NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A ANÁLISE DO DISCURSO



A Análise do Discurso é um campo de estudo fundado na França, em fins dos anos 1960, cujo objeto, como o próprio nome indica, é o discurso. Vários fatores influenciaram o seu surgimento, os principais podem ser encontrados nas condições sócio-históricas da época e nos intensos debates filosóficos em torno da epistemologia. A Europa vivia as inseguranças da Guerra Fria, já as ciências humanas, especificamente a lingüística, conheciam o período áureo do estruturalismo. É importante sabermos um pouco mais a respeito do solo em que germinou essa disciplina.

1.1 Conjuntura Histórica: o pós-guerra.

Acabada a Segunda Guerra Mundial, a Europa é deslocada do centro do poder internacional. Foi o preço pago por não ter evitado o expansionismo nazista por meios próprios. “Na primavera de 1940, a Alemanha levou de roldão a Noruega, Dinamarca, Países Baixos, Bélgica e França com uma ridícula facilidade” (HOBSBAWM, 1999, p.46). Segundo RÉMOND, a derrota da França “entregara aos alemães o continente inteiro” (p.144).

O desfecho da Guerra dependeu exclusivamente de dois países não-europeus: os Estados Unidos e a União Soviética. Por conta disso, foi rasgada ao meio por uma “cortina de ferro”, para utilizar as palavras do ex-presidente da Inglaterra Churchill proferidas em março de 1946. O leste ficou sob a influência soviética e o oeste, sob a dos norte-americanos.

Às vésperas de 1950, a Europa ainda era incapaz de “... assegurar a própria defesa, dirigir o próprio destino, reerguer a própria economia” (RÉMOND, p.144).
Para sair da crise, teve que se dobrar a ajuda externa. De um lado, os EUA com o Plano Marshall (1947) depositam milhões de dólares nas contas dos países do oeste; de outro, a União Soviética, através do Conselho de Assistência Mútua (1949), faz o mesmo, só que em proporções menores, às economias planificadas.

A Nova Ordem Mundial, marcada pela disputa geopolítica entre os representantes de dois modelos econômicos antagônicos, gerou uma corrida armamentista sem precedentes. O receio em perder áreas de influência era concomitante ao desejo de conquistar novos territórios. O medo de uma Terceira Guerra era constante.

Os EUA espalharam centenas de tropas militares pela Europa Ocidental, a fim de protegê-los da expansão comunista. Era a Doutrina Truman (1947) que estava sendo posta em prática através do Tratado do Atlântico Norte (1949). A União Soviética seguiu o exemplo ianque em relação ao leste, após assinar o Pacto de Varsóvia (1955).

Para aumentar ainda mais a ferida narcisista, a maior parte das colônias européias da África e da Ásia conquistam a independência. A Europa adentra os anos 1960, despojada das pompas de outrora. “As grandes potências de 1914, todas européias, haviam desaparecido” (HOBSBAWM, 1999, p.23).

Mas, o mundo capitalista caminhava para o que HOBSBAWM chamou de anos dourados. “Os impressionantes problemas sociais e econômicos do capitalismo na Era da Catástrofe aparentemente sumiram” (1999, p. 59). Podemos dizer que a prosperidade da Europa Ocidental foi conseqüência dos investimentos norte-americanos realizados na década anterior, das inovações tecnológicas e do aumento populacional, que significava uma ampliação tanto do mercado consumidor, quanto da capacidade produtiva.

Já o mundo comunista vinha sofrendo uma série de instabilidades políticas desde a morte de Stalin ocorrida em 1953. Se não vejamos: em 1956, Krutchev denunciou os crimes da Ditadura de stalinista em pleno XX Congresso do Partido Comunista Soviético; no mesmo ano, a Hungria tentou implantar um processo de abertura econômica e foi esmagada pelo exército vermelho; em 1960, a China de Mao Tsé-Tung rompeu relações com a União Soviética; e em 1968, a Tchecoslováquia tentou se livrar das intervenções soviéticas, implantando um governo democrático-liberal.
Os anos de 1960 foram marcados pelo que se convencionou chamar de “coexistência pacífica” ou “desgelo”.

A fase “quente” da Guerra Fria havia passado. As potências tomaram consciência da importância de se evitar uma Terceira Guerra. A morte de Stalin (1953), o fim da Guerra da Coréia (1953), o acordo que limitava as experiências nucleares (1963) e o crescimento do movimento pacifista por todo o mundo assinalaram o fim da fase aguda da Guerra Fria.

A superioridade econômica do mundo capitalista ficou evidente nesse período. O Estado de Bem-Estar investiu muito na seguridade social, o padrão de vida aumentou significativamente para uma parcela da população.

O otimismo foi tão notável, comparado aos 31 anos da Era das Catástrofes (1914-1945) que, em 1964, o historiador Barraclough defendeu que “no final de 1960, pode razoavelmente afirmar-se que o longo período de transição estava concluído; o novo mundo entrava em órbita” (1976, p. 29). Em outra passagem diz “a história contemporânea é a história da geração que atualmente vive” (1976, p. 15).

Olhando para trás, da vantajosa posição presente, podemos verificar que os anos decorridos entre 1890, quando Bismarck se retirou da cena política, e 1961, quando Kennedy tomou posse como Presidente dos Estados Unidos, constituíram um amplo divisor de águas entre duas épocas (1976, p. 12, grifo nosso).

A prosperidade da Europa Ocidental não sobreveio sem o aumento da desigualdade social, da exploração de classes e do conseqüente afloramento dos movimentos sociais das minorias (negros, mulheres, homossexuais etc). O capitalismo não tem vida longa sem gerar os seus antagonismos. A solidariedade entre o capital e o trabalho foi uma farsa para suplantar o mundo soviético. “Sem se apropriar do trabalho alheio, o capital nem existiria” (CAFIERO, 1990, p. 72).

Por isso, os anos 1960 também ficaram conhecidos para uns como a década da contestação e para outros como os anos rebeldes. As contradições daqueles anos foram sentidas por todos, desde os jovens até os intelectuais. Os livros de Karl Marx foram popularizados. As mazelas do capitalismo eram denunciadas, embora se vivesse na Era do Ouro. Os Beatles, os Rolling Stones e Che Guevara tornaram-se ídolos mundiais.
Os jovens passaram a culpar seus pais pelo mundo em que viviam.

Passaram a desconfiar de todas os que tinham mais de 30 anos. Os valores foram questionados e os tabus eram todos quebrados. Os negros se insurgiram contra o preconceito e as mulheres lutaram por emancipação, quase todos eram contra a Guerra do Vietnã (1960-1975). Capitalismo e felicidade pareciam não combinar. Desobedecer passou a ser uma bandeira de luta. O grito de guerra preferido foi “É proibido, proibir!”.

O estilo informal foi uma forma conveniente de rejeitar os valores das gerações paternas ou, mais precisamente, uma linguagem em que os jovens podiam buscar meios de lidar com um mundo para o qual as regras e valores dos mais velhos não mais pareciam relevantes (HOBSBAWM, 1999, p.325).

O período faustoso da década de 1960, concomitante com a conscientização das minorias, apontava para os eminentes acontecimentos da década posterior. No início da década 1970, aconteceu o que Hobsbawm chamou de “o Desmoronamento”.

