A LÍRICA PEDAGÓGICA DE CECÍLIA MEIRELES EM “OU ISTO OU AQUILO” (1964): INSTRUÇÃO E DIVERTIMENTO



RESUMO: O artigo busca situar o lirismo poético-pedagógico de Cecília Meireles na poética infantil "Ou isto ou aquilo" (1964) como a união equilibrada entre o imaginário poético e o pragmatismo pedagógico da lírica in foco.

A LÍRICA PEDAGÓGICA DE CECÍLIA MEIRELES EM “OU ISTO OU AQUILO” (1964): INSTRUÇÃO E DIVERTIMENTO[1]

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares...
É uma grande pena que não se possa
Estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
(CECÍLIA MEIRELES)

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, têm se verificado na realidade educacional brasileira, seja no campo teórico-acadêmico ou práxis docente cotidiana, uma intensa preocupação conceptual e reflexão pedagógica acerca da integração de pilares essenciais - cuidar, educar e brincar – à formação e desenvolvimento da criança. E, a adoção de atividades e estratégias pedagógicas que envolvem o uso de múltiplas linguagens na escola, dentre elas, a poesia[2].

A obra "Ou isto ou aquilo", por meio da visão poético-pedagógica de Cecília Meireles (1901-1964), já antecipava, na segunda metade do século XX, novos parâmetros à educação da criança e, sobretudo, a ampliação do imaginário infantil. Fato que tem contribuído, significativamente, para o aumento da difusão de seus poemas no ambiente escolar, seja por meio da aparição dos textos em livros didáticos, inspirando e encaminhando atividades ou por sugestões de bibliografias em coleções didático-metodológicas para uso da poesia na sala de aula.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é apresentar uma possível versão conceptual à lírica pedagógica ceciliana em "Ou isto ou aquilo", enfatizando a sua relevância à criança e à infância. Assim, investigar-se-á as funções lúdicas e pragmáticas contidas na obra, estabelecendo relações entrecruzadas com obras da poeta anteriormente publicadas, dentre elas: "Criança meu amor" (1924), "Problemas da literatura infantil" (1951) e "Crônicas de educação" da autora publicadas em jornais brasileiros durante a primeira metade dos novecentos, a fim de delinear o caráter de “instrução” e de “entretenimento” que compõe o conjunto da obra infantil ceciliana, hoje, uma das mais consultadas pelas crianças no universo escolar.

Para realização de tal feito, buscar-se-á uma definição conceptual para o lirismo pedagógico ceciliano, considerando como norte uma abordagem histórico-cultural do fenômeno criador, cuja concepção de poesia e lirismo poético apóiam-se numa base epistemológica da poesia enquanto “jogo”; por isso, mesmo elemento da cultura. Nessa perspectiva, o lirismo poético será aqui tratado, sobretudo, enquanto fenômeno inerente ao homo ludens, cuja “poeisis é uma função lúdica” (HUIZINGA, 2000, p. 133).

Todavia, os poemas da obra "Ou isto ou aquilo" também se destacam pelo valor pragmático que confere aos poemas um caráter utilitário à formação e educação da criança em seus vários aspectos. O que denota uma intencionalidade pedagógica da autora no sentido de promover a ampliação do imaginário infantil e a aprendizagem da criança. Nesse contexto, a fim de estabelecer uma definição plausível à lírica pedagógica ceciliana na obra in foco, faz-se necessário estabelece relações contextualizadas com as concepções filosóficas e aspirações ideológicas para a educação da criança na primeira metade do século XX.

2 O FENÔMENO CRIADOR E A LÍRICA POÉTICA

Buscar uma definição para a natureza da lírica pedagógica ceciliana em "Ou isto ou aquilo"; requer, inicialmente, adentrar no universo da arte literária, a fim de conhecimento do fenômeno criador que permeia a produção poético-infantil de Cecília Meireles.

