Transferências tributárias e a Lei Robin Hood



TRANSFERÊNCIAS TRIBUTÁRIAS E A LEI ROBIN HOOD

A constituição brasileira, de 1988, promoveu uma descentralização fiscal que aumentou significativamente a receita dos governos municipais, a partir de então. Pela constituição anterior, os governos federal e estaduais detinham o poder de arrecadar os principais tributos e pouco transferiam aos governos municipais. A nova constituição ampliou a competência tributária dos municípios e, principalmente, obrigou os governos federal e estaduais a repassar aos municípios uma fatia maior de suas arrecadações. Os governos locais estão mais próximos da população e melhor conhecem as preferências de seus cidadãos e têm grande potencial para redução da pobreza através de serviços públicos como educação fundamental, saneamento básico e medidas preventivas de saúde.

Em 1988, antes de a nova constituição entrar em vigor, os municípios arrecadavam o equivalente a 2,9% de todos os tributos do país, e recebiam transferências federais e estaduais equivalentes a 7,8% de toda a receita pública, totalizando 10,7%. Em 1997, em plena vigência das novas regras constitucionais, os municípios arrecadavam 5% da receita nacional e recebiam outros 11,1% em transferências: uma receita total de 16,1% A descentralização fiscal baseou-se fortemente nas transferências de valores arrecadados pela União e pelos estados para os municípios. De fato, em uma comparação internacional, o Brasil é um país com alto fluxo de transferências estaduais e federais e baixa participação da receita própria municipal.

Uma análise desagregada mostra que em quase 40% dos municípios as transferências federais e estaduais representam mais de 95% da receita local, sendo praticamente nula a receita própria arrecadada.

Cresce o consenso de que a descentralização dos recursos tributários, promovida pela CF/88, foi acima de tudo um movimento de municipalização da receita. Desde 1988, tem crescido a participação dos Municípios na disponibilidade de recursos tributários do país. Tal resultado é explicado pelo incremento na arrecadação direta desta esfera de governo e pelo fortalecimento do sistema de transferências de impostos, principalmente, através do FPM (Fundo de Participação Municipal). Dos três entes federativos os municípios foram os mais beneficiados pelo aumento de receitas, chegando a triplicar o valor fiscal em apenas 12 anos, enquanto que os outros níveis de governo não chegaram nem a dobrar suas receitas.

A receita tributária própria (arrecadação de tributos municipais, como IPTU, ISS, ITBI, e outros que representam receita própria dos municípios) tendeu a representar uma parcela maior da receita disponível (receita própria mais as transferências estaduais como o ICMS e as transferências federais como o FPM, Fundo de Participação dos Municípios, entre outras) nas cidades mais populosas. Em municípios com população menor que 30 mil habitantes, a receita própria representa entre 3 e 10% de sua receita total. Em apenas 2,6% do total de Prefeituras, segundo estudo do BNDES (2001,informe da Secretaria de Assuntos Fiscais, nº 28, in: www.federativo.bndes.gov.br) a relação receita tributária própria/receita disponível (RT/RD) superou 30%. Dentre estes 37 Municípios, em cerca de 51% (19) a população foi maior que 100 mil habitantes e 27% (10) apresentou população ente 30 e 100 mil habitantes . Por exemplo, dentre as cidades onde a relação RT/RD superou 30% encontraram-se: (i) Lauro de Freitas (BA), Teresópolis (RJ) e Bragança Paulista (SP); (ii) Niterói (RJ), Santos (SP), Londrina (PR), Aracaju (SE), Osasco (SP), São José do Rio Preto (SP); Campo Grande (MS), Vitória (ES), Joinville (SC), Santa Maria (RS) e Sorocaba (SP); e (iii) Belo Horizonte (MG), Curitiba (PR), Salvador (BA), Porto Alegre (RS), e Recife (PE). Em cada um dos grupos, a população ficou próxima de 100 mil habitantes, situou -se entre 300 e 700 mil e superou 1 milhão de habitantes, respectivamente.