A história dos vinte anos após 1973 é a de um mundo que perdeu suas referências e resvalou para a instabilidade e crise. E, no entanto, até a década de 1980 não estava claro como as fundações da Era de Ouro haviam desmoronado irrecuperavelmente. A natureza global da crise não foi reconhecida e muito menos admitida nas regiões não comunistas desenvolvidas, até depois que uma das partes do mundo – a URSS e a Europa Oriental do socialismo real – desabou inteiramente (1999, p. 393).


A França não estava alheia a esse turbilhão de acontecimentos, pelo contrário, na Europa Ocidental, era um dos seus centros motrizes. Mais do que qualquer país europeu, teve seu orgulho ferido pelos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial. A suntuosidade napoleônica se desmanchou no ‘ar’ quando o exército nazista desfilou triunfante pelas avenidas de Paris em junho de 1940.
Hitler fez questão de vingar a situação vexatória por que passou a Alemanha em razão das conseqüências da assinatura do Tratado de Versalhes, em Paris (1919), que colocava fim a Primeira Guerra.

Hitler participou hoje (22 de junho de 1940), no bosque de Compiègne, da assinatura do armistício com a França, que admite assim a derrota. O acordo foi selado no mesmo vagão de trem em que a Alemanha reconheceu a vitória da entende, há 22 anos (BRENER, 1998, 152).


O armistício assinado foi uma vergonha. A França foi dividida. Dois terços do território foram entregues aos nazistas, a outra parte, ficou sob a regência de um governo colaboracionista. Centenas de oficiais de guerra e soldados foram presos e mantidos em cativeiro. Aviões, tanques e armas foram colocados à disposição dos alemães para serem usados contra os aliados.
No início do pós-guerra, a miséria se alastrou ao ponto de ser o principal marketing dos socialistas. Os EUA injetaram milhões na economia francesa, mas, mesmo assim, dois dos três principais partidos eram de esquerda: o Partido Comunista Francês (PCF) e o Partido Socialista (PS).
O general Charles de Gaulle governou a França por toda a década (1958-69). De Gaulle era um dos poucos oficiais superiores que não apoiaram o armistício assinado com a Alemanha em 1940. Por conta disso, foi condenado à pena de morte.

Refugiado em Londres, organizou o movimento de resistência. No entanto, como todo militar da época, ele também era conservador e autoritário. Segundo Hobsbawm tinha uma “formação reacionária católica” (1999, p. 146). A instabilidade política foi uma marca de seu governo.

O populismo do general era questionado pelos partidos de esquerda. Pregou o patriotismo e alimentou a idéia de que a França ainda era a senhora da Europa. Em 1960, chegou a fazer experimentos com a bomba atômica e, em 1968, fabricou a bomba de hidrogênio. O não-alinhamento aos EUA acabou por levar a França a sair do Comando Unificado da OTAN em 1966.

A França do pós-guerra foi reconstruída pelo general De Gaulle com base no mito de que, em essência, a França eterna jamais aceitara a derrota. Como ele próprio declarou: ‘ A Resistência foi um blefe que deu certo’ (Gillois, 1973, p. 164). É um ato político o fato de os únicos combatentes da Segunda Guerra Mundial comemorados em memoriais de guerra francesa hoje serem combatentes da Resistência que se fizeram parte das forças de De Gaulle. Contudo, a França não é de modo algum o único caso de um Estado construído sobre a mística da Resistência (HOBSBAWM, 1999, 165).


No dia 22 de maio de 1968, 10 milhões de trabalhadores entram em greve. Foi a maior greve já realizada na França até então e a maior de toda a Europa. “Sejamos realistas: eximamos o impossível!” gritavam. O impacto repercutiu mundialmente. A derrocada do general De Gaulle estava decretada. “A Extraordinária irrupção de maio de 1968, em Paris, epicentro de um levante estudantil continental... encerrou a era do general De Gaulle na França” (Hobsbawm, 1999, p. 293).

1.2 Conjuntura intelectual no campo lingüístico: os estruturalismos


Os intelectuais da época não ficaram indiferentes ao mundo que os circundava. Na França, poderiam ser encontrados os mais brilhantes pensadores do século XX. Paris mais parecia a capital intelectual da Europa. Estavam em pleno ativismo político figuras como Sartre, Althusser, Foucault, Deleuze, Pêcheux, Lacan, Lévi-Strauss, Barthes, Derrida, Bourdieu, Todorov, Benveniste e Castoriadis, para não citar outros. Debatiam sobre todos os assuntos, principalmente os que gravitavam em torno do estruturalismo e do marxismo. “Duas grades de leitura sem as quais é impossível entender os caminhos percorridos pela análise do discurso francesa” (GREGOLIN, 2004, p. 15).

De todos os países europeus, a França foi aquele em que o estruturalismo teve maior ressonância, um fenômeno que culminou no final dos anos 1960, num momento em que vários movimentos de contestação política chegaram a colocar em crise uma série de valores estabelecidos, naquele país (LLARI, p. 72. In: MUSSALIM, 2001).

As duas guerras mundiais fizeram ruir os valores e tradições que apoiavam o mundo moderno. As teses iluministas, aos poucos, foram deixadas de lado. A razão humana havia produzido uma era de catástrofes. O progresso tecnológico serviu para o extermínio milhares de pessoas e devastar a natureza. O otimismo das Luzes foi substituído pelo medo e pela insegurança do pós-guerra. Como Hobsbawm explica, “não era a crise de uma forma de organizar sociedades, mas de todas as formas” (HOBSBAWM, 1999, p. 21). Tudo que era sólido parecia “se desmanchava no ar” (BERMAN, 1993).

Foi uma crise das crenças e supostos sobre os quais se apoiava a sociedade moderna desde que os Modernos ganharam sua famosa batalha contra os Antigos, no início do século XVIII: uma crise das teorias racionalistas e humanistas abraçadas tanto pelo capitalismo liberal como pelo comunismo... (Hobsbawm, 1999, p. 20).

Naqueles anos, ficou evidente a necessidade de se fazer rupturas com dezenas de conceitos, até então, inquestionáveis. “O movimento de maio de 68 e as novas interrogações que surgiram de súbito no âmbito das ciências humanas foram decisivos para subverter o paradigma então reinante” (FERREIRA, p. 14. In: INDURSKY, 2005). No final dos anos 1960, começam a aparecer as primeiras fissuras na hegemonia do estruturalismo.

O estruturalismo foi marcado por um retorno aos trabalhos de Saussure , em especial ao Curso de Lingüística Geral (1916). Influenciado pela concepção de ciência do século XIX, Saussure definiu a língua como o objeto da lingüística. Assim, fundou a lingüística moderna operando uma “ruptura com a lingüística comparatista de sua época, propondo uma abordagem não histórica, descritiva e sistemática (dir-se-á. Mais tarde, ‘estrutural’)”. (PAVEAU, 2006, p. 63).

O ideal de cientificidade requeria de qualquer disciplina uma primorosa delimitação do objeto, a ponto de evidenciar suas leis de invariância. Saussure precisou encontrar na heteroclicidade da linguagem, algo sistêmico e homogêneo. O famoso “corte saussuriano” veio solucionar esse impasse. A oposição langue e parole constituiu a primeira “bifurcação” de seu construto teórico.

Essa é a primeira bifurcação que se encontra quando se procura estabelecer a teoria da linguagem. Cumpre escolher entre dois caminhos impossíveis de trilhar ao mesmo tempo; devem ser seguidos separadamente. Pode-se, a rigor, conservar o nome de Lingüística para cada uma dessas duas disciplinas e falar de uma Lingüística da fala. Será, porém, necessário, não confundi-la com a lingüística propriamente dita, aquela cujo objeto é a língua. Unicamente desta última cuidaremos (SAUSSURE, 1995, p. 28) [grifo nosso].