De acordo com Coelho (1980, p. 42), poesia “é uma linguagem verbal artística, rítmica ou melódica liberta da lógica da linguagem comum”. É, portanto, linguagem e, como linguagem, requer um sistema de signos organizados, capaz de brincar com imagens abstratas, e compor um universo paralelo à realidade imediata.

Para Huizinga toda expressão abstrata se constitui uma metáfora que é, sobretudo, jogo de palavras. O Homem ao brincar com as palavras distingue, define, constata a natureza das coisas, elevando-as ao domínio do espírito que dá expressão a vida. E, “[...] ao dar expressão a vida, o homem cria um mundo poético, ao lado do da natureza” (HUIZINGA, 2000, p. 8). Sendo a poesia essencialmente jogo de palavras e imagens, poder-se-ia entender que ela se situa no plano espiritual, na esfera lúdica do homem.

O lirismo poético é uma experiência individual, intuitiva e solitária. Decorre de uma profunda meditação do poeta sobre o mundo exterior associado ao um estado de espírito. Nesse sentido, o poema lírico é a expressão material da experiência vivenciada pelo “eu” imaginário em contato com o “outro” realidade, que ao fundir-se cria uma nova atmosfera.

Assim, a lírica poética, enquanto gênero literário, corresponde a uma expressão material da essência poética, cuja natureza sonora, musical, sentimental, subjetiva é coesiva em metros breves onde figuram a aparição de imagens sígnicas que provocam o aumento da simbolização e abstração, através de figuras oníricas que remetem o leitor a um estado de livre imaginação.

3 A LÍRICA PEDAGÓGICA CECILIANA

"Os poetas querem ser úteis ou deleitar;
Ou - ao mesmo tempo - dizer da vida que é agradável e útil.
Ficção cujo fim é alegrar deve se aproximar da verdade.
Tem todos os votos quem mistura o útil ao agradável;
E - ao mesmo tempo - deleita e instrui o leitor".
(HORÁCIO)

Ao longo da história da literatura, desde a Antigüidade Clássica, vem sendo debatida a problemática da funcionalidade da poesia: A poesia deve ensinar ou divertir?

É pertinente a esse estudo apontar e refletir essa questão, na medida que se considera que ela povoa a mente do escritor no momento da criação. E tratando de poesia infantil, essa questão torna-se ainda mais determinante, considerando que o autor possui em sua mente uma imagem cristalizada de um tipo de leitor que, no caso da literatura infantil, se relaciona diretamente a concepção de criança e infância com a qual compartilha idéias e norteia a sua ação.

Mediante tal complexidade, surge a indagação propriamente relacionada ao objeto desse estudo: Qual a concepção de criança e infância de Cecília Meireles? Refletir essa questão significa buscar uma versão aceitável para o caráter lúdico e pragmático contido em "Ou isto ou aquilo".

Cecília Benevides de Carvalho Meireles nasceu em 7 de novembro de 1901, na cidade do Rio de Janeiro. Formou-se professora primária em 1917 pela Escola Normal (Instituto de Educação), dedicando longos anos ao magistério público, do qual foi fruto o belíssimo livro para o curso primário “Criança meu amor”.

A poetisa, além do reconhecimento literário, se destacou entre os intelectuais brasileiros por possuir um saber especializado: a pedagogia, fundamentada na psicologia. Em 1924, inspirada pela obra “Emílio”, escreve a obra em prosa “Criança meu amor”, destinada ao público infantil das escolas municipais do Rio de Janeiro. Os textos, reunidos à titulação de "Mandamentos", apresentam os princípios rosseaunianos de forma acessível à criança.

