Estado de Necessidade



1. Apresentação do tema.

De acordo com a definição feita pelo art. 24 do CP, considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.


2. Interpretações a respeito.

A cláusula "que não provocou por sua vontade" tem ensejado duas interpretações na doutrina.

Há quem a interprete limitadamente à provocação dolosa (Heleno Fragoso, Damásio de Jesus, Costa e Silva, Basileu Garcia, Reale Junior, Heleno Fragoso e Aníbal Bruno) e há quem a compreenda também impeditiva da excludente no caso de culposa provocação da situação de perigo (Hungria, Juarez Tavares, Fernando de Almeida Pedroso, Assis Toledo, Magalhães Noronha, Lyra Filho, Frederico Marques e Mirabete). Uma corrente fala em antinomia entre as regras do § 2º do art. 13 com a norma do art. 24, ambos do CP, pois sempre que o dever de agir for exigível, haverá a possibilidade do estado de necessidade, e outra, em contra-argumento, diz que a contradição é "aparente", tendo-se em vista que tipicidade e antijuridicidade não se confundem, são elementos distintos na composição jurídica do delito.

Em seu CP Anotado, Damásio de Jesus, comentando o art. 24, expressa o seguinte: ‘Entendemos que somente o perigo causado dolosamente impede que seu autor alegue encontrar-se em fato necessitado. Além da consideração de ordem humana, temos apoio no próprio Código Penal, que define a tentativa empregando a expressão ‘vontade’, que é indicativa de dolo. Assim, por meio de interpretação sistemática, analisando a expressão ‘vontade’ contida nos dois dispositivos (arts. 14, II, e 24), e sendo a primeira indicadora de dolo, chegamos à conclusão de que só o perigo causado dolosamente tem força de excluir a alegação justificadora do agente. Mas, se o provocou culposamente, é lícito invocar a descriminante" (comentários ao art. 24).

Assis Toledo, em sua obra Ilicitude Penal e Causas de sua Exclusão, responde: "Não se conclua, como fazem alguns autores, que só o ato doloso, não o culposo, afasta o estado de necessidade ... ‘Ora, nesta hipótese de crime culposo em que o perigo (não confundir com o resultado) tenha sido voluntariamente provocado, exclui-se, em nosso entender, o estado de necessidade em relação a seu agente provocador, apesar da inexistência de dolo, porque assim quer o legislador pátrio, e por não ser razoável permitir-se ao negligente ou imprudente que sacrifique bens ou interesses legítimos de inocentes para a egoística salvação de seus bens ou interesses, postos em perigo por sua própria negligência ou imperícia’.

E acrescenta:

’Note-se, aliás, que o legislador fala em provocação do perigo, não em provocação do resultado. A confusão em que se debatem os que identificam provocação voluntária do perigo com dolo ... vontade faz parte do espetáculo também nos crimes culposos, pois nestes, deve haver voluntariedade na causa do resultado (não no resultado), sob pena de o fato descambar para o terreno do caso fortuito ou da força maior, única região em que a vontade humana está totalmente ausente ou inoperante. No mais, é ela valorada sempre, em certa medida, pelo Direito Penal, ora como produtora de fatos dolosos (= vontade mais previsão do resultado), ora como produtora de fatos culposos (= vontade na realização de um fato portador de certo perigo, o qual, por imprevisão, produz resultado criminoso não querido pelo agente"). No mesmo sentido doutrinam Hungria e Noronha).

Juarez Tavares, em uma posição que se poderia dizer eclética, após expressamente afirmar que a corrente dominante (que é a favorável ao reconhecimento do estado de necessidade mesmo quando o perigo tiver sido culposamente provocado), baseada na afirmativa de que a expressão perigo que não provocou por sua vontade se refere apenas ao dolo, não é inteiramente correta e pode ser tida, pelo menos, como duvidosa, diferencia, para fins de incidência da justificativa, a causação do perigo com negligência consciente da provocação inconsciente.

Sustenta:

"Tratando-se de negligência consciente, já se afigura difícil distinguir entre a produção do perigo, feita com dolo, daquela resultante de uma atividade consciente e descuidada. Isto se torna ainda mais agudo, quando se procura estabelecer a relação concreta entre delitos de dano e delitos de perigo.

"Nos delitos de perigo, por exemplo, se o agente atua com negligência consciente, representa mentalmente esse perigo, mas, ao contrário daquele que atua com dolo, apenas não se conforma com ele. No entanto, em se tratando de crimes de perigo abstrato, que não deixam de ser importantes como meio ilícito da produção de resultados lesivos, a negligência consciente se confunde na prática com o dolo de perigo. Nos crimes de dano, igualmente, é difícil se distinguir entre dolo de perigo e negligência consciente. Se o agente, por exemplo, quer produzir um perigo para a vida de outrem, pondo fogo no quarto, mas sem a vontade de produzir-lhe a morte, excluída a hipótese de dolo eventual de dano, há concretamente delito negligente de homicídio, se a vítima vier efetivamente a morrer; entretanto, se a vítima sobreviver, haverá delito de perigo para a vida de outrem, com dolo de perigo, excluída também a hipótese de lesões corporais.

"Vê-se, pois, que esse perigo está associado ao agente ou na forma de dolo de perigo ou na forma de negligência consciente, conforme respectivamente, não ocorra ou se verifique o resultado morte (Fragoso, Lições, Parte Especial, 1977, pág. 169: "Se sobrevém o dano, haverá crime culposo (lesões corporais culposas ou homicídio culposo), desde que tenha havido apenas dolo de perigo".

