunidenses, o seu ego inchado e enorme, o seu autoritarismo e a sua onipotência, a sua mão imperial e dominadora, estendida sobre as Américas, isto foi o que nos atingiu a todos.

O complexo de inferioridade, trazido pela dominação, o ímpeto de emulação incondicional em relação à nossa "matriz", é que faz com que nos interessemos – e até nos comovamos – mais com os 3 mil mortos do 11 de setembro, do que com os mais de 30.000 mortos no Afeganistão e no Iraque.

Mas, afinal de contas...O que eu tenho a ver com isso?

"E aí morreu o Neves..."

A professora analfabeta

Esta aconteceu há poucos anos.

Era a época das professoras "substitutas contínuas", profissionais que simplesmente se inscreviam junto à SME e, em possuindo habilitação, eram classificadas, listadas, escolhiam uma escola e lá prestavam serviços, substituindo qualquer professor que precisasse se ausentar.

Em nossa escola "apareceram" duas destas professoras, ambas bastante fracas, embora o grau da sua incapacidade não fosse o mesmo: uma delas preocupava-se mais com as peças de crochê – que ela produzia sob encomenda – do que com as aulas e a outra era quase completamente analfabeta.

A primeira, passava displicentemente qualquersérie de exercícios na lousa, ligava o seu "walk-man", colocava os fones no ouvido e, sem prestar atenção ao rumor e alarido das crianças, dedicava-se pacientemente aos seus pontos, ponto alto, ponto baixo, correntinhas...Houve uma semana em que conseguiu fazer um vestido de crochê inteirinho, todo feito, ponto a ponto, durante as aulas!

A outra, uma antiga merendeira da rede estadual que, a duras penas, conseguiu a sua habilitação com o auxilio dos professores que com ela atuavam na escola, era um desastre completo!

Certa feita, na pasta destinada às ocorrências disciplinares envolvendo alunos, eu mesmo tive oportunidade de ler uma anotação sua: "puiz u alunu pa fora pruque mi disacato".

Em outra ocasião, pude presenciar, juntamente à direção e à orientação pedagógica, uma cena surreal: uma aluna da EJA, grávida de 8 meses, gritava com a professora na frente da classe. Questionada, a aluna argumentou que passaria sim a respeitar a professora, caso ela fosse capaz de ler uma única linha de um livro, que a aluna lhe apresentava...

Incapaz de fazê-lo, a professora pôs-se a chorar e saiu da sala.

Muitos pensaram que ela fosse desistir de trabalhar na escola.

Qual não foi minha surpresa quando ouvi, dias depois, a outra professora, aquela mesma do crochê e do "walk-man" aconselhando-a a que não tentasse mais ler com os alunos ou escrever nada na lousa, que ocupasse as suas aulas com trabalhos manuais, como recorte e colagem, ou mesmo jornais. Afinal, ela sempre poderia se justificar, dizendo que estava desenvolvendo algum projeto!

A diretora que subtraía

Malba Tahan, que eu li muito quando adolescente, escreveu O homem que calculava, obra onde demonstra praticamente todas as operações matemáticas, de forma lúdica. 

Nos últimos anos tenho cada vez mais convicção de que algumas gestoras da nossa rede (felizmente uma minoria) precisariam muito ler este livro, pois não conhecem a soma dos esforços, no sentido da multiplicação dos recursos em prol de uma melhor divisão social da renda e do trabalho. 

De todas as quatro operações,  elas apenas exercitam a subtração, principalmente do erário público, ao qual elas acabam tendo acesso através do dinheiro do conta escola.   

Sem nomear, poderia citar um exemplo, este bastante antigo, e que entrou para o folclore da Secretaria: a diretora de escola que levou "emprestada" para a própria casa a copiadora, e cobrava 10 centavos por cópia! 

Houve também uma outra que usou recurso público para financiar a reforma da própria casa, outra, para mobiliá-la e outra ainda que usou o dinheiro da APM, cinco mil reais,  para oferecer como contribuição durante o culto na igreja que freqüentava! Acreditando na "teologia da prosperidade", fez um pacto com Deus para que o Todo Poderoso a tornasse bem sucedida e afastasse dela os problemas da vida pessoal.

Com certeza o Senhor não abençoou o donativo da diretora, não pactuou com ela, pois acabou sendo descoberta. Isto me faz lembrar o que uma amiga sempre diz: "não há mal feito sobre a face da terra que não acabe sendo descoberto". 

Algumas das gestoras aqui citadas já foram exoneradas, "a bem do serviço público" e no último caso, "a diretora que subtraía" foi obrigada a restituir aos cofres públicos, centavo por centavo, toda a soma (considerável) que havia oferecido à igreja. Assim sendo, inverteu-se o dito popular, pois da maneira como fez a diretora, "quem dá a Deus, empresta dos pobres".


Autor: Luiz Carlos Cappellano


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