Nessa obra, Cecília - sob a influência do pensamento iluminista do século XVIII - apresenta uma concepção idealizada de criança e infância, cujo desenvolvimento da criança se dá, gradativamente, em respeito a ordem natural. Nos mandamentos, a poeta expressa a condição assimétrica entre a criança - ser amoral - e o adulto - ser moral -, apontando uma concepção de criança pautada numa perspectiva do amanhã, cuja finalidade da educação é a formação de um novo ser humano - integral e moralmente mais solidário e fraterno. Essas considerações podem ser observadas no II mandamento de "Criança meu amor":

"Durante todo o dia, a professora pensa em mim, pensa no que sou, pensa no que hei de ser.
Ela deseja ver-me instruído e bom; par isso trabalha.
[...]
A professora é a minha proteção e o meu guia!
Devo amá-la e respeitá-la como se fosse também a minha mãe" (MEIRELES, 1977, p. 35, grifo meu).

No Brasil, a concepção de criança e infância que fundamentava os cursos de formação docente na Escola Normal, durante a primeira metade do século XX, decorria dos pressupostos filosóficos e pedagógicos da educação moderna defendidos por Rousseau, Pestalozzi e Froebel, cujos princípios norteadores têm raízes em Comênio.

Mediante tais pressupostos, a criança é um ser naturalmente bom, posto que nasce amoral, mas conforme interação com o meio, com o mundo adulto, a criança acaba assimilando os valores, crenças e, também, vícios de sua época e cultura; sendo, portanto, necessário para mantê-la no caminho do bem, uma educação que privilegie o aprendizado e exercício das boas virtudes. A infância, conforme tais fundamentos, consistiria numa fase de completa ignorância do ser, mas de enorme facilidade de aprendizado, para tanto se faz imprescindível o respeito ao jugo infantil e a compreensão das especificidades que comportam essa fase peculiar da vida.

Os pressupostos da educação moderna dos séculos XVIII e XIX, posteriormente associados ao pensamento revolucionário de John Dewey, inspiraram os intelectuais brasileiros a fim de construção de uma nova mentalidade no Brasil, cuja crença se apoiava na renovação do sistema educacional, fomentando os ideais escolanovistas em defesa de uma escola única, gratuita e laica. Obrigatoriedade do Estado e direito do cidadão.

De acordo com Kramer (1995b, p. 25), os ideais escolanovistas exerceram grandes influências sob a educação brasileira, principalmente no tocante a educação da criança. Se destacando alguns princípios: a valorização dos interesses e necessidades da criança; a idéia de desenvolvimento natural; a ênfase no caráter lúdico das atividades infantis; a crítica à escola tradicional e a importância dada ao processo de aprendizagem. Entretanto, apesar da ênfase nos interesses, necessidades e especificidades que comportam a infância, a concepção de criança e processo educativo, nessa época, se fundamentava ainda numa visão romântica, cuja criança era concebida como uma “semente” ou “flor”, a professora a “jardineira” e, a instituição escolar, um “jardim”.

Nessa acepção, a escola seria o lugar onde as pequenas sementes germinariam em plenitude, resguardada das más influências do meio, a fim de promoção de uma nova humanidade. Em crônica no jornal Diário de Notícias em defesa da educação moderna e da Escola Nova brasileira (17/03/1931), Cecília evidencia esse idealismo, concebendo a instituição infantil propriamente como:

"[...] um recanto onde a criança aprende a amar as outras crianças como aprende a amar a natureza, em que tudo que a representa, em que procura descobrir suas aptidões para vir a ser útil na vida, orientada pela sua vocação, ocupando o lugar adequado à sua capacidade, e não um lugar de assalto em que os seus erros constituam um opróbrio para si e um motivo de indignação ou de ridículo para os outros; e um recanto onde a criança vive, realmente, a sua vida de criatura em crescimento, desenvolvendo cada novo interesse que a idade desperta, sem nenhuma imposição sobre os seus gostos e a sua orientação" (MEIRELES, 2001, v. 3, p. 196).

Por outro lado, no tocante a literatura, é sabido que o gênero poesia infantil surge no Brasil de braços dados com a escola, visando principalmente o desenvolvimento moral, a cognição e a aprendizagem da língua portuguesa. Assim, a literatura infantil brasileira surge a partir da iniciativa dos próprios professores que começam a organizar antologias e escrever textos em prosa e verso para utilização de leitura escolar (CAMARGO, 2000; MAGNANI, 1989; ZILBERMAN, 2003 et al).