A partir de então, a fala ficou marginalizada nos estudos lingüísticos considerados científicos. E assim ficou durante os anos em que esteve oprimida pela insígnia de “abstrata”, “acessória” “assistemática” e “acidental”. Segundo Saussure:

O estudo da linguagem comporta, portanto, duas partes: um, essencial, tem por objeto a língua, que é social em sua essência e independente do indivíduo; esse estudo é unicamente psíquico; outra, secundária, tem por objeto a parte individual da linguagem, vale dizer, a fala, inclusive à fonação e é psicofísica (1995, p. 27).

Saussure encontrou, na língua, o objeto capaz de superar a heterogeneidade da linguagem. “A língua é um sistema”, dizia. O conceito de sistema se torna fundamental, pois é justamente esse conceito que os estruturalistas retomam anos mais tarde. Não há, no entanto, “no CLG um capítulo ou um parágrafo especificamente consagrado à noção de sistema” (PAVEAU, 2005, p. 76).

Os estruturalistas consideram a língua como um sistema de relações ou mais precisamente como um conjunto de sistemas ligados uns aos outros, cujos elementos (fonemas, morfemas, palavras, etc.) não têm nenhum valor independentemente das relações de equivalência e de oposição que os ligam (Disponível em Acesso em 05 de janeiro de 2007).


Apesar de não ter se preocupado em definir o significado de sistema, Saussure deixou algumas pistas no decorrer do Curso de Lingüística Geral. “A língua é um sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica” (1916, p. 102).

Como afirma Paveau (2006, p. 89), “o termo sistema (do grego sustema) designa uma reunião, e, desde o século XVII, um conjunto que constitui um todo orgânico. É aproximadamente nesse sentido que Saussure utiliza o termo no CLG para dar uma primeira caracterização da língua (sistema de signos)”. Referindo-se a essa definição, explica que “ela não diz nada sobre a maneira pela qual é organizado o todo orgânico que constitui um sistema dado” (Idem, p. 89).
Um bom exemplo é dado pelo próprio Saussure: o xadrez. Nesse jogo, cada peça obedece a regras e possui uma função específica, de tal modo que, ao mexer em uma delas, todas sofrem influências e vice-versa. Não há peça isolada uma da outra, todas estão em relações recíprocas.

No conceito de sistema não cabe a idéia de fatores externos. O sistema é fechado em si mesmo. Essa característica é basilar para os que procuram encontrar uma lei universal que rege as peças do “xadrez” lingüístico. Essa idéia se encaixa perfeitamente no conceito de sincronia, outro conceito encontrado no CLG.
O genebrino diz que “a interferência do fator tempo é de molde a criar, para a lingüística, dificuldades particulares” (1916, p. 87), pois quando se analisa a língua em sua evolução, ela se torna variável.

Seria preciso, então, observar esse objeto alheio a qualquer movimento ou influência da história. “É sincrônico tudo quanto se relacione com o aspecto estático da nossa ciência; diacrônico tudo que diz respeito às evoluções” (1916, p. 96). Vejamos as duas bifurcações saussureanas.


Com o corte língua/fala e os conceitos de sistema e sincronia, Saussure elimina da lingüística científica a fonologia, o enunciado, o referente, o sujeito, a cultura e a história. Essas “exclusões” vão ser incluídas no debate lingüístico por volta dos anos 1950, por vários estudiosos, que vão ficar conhecidos como estruturalistas. “Embora reconhecendo o valor da revolução lingüística provocada por Saussure, logo se descobriram os limites dessa dicotomia pelas conseqüências advindas da exclusão da fala do campo dos estudos lingüísticos” (BRANDÃO, 1993, p. 9).

Para Lepargneur (1973, p. 4) o conceito clássico de estrutura é o seguinte: “um conjunto de elementos entre os quais existem relações, de forma que toda modificação de um elemento ou de uma relação acarreta a modificação dos outros elementos e relações”. Como se percebe, é um conceito muito próximo ao de sistema.

Há certa vulgata no uso freqüentemente indiferenciado dos termos sistema e estrutura. Entretanto, eles não recobrem necessariamente os mesmos dados, mesmo se eles são indissociavelmente ligados do ponto de vista teórico.

É fato que a afirmação do conceito de sistema remete freqüentemente àquele de estrutura, tanto que existe de um a outro uma dinâmica de mútua remissão. É preciso lembrar aqui que na teoria lingüística, a circulação do conceito de sistema precede o emprego do conceito de estrutura (PAVEAU, 2006, p. 89).

O método saussureano encontrou no antropólogo francês Lévi-Strauss o seu mais contundente divulgador. Foi a partir de então que o método originalmente lingüístico se estendeu para outras disciplinas, de modo que hoje, não dá mais para se falar de um único estruturalismo.

“Chamamos estruturalismos os esforços de aplicação (ou de elaboração) de métodos originalmente concebidos em lingüística, e que atingem hoje qualquer um dos campos das ciências humanas” (LEPARGNEUR, 1973, p. 4). Esse mesmo autor em outra passagem diz:

O estruturalismo lingüístico nasceu quando Ferdinand de Saussure pretendeu atingir leis gerais do funcionamento de uma língua. O estruturalismo etnológico nasceu quando Claude Lévi-Strauss pretendeu atingir as leis gerais do funcionamento de certas estruturas culturais, especificamente aquelas que regem os sistemas de parentesco ou as que regem a produção dos mitos em culturas arcaicas (1973, p. 6).

À pergunta: o que é estruturalismo? Barthes responde “Não é uma escola nem mesmo um movimento (pelo menos por enquanto), pois a maior parte dos autores que se associam geralmente a essa palavra não se sentem de modo algum ligados entre eles por uma solidariedade de doutrina ou de combate”. (1970, p. 49)
Para Barthes (1970, p. 51), o objetivo da atividade estruturalista: “é reconstituir um objeto, de modo a manifestar nessa reconstituição as regras de funcionamento (as funções) desse objeto”. O estruturalista toma a estrutura pelo real. Recompondo o objeto para fazer aparecer suas funções, pensa, na verdade, estar encontrando as funções do real a que a estrutura pertence. Já para Lepargneur (1973, p. 5), o trabalho do estruturalista consiste em “descobrir, por trás das aparências, além da organização aparente do objeto, estruturas inteligíveis que expliquem certo funcionamento, e isso num campo que se relaciona com a atividade humana”.

De acordo com Gregolin (2004, p. 21), o estruturalismo chega à França em conseqüência do encontro de Roman Jakobson com Lévi-Strauss nos EUA. “A partir deles, deu-se a chegada das idéias estruturalistas na França, no início dos anos 1950”. Para contextualizar essa recepção francesa do estruturalismo no campo da lingüística, retomemos, de forma breve, a trajetória das duas mais influentes teorias: os funcionalistas e os formalistas.
Os funcionalistas podem ser divididos em três linhas de estudos: a Escola de Praga, a Escola de Copenhague e a liderada por Martinet.

