ESCOLA, UMA FÁBRICA DE DISLÉXISO - ENTREVISTA COM VICENTE MARTINS



“ A ESCOLA É UMA FÁBRICA DE ALUNOS COM DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM”


Folha da UVA – No início deste semestre, o sr esteve durante uma semana ministrando palestras e minicursos, em Sorriso, Mato Grosso, sobre necessidades educacionais especiais. Como surgiu o convite?
Vicente Martins – Nos últimos 10 anos, venho me dedicando às dificuldades de aprendizagem relacionadas com a linguagem. A convite da Secretaria de Educação de Sorriso e da Secretaria de Educação Especial do MEC participei, em Mato Grosso, do Projeto Educar na Diversidade. É um projeto bem interessante que consiste em desenvolver escolas e práticas de ensino inclusivas a fim de combater a exclusão e responder à diversidade de estilos de aprendizagem nas salas de aula.
Durante uma semana ministrei a oficina Como lidar com dislexia, disgrafia e disortografia em sala de aula cujo principal objetivo foi o de formar professores do ensino regular para usarem estratégias de ensino inclusivas e• preparar educadores e a comunidade escolar para apoiar o desenvolvimento docente para a inclusão.
A orientação do MEC é que os docentes que participam deste programa possam, no ambiente de formação, transformar o ambiente escolar em um espaço inclusivo, acolhedor de aprendizagem colaborativa continua e responsivo às diferenças humanas. Cerca de duas mil pessoas, envolvendo diretores, professores e pais, participaram deste evento em Mato Grosso.
Folha da UVA – A sua ida a Brasília foi também participar deste Projeto do MEC?
Vicente Martins – Em Brasília, também, passamos uma semana intensa atividade acadêmica. A convite da dra. Windys Ferreira, coordenadora do Projeto Educar na Diversidade, do MEC, passamos três dia visitando e conhecendo de perto as atividades das secretarias do MEC, particularmente a Secretaria de Educação Especial que vem, fazendo um trabalho muito eficiente no tocante às políticas de educação inclusiva.
Há uma preocupação muito grande com relação às dificuldades de aprendizagem em leitura, escrita e ortografia, isto é, como as escolas podem desenvolver, na prática, um ambiente acolhedor de todas as crianças da comunidade, o que, decerto, demanda significativo grau de transformação na sua orientação pedagógica, na sua política e cultura escolar, a fim de atender à diversidade de necessidades educacionais dos alunos. Ainda em Brasília, a convite do Curso de Letras da UnB, ministramos palestra sobre educação especial e legislação educacional, focalizando os avanços e recursos dos dispositivos legais da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no âmbito da educação superior.
Folha da UVA – Como lidar com as dificuldades de aprendizagem em sala de aula?
Vicente Martins - O tratamento didático, em sala de aula, requer do professor formação específica para tal em cursos, principalmente, de educação continuada uma vez que os cursos de formação inicial (ou graduação) têm um carga horário e currículo bastante reducionistas com relação às novas demandas da educação inclusiva. Minha desconfiança é a de que a maior parte dos casos de dificuldades de aprendizagem, em sala de aula, resulta de ineficiência pedagógica ou metodológica, daí a importância da intervenção acadêmica no tocante a formação inicial e continuada dos professores. Para o Projeto Educação na Diversidade, é um grande desafio uma política de ensino a todos os alunos. Por isso, os educadores - e em especial os docentes em exercício, - devem ter acesso a ações de formação como ponto de partida de seu desenvolvimento profissional.