Nesse sentido, é compreensível que estando Cecília professora recém formada pela Escola Normal, concebesse os fundamentos teóricos e princípios moralizantes da educação moderna e atribuísse a “Criança meu amor”, um pragmatismo moral, concomitante a um leitor idealizado que se aspirava formar em adulto integral no século XX.

4 A LÍRICA PEDAGÓGICA DE CECÍLIA MEIRELES EM "OU ISTO OU AQUILO": IMAGINÁRIO E PRAGMATISMO

Ao longo de toda vida, Cecília escreveu para as crianças, mas foi através das páginas de "Ou isto ou aquilo" (1964), que Cecília teve seu nome difundido junto a esse público leitor.

A obra vem constituída de 56 poemas, sendo todos acompanhados de belíssimas ilustrações. Os poemas retratam coisas, significados, passagens e paisagens da infância e se destacam pela simplicidade da linguagem. Mas, também, pelas sutis associações simbólicas das coisas às palavras, aos conceitos e a variação de sentidos.

Na maioria dos poemas, percebe-se a preocupação da poeta em unir instrução e divertimento, o que reflete a preocupação da lírica com o letramento inicial e com a educação da criança, mas, sobretudo, o compromisso com a sua sensibilidade e com o aumento de suas competências imaginativas; evitando, com isso, que essas faculdades sejam perdidas ou esquecidas com o crescimento. Em “Problemas da literatura infantil” (1951), Cecília expressa essa inquietação de natureza pedagógica:

"Talvez a ciência pedagógica não diga tudo, se não for animada por um sopro sentimental, que a aproxime da vida quando apenas começa; desse lirismo que os homens, com o correr do tempo, ou perdem, ou escondem, cautelosos e envergonhados, como se o nosso destino não fosse o sermos humanos, mas práticos" (MEIRELES, 1984, p. 30).

Historicamente, a função lúdica na literatura, de acordo com Coelho (1980, p. 31), surge no momento em que ela é concebida enquanto natureza estética, com um valor em si mesmo, como sendo propriamente um jogo. No Brasil, a poesia infantil esteve muito tempo dependente da vertente do paradigma moral, estando a beleza estética submissa ao aspecto utilitário da linguagem poética à educação. Apesar do livro de Olavo Bilac “Poesias Infantis” (1904) demarcar o início de uma produção destinada a um público infantil brasileiro, é com Cecília Meireles e Vinícius de Morais que a literatura infantil ganha uma dimensão estética além das fronteiras do pragmatismo moral e do utilitarismo escolar (CAMARGO, 2000).

Huinzinga (2000, p. 133) alude que para se compreender a poeisis é preciso “[...] envergar a alma da criança como se fosse uma capa mágica, e de admitir a superioridade da sabedoria da criança sobre a do adulto”. Em síntese, é preciso penetrar na qualidade estética, admitir a existência da essência lúdica contida no homem. Nessa perspectiva, Cecília demonstra, através das páginas de "Ou isto ou aquilo", um grande autoconhecimento acerca do princípio de arte e beleza estética, necessário à construção de uma boa obra de arte. Além disso, revela um apurado interesse em compreender, e/ou corresponder, ao universo e a alma da criança. Em crônica em defesa do desenho infantil (Rio de Janeiro, A Manhã, 10/10/1941), a poeta-pedagoga reflete:

"As crianças, os primitivos e os loucos são os que se acham em melhores condições de dar exemplos de arte verdadeira, porque se movem numa atmosfera sem restrições, onde o impulso criador assume formas de inteira liberdade poética. Nesse mundo singular não se conhece a limitação exterior, a imposição social, o peso da crítica, - porque esse mundo está suspenso em si mesmo, como os países do sonho, com outros firmamentos, outros mares, outros habitantes" (MEIRELES, 2001, p. 127).