A Escola de Praga foi fundada em outubro de 1926, na antiga Tchecoslováquia, pelo lingüista Mathesius. O diálogo com o modelo de funcionamento lingüístico elaborado por Mathesius foi o laço que uniu os primeiros membros de Praga. “Por influência de Mathesius, lingüistas de Praga, desenvolveram uma concepção de comunicação incomparavelmente mais rica que a de Saussure” (LLARI, p. 69. In: MUSSALIN, 2001, vol.3).

O que hoje é designado em geral como Escola de Praga compreende um grupo bastante amplo de pesquisadores, sobretudo europeus, que, embora possam não ter sido membros diretos do Círculo Lingüístico de Praga, se inspiraram no trabalho de Mathesius, Trubetzkoy, Jakobson e outros estudiosos (WEEDWOOD, 2002, p. 137).

O funcionalismo é “um movimento particular dentro do estruturalismo” (LYONS, 1981, p. 166) , que defende a hipótese de “que a estruturas fonológica, gramaticais e semânticas das línguas são determinadas pelas funções que exercem nas sociedades em que operam” (LYONS, 1981, p. 166).
Mathesius escolhe a sincronia e a relação da lingüística com o social, mais precisamente com a arte.

É dele a famosa afirmação: “a forma está subordinada à função”. Segundo Paveau, o Círculo de Praga foi um “verdadeiro cadinho inovador e crítico no campo científico europeu dos anos 20, matriz de uma nova maneira de pensar a linguagem” (2006:115).
E essa nova maneira de pensar a linguagem foi revelada no 1° Congresso Internacional de Lingüística de Haia, na Holanda, realizado em 1928 e ficou conhecida como as Teses de Praga. Ao todo foram nove teses sobre temas como: o funcionamento da língua, a literatura, fonética e o poético.

As principais teses são: a) a língua é um sistema funcional orientado para uma finalidade; b) divisão entre a fonética (fato físico) e a fonologia (sistema funcional); c) a natureza das funções lingüísticas determina a estrutura da língua; d) o estudo de uma língua exige que se considere a variedade das funções lingüísticas e seus modos de realização.

Os funcionalistas privilegiam as constantes transformações das formas da linguagem na sociedade. A forma é subordinada à função e a função é a tarefa atribuída a um elemento lingüístico estrutural que visa atingir um objetivo no quadro da comunicação humana. Jakobson criou a classificação mais utilizada das funções da linguagem, a saber: referencial, emotiva, conotativa, fática, metalingüística, poética.
No entanto, são as teses referentes à fonologia que deixam a Escola de Praga internacionalmente conhecida. Em 1930, na 1° Conferência Internacional de Fonologia, ocorrida em Praga, Trubetzkoy sistematiza-a como disciplina. Ele formula a diferença entre som e fonema.

Trubetzkoy dá ao fonema sua definição mais estável, que será retomada em toda a fonologia moderna. No CLG, Saussure define o fonema como a soma de impressões acústicas e articulatórias, da unidade entendida e da unidade falada é uma definição natural do fonema, isto é, que repousa sobre observações de ordem física e não funcional (PAVEAU, 2006, p. 127-128).

Como membro do Círculo de Praga, Trubetzkoy partilha a convicção de que, no estudo do sistema de uma língua, é preciso articular estreitamente as perspectivas sincrônicas e diacrônicas. Essa convicção é derivada do fato de que sua fonologia integra a dimensão histórica. Ele tira o fonema da ordem natural deixada por Saussure, e coloca-o no funcional.

O funcionalismo também foi desenvolvido pelos membros da Escola e Copenhague. O seu mais expressivo pensador foi Hjelmslev. Críticos da Escola de Praga, eles desenvolveram a teoria da glossemática, ou seja, o estudo e a classificação dos glossemas.

Segundo essa Escola, as mudanças lingüísticas não seriam conseqüências nem da necessidade das leis fonéticas, nem das causas sociais, mas da modificação das relações lógicas que regem a economia dos elementos de um mesmo sistema.

A língua não deveria ser apreendida como um conglomerado de fenômenos não-lingüísticos, porém como uma totalidade que se basta a si própria. Os signos são uma manifestação do sistema e os elementos implicados num sistema definem uma estrutura.

A glossemática foi a escola de lingüística estrutural que mais conseqüentemente procurou aplicar a tese saussureana de que as línguas se constituem como sistemas de oposições. Esta preocupação levou o próprio Hjelmslev a caracterizar exaustivamente, do ponto de vista lógico, as relações por meio das quais as línguas se estruturam, e resultou num tipo de descrição lingüística das línguas em que se dá atenção particular às relações entre as unidades, nos vários níveis de análise (LLARI, p. 70. In: MUSSALIN, 2001).

O signo constitui uma função com duas variáveis: o significado, redefinido como conteúdo; e o significante, redefinido como expressão. “Hjelmslev sofisticou um pouco mais a noção saussureana de signo com a noção de função, em um sentido próximo ao da matemática” (DUARTE, 2003, p. 27).

O lingüista André Martinet foi outro funcionalista europeu bastante influente na França. “Situa-se na linha direta do estruturalismo europeu elaborado por Saussure” (Paveau, p. 135). Sua perspectiva apóia-se numa reflexão constante sobre a diversidade das línguas. Defendeu uma lingüística objetiva. Exigiu, em primeiro lugar, a descrição correta da realidade dos fenômenos linguageiros. O princípio básico de sua teoria diz que a língua é um instrumento de comunicação duplamente articulado e de manifestação vocal.

A dupla articulação é uma característica da linguagem humana. Na primeira articulação, combinam-se unidades mínimas significativas em infinitas possibilidades. Na segunda articulação estão os fonemas, limitados em número, mas que formam o sistema.

Em toda língua natural existem dois níveis de oposição: aquele em que as unidades podem ser contrastadas de modo a fazer aparecer, simultaneamente, diferenças de forma e de sentido (esta é para Martinet, a primeira articulação, que corresponde muito aproximadamente às palavras), e aquele em que se podem pôr à mostra diferenças que apenas servem para distinguir unidades esta é a segunda articulação, cujas unidades são os trabalhos relativamente extenso de descrição sintática (LLARI, p. 72. In: MUSSALIN, 2001).

O aspecto funcional é defendido por achar que a pertinência comunicativa da língua é que melhor permite a compreensão da natureza e da dinâmica da linguagem. Será considerado como pertinente sob o ângulo comunicativo todo objeto que tem por função desencadear uma informação.

Em suma, o sistema fonológico se mantém graças a uma economia interna, baseada numa relação de custo e benefício, que é precisamente o que Martinet chamou de economia... Esse não era apenas um raciocínio tipicamente estruturalista, era uma descoberta que representava um passo enorme em relação à concepção de lingüística diacrônica exposta no Curso de Lingüística Geral (LLARI, p. 72. In: MUSSALIN, 2001).


Apesar da influência saussureana, os funcionalistas, de modo geral, rejeitam a homogeneidade do sistema lingüístico e a oposição sincronia/ diacronia. Segunda Paveau, o próprio termo funcionalismo “parece designar uma corrente em si, distinta ou separada do estruturalismo fundador oriundo dos trabalhos de Saussure” (2006:115).

Os funcionalistas norte-americanos também exerceram influência na Europa. Esse estruturalismo tem no centro de suas preocupações o funcionamento interno do sistema linguareiro e prioriza a forma. Almejaram descrever, exaustivamente, as línguas indígenas, abundantes no continente. Bloomfield e Harris são os principais representantes dessa teoria.