O projeto Educar na Diversidade constitui uma ação que favorece o desenvolvimento profissional do docente e oferece recursos teórico, didático e pedagógico para ensinar a todos os seus alunos na sala de aula, com olhar muito especial para os que apresentam dificuldades de aprendizagem. O atual modelo de ensino de escolas de educação básica, no Brasil, é uma fábrica de disléxicos e de alunos com dificuldades de aprendizagem e conseqüentemente com baixo rendimento escolar. Estamos, em Sobral, concluindo uma pesquisa sobre os hábitos leitores dos alunos da UVA e uma outra sobre o desempenho ortográfico de alunos do ensino fundamental em que comprovamos que muitas práticas escolares não têm dado uma garantia de aprendizagem eficaz aos alunos da educação básica.
No Curso de Letras de Sobral, criamos três novas disciplinas para o estudo e pesquisas das dificuldades de aprendizagem de leitura, escrita e ortografia bem como inserimos no conteúdo programático das cursos de educação continuada(pós-graduação lato sensu) disciplinas que tratam das três habilidades e de suas dificuldades com a idéia de preparar os profissionais de educação para as escolas inclusivas.
Folha da UVA – Há alguma diferença entre educação especial e as necessidades educacionais especiais
Vicente Martins - Há, sim. A Lei 9.394/96, a chamada Lei de Diretrizes e Bases da educação Nacional,. No seu artigo 58, define a educação especial como a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais. O conceito de necessidades educativas especiais (NEE) começou a ser difundido em 1978 a partir da sua adoção no Relatório Warnock, apresentado ao parlamento do Reino Unido, pela Secretaria de Estado para a Educação e Ciência, Secretaria do Estado para a Escócia e a Secretaria do Estado para o País de Gales. Este relatório foi o resultado do 1º comitê britânico, presidido por Mary Warnock, e que foi constituído para reavaliar o atendimento aos deficientes. Importante assinalar que os resultados demonstraram que vinte por cento das crianças apresenta NEE em algum período da sua vida escolar. A partir destes dados, o relatório propõe o conceito de NEE. A inserção de educandos com necessidades educacionais especiais, no meio escolar, é uma forma de tornar a sociedade mais democrática. Da mesma forma, a transformação das instituições de ensino em espaço de inclusão social é tarefa de todos que operam com a alma e o corpo das crianças especiais.
Folha da UVA - Quem, no processo escolar, pode ser considerado um “educando com necessidade educacional especial?
Vicente Martins - Segundo a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), importante documento internacional para a inclusão de crianças especiais na escola, o conceito de escola inclusiva abrange todas as crianças e jovens cujas necessidades envolvam deficiências ou dificuldades de aprendizagem, Inclui, assim, tanto crianças em desvantagem como as chamadas superdotadas, bem como crianças de rua, as que trabalham, as de populações remotas ou nômades, crianças pertencentes a minorias étnicas ou culturais e crianças desfavorecidas ou marginais, bem como as que apresentam problemas de conduta ou de ordem emocional.
No Brasil, o MEC, através do Conselho Nacional de Educação, homologou a Resolução CNE/CEB n.º 02, de 11 de setembro de 2001, que faz, no seu artigo 5º, a seguinte tipologia de crianças especiais:
l) Os educandos com dificuldades acentuadas de aprendizagem (inciso I). Esses educandos são aqueles que têm, no seio escolar, dificuldades específicas de aprendizagem, ou “limitações no processo de desenvolvimento que dificultem o acompanhamento das atividades curriculares”.
As crianças com dislexia e dificuldades correlatas(dislalia, disgrafia e disortografia), por exemplo, estão no grupo daqueles educandos com dificuldades “não vinculadas a uma causa orgânica específica”, enquanto as crianças desnutridas e com dificuldades de assimilação cognitiva, por seu turno, estão enquadradas entre “aquelas relacionadas a condições, disfunções, limitações ou deficiências”.