Para Cecília eram temas centrais a literatura infantil e a formação do leitor (MELLO In NEVES et al., 2001). A poeta-pedagoga acreditava que a literatura não era apenas um passatempo para divertir a criança, mas, sobretudo, uma nutrição, pois alimenta o espírito e fornece, quando feitas leituras adequadas, sensações, experiências e conceitos salutares à criança (MEIRELES, 1984, p. 32).

Assim, em “Problemas da literatura infantil”, alude para o fato de que não são os autores quem escolhem os seus leitores, mas os leitores quem os elegem. Dessa maneira, enquanto tantos teóricos da literatura debatem haver, ou não, a existência de uma literatura infantil, Cecília simplifica a problemática! Aludindo para o fato de que quem nomeia um livro de infantil são os pequenos leitores. A poetisa compreendia que são as crianças quem reconhecem a beleza estética contida num livro infantil. E, é essa descoberta que a criança guardará, pois ela atua no plano espiritual, que encanta a criança por sua natureza lúdica:

"Ah! tu livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira uma criança livremente descobriu, pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu, sim, és um livro infantil, e o teu prestígio será, na verdade, imortal. Pois não basta um pouco de atenção dada [...] É preciso que a criança viva a sua influência, fique carregando para sempre, através da vida, essa paisagem, essa música, esse descobrimento, essa comunicação"... (MEIRELES, 1984, p. 31).

Para Huizinga, o homem tem consciência de que o jogo difere da vida real, entretanto, por lhe fornecer prazer e evasão temporal é experimentado com muita seriedade, apesar de ser considerado uma atividade de faz de conta, como um lazer até mesmo para as crianças. Sendo a poesia propriamente jogo de metáforas - o que não significa dizer que é considerada não-séria, já que é uma atividade levada com muita seriedade pelo poeta -, assume as características formais de jogo na medida em que o poeta é arrebatado a um mundo onde as coisas adquirem uma natureza diferentemente da realidade, criando um mundo próprio e análogo ao cotidiano.

Em "O cavalinho branco" (MEIRELES, 2002, p. 16), Cecília expressa esse sentimento temporal de liberdade, evasão e plenitude, apresentando um autoconhecimento acerca do fenômeno criador:

À tarde, o cavalinho branco
está muito cansado.

mas há um pedacinho do campo
onde é sempre feriado.

O cavalo sacode a crina
loura e comprida

e nas verdes ervas atira
sua branca vida.

Seu relincho estremece as raízes
e ele ensina aos ventos

a alegria de sentir livres
seus movimentos.

Trabalhou todo o dia tanto!
desde a madrugada!

Descansa entre as flores,
cavalinho branco
de crina dourada!

O cavalinho branco, imagem personificada como a própria “imaginação”, permite a autora viajar em um mundo encantado, onde as coisas podem ser vivenciadas em liberdade, sem as restrições e coerções da vida moderna que submete o indivíduo ao anonimato e a exaustão de atividades corriqueiras. É o momento de encontro com o eu imaginário, com o eu lúdico, por isso, mesmo constitui-se um “feriado”, um extravasamento do indivíduo comum onde operam os fundamentos de liberdade, espaço, duração e consciência, dentro dos princípios a que Huizinga (2000) atribui enquanto características primárias contidas na beleza poética, concomitante ao sentido de existência dado pelo homo ludens ao jogo.

No poema, a autora - experimentando as sensações de extravasamento e plenitude - convida o leitor a penetrar nesse mundo encantado, a adentrar no universo da imaginação, a realizar uma experiência com os sentidos e a eles atribuir novos significados, pois em seu percurso “o cavalinho branco” ganha autonomia, passa a ter vida própria, e essa expressividade ensina: “Seu relincho estremece as raízes e ele ensina aos ventos, a alegria de sentir livres seus movimentos” (MEIRELES, 2002, p. 16).