Diante das línguas a serem estudadas, os pesquisadores americanos desse período sentiram-se comprometidos em realizar uma tarefa eminentemente descritiva, que deveria, tanto quanto possível, evitar a interferência dos conhecimentos prévios do lingüista [...] Essa orientação correspondia à crença de que cada língua tem uma gramática própria (LLARI, p. 77, In: MUSSALIN, 2001, grifo nosso).

Como todos os estruturalistas, Bloomfield acreditou na possibilidade de se trabalhar de maneira neutra com a linguagem. Ele “adotou explicitamente uma abordagem behaviorista do estudo da língua, eliminando, em nome da objetividade científica, toda referência a categorias mentais ou conceituais” (WEEDWOOD, 2002, p. 131). Por isso, observou as formas da língua do exterior, sem levar em conta sua evolução histórica e a função que elas desempenham no sistema.

“O significado é simplesmente a relação entre um estímulo e uma reação verbal” (WEEDWOOD, 2002, p. 131).

Zellig Harris é outro importante lingüística norte americano. Principalmente por que foi um dos influenciadores de Michel Pêcheux, considerado por muitos como o fundador da Análise do Discurso. O objetivo da lingüística distribucional, segundo esse pensador, era mostrar que o sistema da língua funciona segundo regularidades demonstráveis (PAVEAU, 2006, 154).

Foi o primeiro a usar a expressão Análise do Discurso, quando em 1952, publica um artigo com esse título. Para Harris, o discurso é o lingüístico que ultrapassa os limites da sentença. Foi assim que esboçou uma análise transfrástica. É justamente isso que afirma Brandão (1993, p. 15):

Os anos 50 serão decisivos para a constituição de uma análise do discurso enquanto disciplina. De um lado, surge o trabalho de Harris (Discourse Analysis, 1952) que mostra a possibilidade de ultrapassar as análises confinadas meramente à frase, aos enunciados (chamados discursos)...

Queria generalizar um método que pudesse dar conta do funcionamento da linguagem a partir da observação de um corpus finito de enunciados naturais. Apesar de algumas mudanças, sua teoria lingüística ainda estava vinculada à imanência da língua, pois criou a ilusão da existência de uma verdade no texto a ser encontrada.

Noam Chomsky foi o mais célebre aluno de Harris. Apesar de no decorrer de sua carreira ter rompido com o mestre. A Gramática Gerativa (1957) espelhou-se como uma epidemia. “Veio a se tornar um divisor de águas na lingüística do século XX” (WEEDWOOD, 2002, p. 132). Nela, ele afirma que a lingüística descreve a estrutura das línguas. Essas estruturas explicam como são entendidas e interpretadas as orações em qualquer idioma.

Chomsky acredita que o processo é possível graças à gramática universal. Segundo ele, há regras gramaticais universais e específicas para cada língua. Tal modelo supõe o conhecimento inato e inconsciente possuído por qualquer pessoa para compreender as orações de seu idioma.

Assim, traçou uma distinção fundamental entre o conhecimento que uma pessoa tem das regras de uma língua e o uso efetivo desta língua em situações reais. Aquele conhecimento chamou de competência, e a este, desempenho. A lingüística, para ele, “deveria ocupar-se com o estudo da competência, e não restringir-se ao desempenho” (WEEDWOOD, 2002, p. 133).

Essa gramática se distanciou completamente do behaviorismo, do empirismo e das lingüísticas descritivas. Como diria Weedwood, “Chomsky mostrou que as análises sintáticas da frase praticadas até então eram inadequadas em diversos aspectos, sobretudo porque deixavam de levar em conta a diferença entre o nível superficial e o profundo da estrutura gramatical” (2002, p.132).

As concepções funcionais e formais da linguagem, bem como as propostas gerativas estão baseadas na hipótese da transparência da língua ou na imanência lingüística. A língua, segundo os funcionalistas, é capaz de transmitir fielmente a mensagem. Como se as condições de produção, circulação e recepção da mensagem não interferissem no sentido, e como se o próprio signo não fosse ideológico (BAKHTIN, 1928).

1.3 A fundação da Análise do Discurso
O estruturalismo foi reinante nas décadas de 1960, apesar das resistências do existencialismo e do marxismo. Na lingüística, havia uma aparente unidade em torno das teorias saussureanas. “Do funcionalismo de Martinet às teorias behavioristas da comunicação, o pensamento de Saussure se estende até o estruturalismo distribucional de Bloomfield” (PÊCHEUX, 1999, p.10).

O estruturalismo conferiu cientificidade aos estudos da linguagem. Mas à medida que a Era Ouro da qual Hobsbawm falava ia passando, o estruturalismo, conseqüentemente, entrava em crise. Se, nos anos 60, não se encontrava um lingüista que não devesse algo a Saussure, como bem falou Benveniste, nos anos 70, suas obras passaram a ser questionadas, e nos anos 80, houve um “largo consenso anti-saussuriano” (PÊCHEUX, 1999, p.13).

Michel Pêcheux (1999) diz que desde a publicação do Curso de Lingüística Geral (1919) até os anos 1950, as teorias lingüísticas giraram em torno de Saussure, ora filiando-se a ele, ora dela se distanciando. Essas “diásporas e reunificações” demonstram o quanto a recepção das obras do genebrino foram descontinuidades. O que, de um lado, já revela a polissemia inerente à linguagem.

A história das interpretações das idéias saussureanas acompanha a história das revoluções e das guerras do século XX. Trubetzkoy e Jakobson fugindo às perseguições migram de um círculo a outro. Trubetzkoy desaparece, Jakobson sobrevive e migra para os Estados Unidos e da América faz as idéias saussureanas chegarem à França. No pós-guerra dos anos 50, ocorreu uma aparente reunificação (GREGOLIN, 2005, p. 102).


As mudanças na conjuntura francesa no final dos anos 60 desordenaram o sistema de alianças que existia em torno da lingüística (PÊCHEUX, 1999). Os acontecimentos de maio de 1968 provocaram brechas no poderio das estruturas. “As estruturas não vão às ruas” diziam. A sublevação social repercutiu no campo epistemológico. Os intelectuais passaram a questionar os saberes até então estabelecidos.

Maio de 68 produziu uma exasperação da circulação dos discursos, sobre as ondas, sobre os muros e na rua. Mas, também, no silêncio das escrivaninhas universitárias. Era o tempo da multiplicação das releituras, das grandes manobras discursivas; os conceitos se entrechocavam: a luta de classe reinava na teoria. (COURTINE, 2006, p. 9)

As constantes releituras que se faziam das obras de Saussure provocaram movências epistemológicas tanto do objeto, como do método da lingüística. Tanto a sistematicidade da língua, quanto a assistematicidade da fala foram postos em discussão. A linguagem passou a ser vista como um ramo de estudo muito complexo para estar limitada ao sistema saussuriano. “Atrás da fachada visível do sistema, supomos a rica incerteza da desordem” (FOUCAULT, 2005, p. 85).

A fala, o sujeito, a ideologia, o social, a história, a semântica e outras exclusões operadas por Saussure são trazidas para as discussões lingüísticas. A partir de então, surgem quase concomitantemente, várias disciplinas que estilhaçarão a teoria da linguagem. Rompem com a sincronia e corte saussuriano, e propõem uma análise transfrástica e subjetiva da linguagem.

O reconhecimento da dualidade constitutiva da linguagem, isto é, do seu caráter ao mesmo tempo formal e atravessado por entradas subjetivas e sociais, provoca um deslocamento nos estudos lingüísticos até então batizados pela problemática colocada pela oposição língua/fala que impôs uma lingüística da língua.