2) Os educandos com dificuldades de comunicação e sinalização. Estas, no entender dos conselheiros, são as “diferenciadas dos demais alunos”, o que demandaria a utilização de linguagens e códigos aplicáveis. Os crianças cegas de nascença, por exemplo, se enquadrariam neste grupo.
3) Os educandos com facilidades de aprendizagem. Os conselheiros observam que há alunos, que por sua acentuada facilidade de assimilação de informações e conhecimentos não podem ser excluída da rede regular de ensino. Aqui, o valor está em avaliar que são especiais aqueles que “dominam rapidamente conceitos, procedimentos e atitudes” no meio escolar.
Folha da UVA – No que se refere às dificuldades de aprendizagem em leitura, escrita e ortografia, como as escolas devem proceder para identificar essas crianças especiais?
Vicente Martins – Na escola, o diagnóstico deve ser encarado como um procedimento em que o professor ou o coordenador pedagógico, procura com a orientação psicopedagógica, a natureza e a causa da DA (Dificuldade de Aprendizagem). Em sala de aula, o educador pode proceder com um diagnóstico diferencial informal, onde descarta a possibilidade de distúrbios orgânicos que apresentem sintomatologia comum com a dificuldade apresentada pelo educando. O ideal, hoje, é que as escolas já contem com um gabinete psicopedagógico para que os profissionais em educação inclusiva possam proceder, logo que recebem a queixa dos professores ou pais ou mesmo dos próprios alunos, com o levantamento de dados do aluno para a elaboração do protocolo ou pauta da anamnese.
É através do historial do aluno que a escola conhecerá melhor desde os sintomas ou queixas iniciais do educando até o momento da observação psicopedagógica institucional, realizado com base nas lembranças do educando e nas avaliações de desempenho do aluno. Um outro procedimento é catamnese que consiste no registro da evolução de um educando desde que observado e diagnosticado com dificuldade de aprendizagem após ter feito exames psicopedagógicos.
Toda queixa ou relato de dificuldade do aluno deve ser considerada relevante para o atendimento educacional e para a tomada de providências pedagógicas. A queixa discente é, pois, aquela que, na opinião do educando, é a mais importante de todo o seu relato pedagógico e que terminou por levá-lo ao baixo rendimento escolar. Constitui um item em separado e importante da anamnese.
Folha da UVA – Hoje se fala muito em dislexia e outras dificuldades de aprendizagem, o sr poderia, de forma bem simples, explicar o que são realmente essas novas síndromes escolares?
Vicente Martins - A dislexia é um termo criado no início do século passado, precisamente datado de 1913 . No campo escolar, refere-se à perturbação na aprendizagem da leitura pela dificuldade no reconhecimento da correspondência entre os símbolos gráficos e os fonemas, bem como na transformação de signos escritos em signos verbais. Nos meus estudos, chamo este tipo dificuldade de dislexia pedagógica. Tem também a dislexia pode ser entendida como dificuldade para compreender a leitura, após lesão do sistema nervoso central, apresentada por pessoa que anteriormente sabia ler. Nesse caso, chamamos de dislexia adquirida.
Há, também, a disortografia que, no âmbito da psicolingüística, refere-se à dificuldade no aprendizado e domínio das regras ortográficas, associada à dislexia na ausência de qualquer deficiência intelectual.Muito próxima da dislexia, existe a disgrafia que no âmbito da patologia., o termo refere-se à perturbação da escrita por distúrbios neurológicos.
Além dessas dificuldades de aprendizagem, existem alunos que, durante o período escolar, podem apresentar a disartria, que se refere ao distúrbio da articulação da fala (dificuldade na produção de fonemas) que resulta de uma lesão cortical ou de uma lesão periférica (paralisia dos órgãos de fonação). Temos também a dislalia – aquela fala que lembra a do Cebolinha – que respeito à perturbação na articulação de palavras por lesão de algum dos órgãos fonadores.