A IMPORTÂNCIA RELATIVA DO FPM
Na distribuição do FPM, os Municípios são classificados em duas categorias: capitais estaduais e Municípios do interior. Do valor total do FPM, 10% são destinados às capitais; 86,4% aos demais Municípios; e 3,6% aos Municípios do interior com mais 156.216 habitantes. O FPM interior (os 86,4% do total) é distribuído entre os Estados conforme índices definidos em lei. Uma vez definida esta parcela, em cada Estado, a cota de FPM recebida por um dado Município é calculada com base em coeficientes de participação definidos segundo critérios populacionais. É estabelecido um coeficiente mínimo de 0,6 para todos os Municípios com menos de 10.188 habitantes. Para as cidades cuja população situa-se entre 10.188 e 156.216 habitantes, são definidas 16 faixas populacionais e um respectivo coeficiente individual. Para todos os Municípios do interior com mais
de 156.216 habitantes foi determinado o coeficiente 4,0. Os coeficientes aumentam à medida que cresce a faixa populacional, porém, em uma proporção menor. Assim embora Municípios mais populosos recebam uma cota individual de FPM superior às cidades de menor população, em termos per capita, são menos beneficiados. Isto é verdade tanto para as cidades que pertencem a uma mesma faixa populacional quanto para aquelas situadas em faixas distintas. Conforme aponta o exemplo numérico abaixo, qualquer Município com menos 10 mil habitantes receberia o mesmo valor absoluto de FPM , mas o de 5 mil habitantes receberia bem mais em proporção a sua população (R$ 1.037) do que o de 10 mil habitantes (R$ 518). Já o maior Município do exemplo, com 150 mil habitantes, receberia menos em termos per capita (R$ 219) do que todos os outros. Ou seja, os critérios de repartição do FPM beneficiam as cidades menos populosas porque permitem que as mesmas se apropriem de uma parcela maior de recursos em proporção aos seus habitantes do que os Municípios de maior porte. O fato das regras de distribuição do FPM favorecerem as cidades de menor porte faz com que os recursos disponíveis destas Prefeituras também sejam maiores em termos per capita quando comparados com os dos municípios mais populosos. Por esta razão, quando os da amostra utilizada no trabalho do BNDES foram divididos por classes de população, verificou-se que, regra geral, quanto menor foi o número de habitantes do Município maior foi a receita tributária disponível per capita decorrente de uma também elevada relação FPM/população As observações anteriores apontam para a existência de uma relação inversamente proporcional entre o tamanho do Município e a relevância do FPM na receita tributária disponível. Dos 85 Municípios cuja população superou 100 mil habitantes, em mais da metade (62,4%) o FPM representou menos de 20% da receita disponível. Neste caso, segundo visto, a arrecadação direta tem um poder explicativo maior sobre a receita disponível do que o FPM. Já entre as 665 cidades da amostra de população inferior à 10 mil habitantes, observou-se o inverso: em 199 (30%) e em 442 (66,5%) a relação FPM/RD (FPM/Receita Disponível) situou-se entre 30% e 50% e superou 50%, respectivamente.

Os municípios continuam sendo o elo fraco da federação, arrecadam apenas 4,20% do total dos três níveis de governo; mas a partir da Constituição de 1988 que obrigou os governos federal e estaduais a transferir recursos arrecadados aos municípios, sua receita disponível aumentou para 16,35% em 2005 do total arrecadado pelos entes federativos, segundo dados da Receita Federal ; ou seja dispõem de recursos quatro vezes mais do que arrecadam em receita própria. Mesmo dispondo hoje de mais recursos do que há duas décadas, os municípios ainda ficam com a menor parte da receita fiscal total; ou seja bem menos do que o governo federal e menos do que os governos estaduais. Em vários países da América Latina (Colômbia, Bolívia e Chile os municípios participam com mais de 30% do bolo tributário) os municípios dispõem de muito mais recursos do que no Brasil que possui mais de 5.560 municípios com grande capilaridade no interior do país, empregando mais de 4 milhões de servidores públicos ( quatro vezes mais servidores que a União e mais que os governos dos Estados).
Como vimos, os critérios de distribuição do FPM, são baseados em critérios populacionais, de forma progressiva ou seja aumenta com o aumento da população em termos absolutos. Em termos per capita, os municípios menores recebem proporcionalmente mais que os municípios maiores, beneficiando assim a grande maioria dos municípios brasileiros que possuem população menor e geralmente uma economia agropecuária de baixa renda per capita. Em termos gerais, portanto, o FPM contribui para um processo de melhor distribuição de renda no cenário brasileiro como um todo.
Este não é o caso das transferências estaduais, que se baseiam principalmente no ICMS, que é distribuído de acordo com o VAF, um critério que concentra a distribuição dos recursos do tributo nos municípios que mais arrecadam, que são os municípios sedes das grandes indústrias.