Estudiosos passam a buscar uma compreensão do fenômeno da linguagem não mais centrado apenas na língua, sistema ideologicamente neutro, mas num nível situado fora desse pólo da dicotomia saussureana. E essa instância da linguagem é o discurso. Ela possibilitará operar a ligação necessária entre o nível propriamente lingüístico e o extralingüístico (BRANDÃO, 1993, p. 11-12).

O surgimento dessas disciplinas e as contundentes críticas que faziam ao estruturalismo provocam, neste, o desmoronamento de seu edifício teórico. Em meados dos anos 1980, “a lingüística perdeu progressivamente seus ares de ciência-piloto no campo das Ciências Humanas e Sociais” (PÊCHEUX, 1999, p. 13), de modo que “a maior parte das forças da Lingüística pensa neste momento contra Saussure” (PÊCHEUX, 1999, p.9). A Análise do Discurso contribui para esse trágico destino do estruturalismo.


A Análise do Discurso aparece no final dos anos 1960. Michel Pêcheux lança, em 1969, o livro Análise Automática do Discurso que, para a maioria dos estudiosos, representa a fundação dessa disciplina. “Pela primeira vez na história, a totalidade dos enunciados de uma sociedade, apreendida na multiplicidade de seus gêneros, é convocada a se tornar objeto de estudo” (CHARAUDEAU, 2004, p. 46).

Pêcheux coloca em cena o discurso como objeto de análise. Este elemento diferencia-se tanto da língua, quanto da fala. Não é a mesma coisa que transmissão de informação, nem é um simples ato do dizer. O discurso evoca uma exterioridade à linguagem – a ideológica e o social.

Inicialmente, podemos afirmar que discurso, tomado como objeto da Análise do Discurso, não é a língua, nem texto, nem a fala, mas que necessita de elementos lingüísticos para ter uma existência material. Com isso, dizemos que discurso implica uma exterioridade à língua, encontra-se no social e envolve questões de natureza não estritamente lingüística. Referimo-nos a aspectos sociais e ideológicos impregnados nas palavras quando elas são pronunciadas (FERNANDES, 2005, p. 20).

O discurso foi conceituado como a língua posta em funcionamento por sujeitos a que produzem sentidos numa dada sociedade. A complexidade desse fenômeno ia muito além do que a epistemologia tradicional previa. O discurso se inscreve na confluência de três regiões do conhecimento científico.

A Análise do Discurso nasce no entremeio de três disciplinas, de modo que, desde sua gestação, evoca a interdisciplinaridade. De acordo com Pêcheux, o nascimento da Análise do Discurso foi presidido por uma “tríplice aliança”. Uma teoria da História, para explicar os fenômenos das formações sociais; uma teoria da Lingüística, para explicar os processos de enunciação; e uma Teoria do Sujeito, para explicar a subjetividade e a relação do sujeito com o simbólico.

Como vimos, o discurso é um objeto de estudo que não tem fronteiras definidas. Ele é tridimensional - está na intersecção do lingüístico, do histórico e do ideológico. Por isso, foi inevitável para a Análise do Discurso romper com os postulados da lingüística clássica, já que, se define como o estudo lingüístico das condições de produção de um enunciado.

Paveau (2006, p. 202) definiu a Análise do Discurso como “a disciplina que estuda as produções verbais no interior de suas condições sociais de produção”. Já Orlandi (2005, p. 26), “A análise do discurso visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos”.
A Análise do Discurso não busca uma verdade nuclear do signo, pois é contra a imanência estruturalista. O que ela pretende é reconstruir as falas que criam uma vontade de verdade científica em certo momento histórico. Busca-se verificar as condições que permitiram o aparecimento do discurso. Explicar por que tomou esse sentido e não outro. Sempre relacionando o lingüístico com a história e com o ideológico.

A Análise do Discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentido enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos, seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade. (ORLANDI, 2005, p. 15-16).

A verdade é uma construção discursiva. A evidente naturalidade, na verdade, é uma miragem discursiva. Os políticos criam essa miragem e enganam centenas de pessoas. O alvo de todo grupo político é se tornar em força hegemônica.

A hegemonia é sustentada pelo discurso. Daí não é difícil chegar à conclusão de que “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, é o poder do qual nos queremos apoderar”, já diria Foucault (1999, p. 10). Tomar a palavra jamais representa um gesto ingênuo, pois sempre está ligado a relações de poder.
Portanto, a Análise do Discurso não foi projetada para ser apenas um simples campo de estudo, mas para ser um instrumento de luta política. Dentre outras funções, pretendia desmascarar as verdades construídas por políticos oportunistas, pois a verdade é “sempre uma reta em direção ao poder” (SILVA, in: SARGENTINI, 2004, p. 178).

Conhecer a produção, a circulação e a recepção dos discursos passou a ser uma atitude revolucionária, pois expunha as entranhas da relação do saber científico com as técnicas de poder. Daí a importância de relacionar um acontecimento discursivo às condições históricas, econômicas e políticas de seu aparecimento. Até por que, no bojo de sua formação, houve inúmeras micro-resistências que precisam ser resgatadas, pois também significam.


1.4 Fundamentos da Análise do Discurso

1.4.1 O Discurso e o Interdiscurso
O discurso é de natureza tridimensional. Sua produção acontece na história, por meio da linguagem, que é uma das instâncias por onde a ideologia se materializa. Por isso, os estudos lingüísticos tradicionais não conseguem abarcar a inteireza de sua complexidade.

Como o discurso encontra-se na exterioridade, no seio da vida social, o analista/estudioso necessita romper as estruturas lingüísticas para chegar a ele. É preciso sair do especificamente lingüístico, dirigir-se a outros espaços, para procurar descobrir, descortinar, o que está entre a língua e a fala (FERNANDES, 2005, p. 24).

Para a Análise do Discurso, o discurso é uma prática, uma ação do sujeito sobre o mundo. Por isso, sua aparição deve ser contextualizada como um acontecimento, pois funda uma interpretação e constrói uma vontade de verdade. Quando pronunciamos um discurso agimos sobre o mundo, marcamos uma posição - ora selecionando sentidos, ora excluindo-os no processo interlocutório.

Para Maingueneau, o discurso é “uma dispersão de textos cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas” (2005, p. 15). Já Foucault diz “Chamaremos discurso um conjunto de enunciados na medida em que se apóia na mesma formação discursiva... ele é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência” (2005).
Os sujeitos falam de um lugar social.

Este lugar no discurso é governado por regras anônimas que definem o que pode e deve ser dito. Somente nesse lugar constituinte o discurso vai ter um dado efeito de sentido. Se for pronunciado em outra situação que remeta a outras condições de produção, seu sentido, conseqüentemente, será outro.

Na medida em que retiramos de um discurso fragmentos e inserimos em outro discurso, fazemos uma transposição de suas condições de produção. Mudadas as condições de produção, a significação desses fragmentos ganha nova configuração semântica (BRANDÃO, 1993).

A unidade do discurso é um efeito de sentido, como Orlandi explica, “a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento” (1999, p. 15). Os discursos se movem em direção a outros. Nunca está só, sempre está atravessado por vozes que o antecederam e que mantêm com ele constante duelo, ora o legitimando, ora o confrontando.