"Neste exemplo, está mais do que claro que o agente tinha representação acerca do perigo e o desejava; não pode ele socorrer-se de estado de necessidade, se, para salvar-se das chamas, tiver que agredir outra pessoa ou aquela mesma contra a qual queria ele produzir o perigo. É que, tendo em vista a íntima relação entre dolo de perigo e negligência, pode-se dizer que o agente causou o perigo por sua vontade.

"Se, porém, a agressão, levada a cabo contra terceiro inocente ou contra a própria vítima do perigo, for negligente, poder-se-á estender o estado de necessidade em seu benefício, pois, como o resultado não se inclui na relação volitiva, não será preciso que o agente tenha consciência de que há perigo e, portanto, uma situação de necessidade.

"Esta interpretação do art. 24 está de acordo, inclusive, com a estrutura dos fatos omissivos, que se fundamentam no dever de garantidor decorrente da "ingerência", ou seja, daqueles fatos omissivos que resultam do dever que tem o agente de impedir os resultados danosos e perigosos derivados de fato anterior praticado por ele e gerador do perigo (art. 13, § 2.º, CP). Se autorizássemos o estado de necessidade, nas hipóteses de produção negligente (consciente) do perigo pelo próprio agente, estaríamos descartando o dever de agir derivado da ingerência.


3. Exame crítico.

Realmente, tal como leciona Wessels, "a ordem jurídica não pode homologar o sacrifício de um direito, favorecendo ou beneficiando quem já atuou contra ela ao praticar um ilícito e criar o perigo" (Direito Penal, Parte Geral), notadamente nos casos de culpa consciente, em que o sujeito tem a representação concreta do perigo que poderá provocar e atua, não se deve admitir a alegação da excludente. Frederico Marques fornece o seguinte exemplo: "Motorista dirige o carro imprudentemente, mediante velocidade excessiva às circunstâncias do tráfego e, em um cruzamento, ante o risco de colidir em outro veículo, joga o carro para o lado e termina por atropelar um pedestre".

A jurisprudência, sem maiores considerações sobre a circunstância de a negligência ser consciente ou inconsciente, tem sido rigorosa, não reconhecendo o estado de necessidade nos casos:

"Motorista que invadiu a contramão para impedir que o filho menor caísse do banco do veículo, uma vez que a criança estava sendo transportada sem as devidas cautelas, o que lhe provocou o risco de queda" (RT 546/357).

"Motorista que alegou ter sido forçado a subir na calçada, atropelando transeunte, quando provocou o perigo ao deixar de observar o fluxo de trânsito da preferencial em que ingressou" (RT 527/380).

"Agente que, ante parada repentina de veículo que lhe seguia à frente, desvia sua trajetória, vindo a abalroar outro automotor que trafegava em sentido contrário. Alegação de estado de necessidade. Inadmissibilidade. Age com culpa em sentido estrito, na modalidade de imprudência, o agente que, ao tentar ultrapassagem de veículo que lhe ia à frente, invade a contramão e colide frontalmente com carro que trafegava, em sentido contrário, corretamente em sua pista de rolamento. A culpa mais se acentua quando o motorista não mantém entre os veículos espaço suficiente para, na velocidade que desenvolve, frear normalmente, na eventualidade de súbita brecada do auto que o procede na pista, não se caracterizando o alegado estado de necessidade, tal como conceituado no art. 20 do CP" (RJDTACRIM 7/119).

"Agente que atropela transeunte, deixando de prestar assistência, face à ameaça de linchamento. Inadmissibilidade ante a situação de perigo criada pelo motorista. Excludente repelida. Aquele que provoca situação de perigo, mediante atuação no mínimo culposa perante a mesma, não pode com êxito invocar estado de necessidade real ou putativo" (RJDTACRIM 3/143).

"Para que se possa reconhecer estado de necessidade ou inexigibilidade de outra conduta é imprescindível que bens ou interesses estejam correndo perigo em decorrência de ato não provocado voluntariamente pelo agente" (TACRIM-SP - AC Rel. Weiss de Andrade, RT 546/357).


4. Conclusões.

Apesar de a doutrina dominante inclinar-se pela admissão do estado de necessidade mesmo no caso de que o perigo tenha sido produzido negligentemente, sustentamos que a negligente provocação do perigo afasta o reconhecimento da excludente, tenha sido o fato previsto ou não pelo agente. Voluntariedade a que se refere o art. 24 do CP quer dizer vontade na conduta de perigo atual e não no resultado. Além do mais, anota Mirabete, diante da norma do art. 13, § 2º, alínea "c", do CP, que obriga a agir para evitar o resultado aquele que, com seu comportamento anterior, ainda que culposo, criou o risco da ocorrência do resultado, forçoso concluir que se deve excluir o estado de necessidade também quando o sujeito culposamente provocou o perigo (Manual de Direito Penal, vol. I, pág. 170).

Na clássica hipótese dos náufragos que disputam a posse exclusiva do último salva-vidas, em que um deles culposamente causou o naufrágio, o outro atua em legítima defesa e não em estado de necessidade, pois o estado de necessidade pressupõe conflito entre interesses juridicamente protegidos, e a proteção sobre o bem do ofensor injusto, enquanto vigente a agressão, estará suspensa, havendo, por conseguinte, em que pese o conflito de bens, um único bem passível de proteção penal.

Numa única hipótese a conclusão seria outra: havendo um desdobramento posterior à criação dolosa ou culposa, que não estivesse no âmbito do ordinariamente previsível e tendo o agente de empreender uma nova atividade para conjurar o risco por ele provocado, com solução de continuidade entre a situação precedente que criou o perigo e o comportamento ulterior, a justificativa é admissível.
Autor: Roberto Bartolomei Parentoni


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