Folha da UVA – Dificuldades de aprendizagem como dislexia, disgrafia e disortografia que o sr mencionou têm a mesma causa?

Vicente Martins – Descobrir as causas das dificuldades de aprendizagem é dos grandes desafios para os pesquisadores atuais do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos. Como um pesquisador na área de dislexia, tenho levantado, como hipótese etiológica ou de causa dessa síndrome, o déficit de memória. Sem memória não há aprendizagem de leitura, escrita ou ortografia. A escola, a rigor, não se deu conta que ensinar bem é favorecer à memória de longo prazo das crianças (MLP), para que armazenem informações e conhecimentos por um longo período da vida.
Assimilar bem os conteúdos escolares deve ser verdadeiramente a finalidade última da escola. Numa linguagem comum, ensinar para vida é ensinar a pescar e não se limitar a dar o peixe: é ensinar a aprender a aprender.
O significado de aprender deve ser portanto de uma assimilação ativa. Aprender de tal modo que, na última etapa da educação básica, no ensino médio, os jovens tenham desempenho eficiente ou satisfatório na hora de ler um livro ou de escrever um texto para concurso ou vestibular.

Sem uma Memória de Longo Prazo é difícil o acesso ao léxico na hora de redigir textos ou fazer uma leitura compreensiva. Ler para aprender começa por uma leitura compreensiva de uma obra literária, como a dos clássicos da literatura brasileira (Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Rachel de Queiroz entre outros) e não se limitar a responder as questões da “ficha de leitura”, em geral, anexa ao livro. Ler, pois, é inferir idéias é construir, como patrimônio próprio, cosmovisão do meio social, da vida, das relações pessoais, das formas de poder, da civilização, e mais, atribuir sentidos, significados plurais, ao que leu, de modo a aplicar informações e reconhecimentos retidos na vida acadêmica e pessoal.

Folha da UVA – E no caso específico da dislexia, o sr. poderia indicar suas causas ou características mais marcantes?

Vicente Martins - As causas da síndrome disléxica são de diversas ordens e dependem do enfoque ou análise do investigador. Atualmente tendemos a nos apoiar em aportes da análise lingüística e cognitiva ou simplesmente da Psicolingüística. Muitas das causas da dislexia resultam de estudos comparativos entre disléxicos e bons leitores. Podemos indicar as seguintes: a) Hipótese de déficit perceptivo, b) Hipótese de déficit fonológico e c) Hipótese de déficit na memória. Atualmente os investigadores na área de Psicolingüística aplicada à educação escolar, apresentam a hipótese de déficit fonológico como a que justificaria, por exemplo, o aparecimento de disléxicos com confusão espacial e articulatória.
Desse modo, são considerados sintomas da dislexia relativos à leitura e escrita os seguintes erros: a) erros por confusões na proximidade especial: a) confusão de letras simétricas, b) confusão por rotação e c) inversão de sílabas; b) Confusões por proximidade articulatória e seqüelas de distúrbios de fala: a) confusões por proximidade articulatória, b) omissões de grefemas e c) omissões de sílabas.
As características lingüísticas, envolvendo as habilidades de leitura e escrita, mais marcantes das crianças disléxicas, são: a) a acumulação e persistência de seus erros de soletração ao ler e de ortografia ao escrever; b) confusão entre letras, sílabas ou palavras com diferenças sutis de grafia: a-o; c-o; e-c; f-t; h-n; i-j; m-n; v-u etc; c) confusão entre letras, sílabas ou palavras com grafia similar, mas com diferente orientação no espaço: b-d; b-p; d-b; d-p; d-q; n-u; w-m; a-e; d) Confusão entre letras que possuem um ponto de articulação comum, e, cujos sons são acusticamente próximos: d-t; j-x;c-g;m-b-p; v-f ; e) inversões parciais ou totais de silabas ou palavras: me-em; sol-los; som-mos; sal-las; pal-pla
Outras perturbações da aprendizagem podem acompanhar os disléxicos: a) Alterações na memória; b) Alterações na memória de séries e seqüências; c) Orientação direita-esquerda; d) Linguagem escrita; e) Dificuldades em matemática; f) Confusão com relação às tarefas escolares; g) Pobreza de vocabulário e h) Escassez de conhecimentos prévios (memória de longo prazo)
Autor: Vicente Martins


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