A formação de um discurso está baseada nesse princípio constitutivo – o dialogismo. Os discursos vêm ao mundo povoado por outros discursos, com os quais dialogam. Esses discursos podem estar dispersos pelo tempo e pelo espaço, mas se unem por que são atravessadas por uma mesma regra de aparição: uma mesma escolha temática, mesmos conceitos, objetos, modalidades ou um acontecimento. Por isso que o discurso é uma unidade na dispersão.

O discurso é o caminho de uma contradição a outra: se dá lugar às que vemos, é que obedecem à que oculta. Analisar o discurso é fazer com que desapareçam e reapareçam as contradições, é mostrar o jogo que nele elas desempenham; é manifestar como ele pode exprimi-las, dar-lhes corpo, ou emprestar-lhes uma fugidia aparência (FOUCUALT, 2005, p. 171).

O discurso político pode ser um campo onde vários discursos semelhantes se alojam. Esses discursos se assemelham pelo objeto de suas análises, embora possam ter divergências quanto à interpretação do mesmo. Dentro desse campo, podemos fazer recortes menores, a fim de abstrairmos maiores semelhanças entre os discursos, como por exemplo, dentro do discurso político, podemos fazer uma opção pelo discurso anarquista.

Mas toda identidade do discurso são construções feitas através do próprio discurso, por isso, permeável e passível de movências de sentido. Quando um discurso é proferido, ele já nasce filiado a uma rede tecida por outros discursos com semelhantes escolhas e exclusões. A metáfora da rede é pertinente para explicar o discurso:

“Uma rede, e pensemos numa rede mais simples, como a de pesca, é composta de fios, de nós e de furos. Os fios que se encontram e se sustentam nos nós são tão relevantes para o processo de fazer sentido, como os furos, por onde a falta, a falha se deixam escolar. Se não houvesse furos, estaríamos confrontados com a completude do dizer, não havendo espaço para novos e outros sentidos se formarem.

A rede, como um sistema, é um todo organizado, mas não fechado, por que tem os furos, e não estável, por que os sentidos podem passar e chegar por essas brechas a cada momento. Diríamos que o discurso seria uma rede e como tal representaria o todo; só que esse todo comporta em si o não-todo, esse sistema abre lugar para o não sistêmico, o não representável” (FERREIRA. In INDURSKY, 2005, p. 20).

É por isso que o sentido do discurso não é dado a priori, pois a unidade é construída pela interação verbal, que é histórica e que mantém relação com uma ideologia. Somente nesse espaço o discurso consegue esconder sua polissemia.

Não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria (Foucault, 2005).


1.4.2 A linguagem e o Sentido

Na ótica da Análise do Discurso, a linguagem não é um simples instrumento de comunicação ou de transmissão de informação. Ela é mais do que isso, pois também serve para não comunicar. A linguagem é o lugar de conflitos e confrontos, pois ela só pode ser apanhada no processo de interação social. Não há nela um repouso confortante do sentido estabilizado.

O signo é uma arena privilegiada da luta de classe. Não se pode dizer o que quer quando se ocupa um determinado lugar social, pois este exige o emprego de certas representações e a exclusão de outras. Gregolin diz, “se temos hoje um sentido para dada coisa é porque houve um processo que o cimentou e organizou a exclusão do sem-sentido” (2001, p. 10).

O sentido está inscrito na Ordem do Discurso. Basta descobrir as regras de sua formação para tornar evidente a polifonia que fez dela um nó de significância. Mas a polissemia afronta os sentidos oficiais, àquele que é desejado e prestigiado, rasgando a máscara que esconde a heterogeneidade reinante. Por isso, todo sentido cristalizado deixa entrever um rastro da história do jogo de poder que o instaurou nas malhas da linguagem.

É por isso que o estudo da linguagem não pode estar apartado das condições sociais que a produziram, pois são essas condições que criam a evidência do sentido. Foucault (1999) esclarece que a produção do discurso é controlada, selecionada, organizada e distribuída, a fim de que seus “perigos e poderes” sejam conjurados.

A Análise do Discurso é contra a idéia de imanência do sentido. Não pode haver um núcleo de significância inerente à palavra, pois a linguagem da qual o signo lingüístico faz parte é polissêmica e heteróclita. O signo não pode estar alienado de outros signos que com ele interagem. A linguagem está na confluência entre a história e a ideologia.

Essa visão da linguagem como interação social, em que o Outro desempenha papel fundamental na constituição do significado, integra todo ato de enunciação individual num contexto mais amplo, revelando as relações intrínsecas entre o lingüístico e o social.

O percurso que o indivíduo faz da elaboração mental do conteúdo, a ser expresso à objetivação externa – a enunciação – desse conteúdo, é orientado socialmente, buscando adaptar-se ao contexto imediato do ato da fala e, sobretudo, a interlocutores concretos (BRANDÃO, 1993, p. 10).

A Análise do Discurso não toma o sentido em si mesmo, ou seja, em sua imanência. Não se acredita na existência de uma essência da palavra - um significado primeiro, original, imaculado e fixo capaz de ser localizado no interior do significante. Nesse sentido, podemos dizer que foi uma grande ilusão de Saussure achar que se poderia encontrar na palavra alguma pureza de sentido.

Como alçapões, os textos capturam e transformam a infinitude dos sentidos em uma momentânea completude.... Inserido na história e na memória, cada texto nasce de um permanente diálogo com outros textos; por isso, não havendo como encontrar a palavra fundadora, a origem, a fonte, os sujeitos só podem enxergar os sentidos no seu pleno vôo (GREGOLIN, 2001, 10).

A constituição do sentido é socialmente construída. A aparente monossemia de uma palavra ou enunciado é fruto de um processo de sedimentação ou cristalização que apaga ou silencia a disputa que houve para dicionarizá-la. “O sentido não existe em si mesmo. Ele é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo histórico no qual as palavras são produzidas” (PECHÊUX, apud BRANDÃO, 1993, p. 62).

A incompletude é constitutiva de qualquer signo - qualquer ato de nomeação é um ato falho, um mero efeito discursivo. O discurso diz muito mais do que seu enunciador pretendia. “A multiplicidade de sentido é inerente à linguagem” (ORLANDI, 1988, p. 20).
Por isso, o sentido é alvo do exercício do poder, principalmente em sociedades cujos governos são autoritários.

Nos discursos oficiais, o sentido é atravessado por paráfrases, o mesmo é dito de várias formas para garantir que a monossemia se naturalize.

A Análise do Discurso mostra a relação que existe entre a produção do saber que naturaliza o sentido, com o poder que estabelece as regras da formação do referido saber. Ou seja, revela toda a trama feita no transcurso da história para que o sentido pudesse ganhar uma forma monossêmica, um status de natural.


De forma resumida, podemos ver a concepção de sentido para a Análise do Discurso no esquema abaixo:


1.4.3 O sujeito do discurso e a subjetivação

O sujeito da Análise do Discurso não é o cartesiano dos tempos áureos do iluminismo. Descartes (1596-1650) projetou um homem dono de si, senhor de seu próprio destino, consciente de suas ações e desejos, capaz de conhecer a verdade e alcançar a felicidade através da razão.

O sujeito da Análise do Discurso não é o sujeito das Ciências Exatas, que se diz capaz de explicar o objeto através de um conhecimento imparcial. Um sujeito que está no exterior da realidade pesquisada e que observa o fenômeno com a distância suficiente para assumir um comportamento neutro diante do fato.