ICMS x FPM : DOIS PESOS E DUAS MEDIDAS

Como podemos ver nas tabela a seguir, as transferências federais e estaduais obedecem critérios diferentes : enquanto um distribui o outro concentra. Enquanto um beneficia os municípios de menor renda per capita o outro beneficia os municípios de maior renda per capita. Enquanto um aumenta o orçamento per capita dos pequenos municípios mais pobres o outro ajuda a aumentar o orçamento per capita dos municípios mais ricos. Enfim, as disparidades são enormes, mas pode-se concluir de forma bem clara e evidente que enquanto o FPM ajuda o processo de distribuição de renda no interior do Brasil e na melhoria das condições sociais das populações mais pobres ; a distribuição do ICMS, pelo contrário, estimula o processo de concentração de renda no interior do Brasil, aumentando a distância entre os municípios industriais e os municípios agrícolas ou de economias de subsistência. Como o ICMS representa mais da metade da receita fiscal dos municípios de maior peso industrial, essa distribuição contribui para aumentar a distância até mesmo entre os municípios industriais de maior população, dependendo do tipo de indústria, do valor agregado das mercadorias ou simplesmente do faturamento bruto destas indústrias. Vejam as diferenças entre os municípios “industriais”, onde o peso da indústria é preponderante na economia do município, como é o caso de Betim (Fiat), Contagem, Ipatinga (Usiminas), Timóteo (Acesita) e Belo Oriente (Cenibra) e os demais municípios não industriais (de economia agrícola ou de subsistência).
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TABELA 1 : ESTRUTURA TRIBUTÁRIA DE MUNICÍPIOS INDUSTRIAIS .MARÇO/2007 (FPM e ICMS). OUTROS DADOS – 2005.

MUNICÍPIOS Orçamento ICMS FPM
per capita per capita per capita
Betim 1.471,64 67,97 5,22
Contagem 744,74 21,29 3,44
Ipatinga 1.176,80 39,65 8,65
Timóteo 1.138,85 45,21 11,33
Belo Oriente 2.077,29 63,73 19,67
Fonte: FJP, STN. Alguns municípios mineiros típicos.
Tabela elaborada pelo autor.


Podemos observar que a distribuição per capita dos dois tributos está sendo realizada de forma divergente entre os municípios ; enquanto que os mais pobres recebem mais recursos per capita da União e os mais ricos recebem menos desta mesma fonte ; acontece o contrário com os recursos do ICMS, os mais ricos recebem mais e os mais pobres recebem menos (as exceções são devido à redistribuição da Lei Robin Hood).

TABELA 2 : ESTRUTURA TRIBUTÁRIA DE MUNICÍPIOS NÃO INDUSTRIAIS .MARÇO/2007 (FPM e ICMS). OUTROS DADOS – 2005.

MUNICÍPIOS Orçamento ICMS FPM
per capita per capita per capita

Inhapim 538,46 4,82 19,57
Caratinga 545,98 5,80 11,57
Cel Fabriciano 414,52 4,61 10,80
Mesquita 828,27 7,22 32,77
Naque 905,55 9,25 37,41
Fonte: FJP, STN. Alguns municípios mineiros típicos.
Tabela elaborada pelo autor.

Fica evidente a enorme distância existente nas políticas fiscais entre municípios que possuem economias de maior peso industrial com os municípios de economias de subsistência. Nos primeiros os orçamentos municipais são recheados com transferências estaduais (basicamente ICMS) enquanto nos segundos os orçamentos municipais dependem muito mais das transferências federais (não só FPM, mas também ITR, Fundeb, etc.).