O sujeito da Análise do Discurso também não é o da Lingüística Clássica, que o concebe ora como idealizado, ora como mero falante. O sujeito idealizado baseado na crença de que todos os falantes de uma mesma comunidade falam a mesma língua. O sujeito falante é o empírico, o individualizado, que “tem a capacidade para aquisição da língua e a utiliza em conformidade com o contexto sociocultural no qual tem existência” (FERNANDES, 2005, p. 35).

Muito menos é o sujeito da Gramática Normativa que o classifica em simples, composto, indeterminado, oculto e inexiste. O sujeito do discurso não pode estar reduzido aos elementos gramaticais, pois ele é historicamente determinado.

Na Análise do Discurso, para compreendermos a noção de sujeito, devemos considerar, logo de início, que não se trata de indivíduos compreendidos como seres que têm uma existência particular no mundo; isto é, sujeito, na perspectiva em discussão, não é um ser humano individualizado... um sujeito discursivo deve ser considerado sempre como um ser social, apreendido em um espaço coletivo (FERNANDES, 2005, p. 33).

Para a Análise do Discurso, o sujeito do discurso é histórico, social e descentrado. Descentrado, pois é cindido pela ideologia e pelo inconsciente. Histórico, por que não está alienado do mundo que o cerca. Social, por que não é o indivíduo, mas àquele apreendido num espaço coletivo. “O sujeito de linguagem é descentrado, pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam” (ORLANDI, 2005, p. 20).

A Análise do Discurso defende uma teoria não-subjetiva do sujeito. Como explica Fernandes, “a constituição do sujeito discursivo é marcada por uma heterogeneidade decorrente de sua interação social em diferentes segmentos da sociedade” (2005, p. 41). Isso implica três coisas: o sujeito não ocupa uma posição central na formação do discurso; ele não é fonte do que diz; muito menos tem uma identidade fixa e estável.

Na perspectiva da Análise do Discurso, a noção de sujeito deixa de ser uma noção idealista, imanente; o sujeito da linguagem não é o sujeito em si, mas tal como existe socialmente, interpelado pela ideologia. Dessa forma, o sujeito não é a origem, a fonte absoluta do sentido, por que na sua fala outras falas se dizem. (BRANDÃO, 1993, p. 92).

O que define de fato o sujeito é o lugar de onde fala. Foucault diz que “não importa quem fala, mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar” (2005, p. 139). Esse lugar é um espaço de representação social (ex: médico, pai, professor, motorista etc.), que é uma unidade apenas abstratamente, pois, na prática, é atravessada pela dispersão.

A unidade é uma criação ideologia, é uma coação da ordem do discurso. Por isso, podemos dizer que o sujeito é um acontecimento simbólico. “Se não sofrer os efeitos do simbólico, ou seja, se ele não se submeter à língua e à história, ele não se constitui, ele não fala, ele não produz sentidos” (ORLANDI, 2005, p. 49).

O dolo da unidade pode ser desmascarado pela polifonia inerente a todo sujeito. O sujeito é constituído por vários “eus”. Não há centro em seu ser, pois o seu interior está saturado por várias vozes, de modo que, quando fala, o seu dizer não mais lhe pertence: “Ele é polifônico, uma vez que é portador de várias vozes enunciativas. Ele é dividido, pois carrega consigo vários tipos de saberes, dos quais uns são conscientes, outros são não-conscientes, outros ainda inconscientes” (CHARAUDEAU, 2004, p. 458).

O sujeito pode ocupar várias posições no texto. Um único indivíduo pode assumir o papel de diferentes sujeitos. O sujeito é caracterizado pela incompletude. Mas essa marca vai se apagando de acordo com a função enunciativa que o sujeito assume. Hierarquicamente esse apagamento acontece da seguinte maneira: locutor enunciador autor.

O sujeito é um eu pluralizado, pois se constitui na e pela interação verbal. “É múltiplo porque atravessa e é atravessado por vários discursos, por que não se relaciona mecanicamente com a ordem social da qual faz parte, por que representa vários papéis, etc.” (ORLANDI, 1988b, p. 11).

Não existe o sujeito sem o discurso, pois é este quem cria um espaço representacional para aquele.

Talvez a grande contradição do sujeito seja o fato dele produzir o discurso e ao mesmo tempo ser produzido por ele. “O sujeito tem acesso a si a partir de saberes que são sustentados por técnicas” (SARGENTINI, 2004, p. 93). O sujeito é inventado pelo discurso através do processo de subjetivação. E Miriani nos alerta “... falar de subjetividade é falar de algo que é puro movimento, apreensível apenas num só-depois...” (2006, p. 8).

O sujeito não aparece individualizado naturalmente. É preciso que o poder disciplinarize-o e molde o seu comportamento conforme a ordem desejada. O sujeito se relaciona consigo mesmo através do discurso, discurso esse que não lhe pertence completamente, mas que é devassado pelo outro.

É o olhar de um outro que permite a constituição de uma imagem unitária do eu.
O eu só tem sentido quando o outro lhe atravessa. Não existe subjetividade sem a intersubjetividade. Não existe uma alteridade que esteja fora do eu, os dois não estão separados por uma fronteira bem definida, pelo contrário, ambos são um mosaico de vozes, que formam um saber sobre si e sobre o outro recalcado pelos jogos de poder.

O discurso não é fruto de um sujeito que pensa e sabe o que quer. É o discurso que determina o que o sujeito deve falar, é ele que estipula as modalidades enunciativas. Logo, o sujeito não preexiste ao discurso, ele é uma construção no discurso, sendo este um feixe de relações que irá determinar o que dizer quando e de que modo. (NAVARRO-BARBOSA, in: SARGENTINI, 2004, p. 113).


Somos acostumados a ligar um indivíduo a uma identidade, a nomear para familiarizar, generalizar para domesticar. Sem darmos conta, somos conseqüência da atuação de poderes múltiplos (família, escola, patronato etc.) que agem sobre nossas vidas para forjar representações de subjetividades e impor formas de individualidades.

Foi o que Foucault chamou de Técnicas de Si, ou seja, procedimentos que fixam, mantêm e transformam a identidade, em função de determinados fins.

Mas todo processo de subjetivação é falho, é lacunar, conseqüentemente, abre brechas para resistências. Pois não existem protótipos humanos biologicamente determinados a serem iguais uns aos outros. A subjetivação é instrumentalizada pela linguagem que, como já vimos, é opaca, não consegue nomear nada, sem que haja falha.

A identidade do sujeito é um efeito do poder. “A identidade, assim como o sujeito, não é fixa, ela está sempre em produção, encontra-se em um processo ininterrupto de construção e é caracterizada por mutações” (FERNANDES, 2005, p. 43).

Impossível é moldar uma forma que defina o sujeito sem essa relação que trava com o outro. Fernandes afirma que “compreender o sujeito discursivo requer compreender quais são as vozes sociais que se fazem presente em sua voz” (2005, p. 35).

O poder é quem administra os saberes sobre o indivíduo de modo a traçar-lhes um perfil ideal e condicioná-los a serem passivos politicamente e ativos economicamente. A formação de um estilo de vida igual para todos os indivíduos de uma comunidade é uma tática para melhor controlá-los, de modo a fazê-los responder de forma previsível aos comandos emanados do poder. É isso que a Análise do Discurso chama de processo de subjetivação - a verdade que o poder cria sobre o sujeito para regulá-lo.


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Autor: eduardo de araújo carneiro


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