O problema do ICMS está na forma como ele é distribuído. O imposto pertence aos governos estaduais, que a partir da CF/88 é obrigado a distribuir 25% de seu total aos municípios que arrecadam.Do total que o Estado repassa , três quartos dos 25%, são repassados proporcionalmente ao valor adicionado fiscal (VAF) e, o restante, como dispuser lei estadual. Apenas l/4 do que o Estado repassa pode obedecer critérios diferentes do VAF, mas ¾ continuam sendo critérios concentradores.
Se o ICMS fosse distribuído segundo os critérios do FPM, a mudança seria drástica, mas sem dúvida nenhuma seria mais justa, pois o critério predominante seria a população, o cidadão e não mais a produção econômica. O problema é que os municípios mais industrializados perderiam muita receita e os mais pobres ganhariam na mesma proporção muita receita. Então não é possível realizar uma mudança assim, tão drástica, a curto prazo, mas seria possível realizá-la a longo prazo.
Diante da situação pouco favorável para os municípios mais pobres e de menor atividade econômica , foi publicada em 28 de dezembro de 1995 a Lei nº 12.040, ou Lei Robin Hood. Esta indicava novos critérios para a distribuição da cota-parte do ICMS dos municípios, visando descentralizar esta distribuição, embora considerasse apenas 5% dos 25% a serem redistribuídos, o objetivo foi “desconcentrar renda e transferir recursos para regiões mais pobres; incentivar a aplicação de recursos municipais nas áreas sociais; induzir os municípios a aumentarem sua arrecadação e a utilizarem com mais eficiência os recursos arrecadados”. Assim, os novos critérios introduziram outras variáveis que modificaram a metodologia de cálculo usada. Em dezembro de 1996 foi publicada a Lei nº 12.428 que alterou a lei anterior, diminuindo o peso do VAF, e melhorando a participação dos critérios: Área Geográfica, População, População dos 50 mais Populosos, Educação, Saúde, Meio Ambiente, Patrimônio Cultural, Produção de Alimentos e Receita Própria. Os municípios que aplicassem mais nos novos critérios receberiam mais recursos dos valores a serem redistribuídos pela nova lei. Estes novos critérios da lei Robin Hood funcionaram muito bem nos três primeiros anos da aplicação da lei e fez enorme diferença para alguns pequenos municípios (por exemplo os do Vale do Jequitinhonha).
Os 150 maiores, arrecadaram : ( População: 63,64% do total)
Em 1995, 91,94 % do total em MG
Em 1996 83,93 %
Em 1997 79,92 %
Em 2002 78,77 %
Em 2006 78,83 %
Os 12 maiores (em arrecadação de ICMS) , arrecadaram 50 % do total no início da lei
Os 12 maiores arrecadaram 40,8% do total em 2002
Os 12 maiores arrecadaram 40,5 % do total em 2006

Em Minas Gerais, no primeiro semestre de 2007, os 12 maiores municípios em arrecadação de ICMS, arrecadam 40% do total, aumentando para os 24 maiores a arrecadação de 50% do total, devido à redistribuição da Lei Robin Hood. Pode-se observar que a lei fez diferença para os pequenos municípios no primeiro período do governo que o criou ou seja; funcionou realmente como Robin Hood, os grandes municípios perderam em arrecadação e os pequenos ganharam. Mas isso só aconteceu nos primeiros anos de aplicação da lei. Os governos posteriores não continuaram o processo, simplesmente “congelaram” a lei, de forma que os percentuais se estabilizaram (os 5% dos 25%) e com o passar do tempo e um certo crescimento econômico a progressividade foi se tornando regressividade. Vejam que a partir de 2002 se inicia lentamente um novo processo de concentração. Há necessidade de se retomar novamente esta lei, revigorá-la e implementar novos mecanismos dinâmicos de progressividade de tal forma que o processo anterior continue, como ocorreu nos anos 1996-1998.

Daniel Miranda Soares - Economista, ex-pesquisador da FJP, professor no UNILESTEMG.
Autor: Daniel Miranda Soares


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