Além do sentimento de evasão e plenitude acentuado pelo caráter lúdico que atribui ao poema ritmo, sonoridade e harmonia, verifica-se que a poeta intensifica o lirismo através da repetição de fonemas e pela fusão de consoantes que causam movimento aos versos, e do uso de sons produzidos pelas construções com as letras (m) e (n). Levando a criança a observar o uso desses sons e letras e, com isso, realizar outras possibilidades sígnicas.

Observa-se, então, nesse e em outros poemas da obra, um conjunto de intenções pedagógicas da poeta ao arquitetar poemas capazes de ofertar à criança uma experimentação com o universo da fantasia através de imagens sonoras e oníricas que pintam canções, quadros e passagens, mas, também, promovem uma brincadeira com as palavras que contribui para ampliar o seu letramento.

A função pragmática na literatura, de acordo com Coelho (1980, p. 31), tem sido a mais importante em todas as sociedades, pois é ela quem atribui à literatura uma finalidade utilitária ou prática para além de seu valor estético, se destacando algumas intenções, dentre elas, a pedagógica.

No Brasil, os intelectuais impregnados com o espírito do empirismo, defendiam a vivência da criança com a arte na escola, enfatizando a relevância da experimentação artística no processo de assimilação e construção da qualidade estética. Inspirados pelas idéias de John Dewey, através de seu grande difusor Anísio Teixeira, os ideais escolanovistas propõem que a arte seja tratada enquanto experiência e não apenas como livre expressão da criança, ausente de intencionalidade e direcionamento sistemático pelo educador, como sugere os modernistas no início do século.

Para Dewey, a arte está associada a uma visão de produtividade, podendo se constituir em um meio termo que liga a dicotomia lazer-trabalho, para isso, é preciso que as crianças vivenciem ativamente o processo artístico e a essa experiência atribuam significados internos. Em suas palavras:

"A arte não é um produto exterior nem um comportamento externo, é uma atitude do espírito, um estado da mente. [...] Perceber o significado do que se está fazendo e se regozijar com ele, unificar, simultaneamente em um mesmo fato, o desdobramento da vida emocional interna e o desenvolvimento ordenado das condições materiais – isso é arte. Os sinais externos de sua presença [...] são sinais na qual se exibem a união de pensamento agradável e o controle da natureza. Caso contrário, os fazeres são inertes e mecânicos". (DEWEY apud BARBOSA, 2001. p. 30-31).

Nesse sentido, a intencionalidade pedagógica de Cecília em "Ou isto ou aquilo", sugere que a poeta propõe um jogo dinâmico no fazer psicolingüístico da criança, que contribua para um fazer ativo em suas competências afetivas e emocionais, mas, também, que facilite a sua acepção e aprendizagem da língua escrita por meio da codificação e decodificação dos signos e da construção de novos significados. Essa realidade leva a crer que, nesta obra, a autora substitui o pragmatismo moral explicito em "Criança meu amor", por um pragmatismo psicolingüístico, cuja experiência se dá a partir da experimentação sensorial provocada pela brincadeira com as palavras e da expansão do imaginário infantil.

A harmonia entre o caráter lúdico e utilitário na obra "Ou isto ou aquilo", leva a considerar que a poeta propõe uma ruptura de extremos entre a educação da criança pautada na aquisição de conteúdos e a educação construída a partir de um fazer dinâmico e em respeito ao jugo infantil, sugestionando uma situação intermediária. Essa realidade pode ser verificada através do próprio título da obra - Ou isto ou aquilo - expressão usada por John Dewey na obra “experiência e educação”. Ao referir-se à adoção teórica extremista entre a educação tradicional ou a educação progressiva, Dewey reflete:

"O homem gosta de pensar em termos de oposições extremadas, de pólos opostos. Costuma formular suas crenças em termos de “um ou outro”, “isto ou aquilo”, entre os quais não reconhece possibilidades intermediárias". (DEWEY apud GADOTTI, 2002, p. 149).

Cecília por meio da poesia propõe a criança, e, sobretudo, aos educadores infantis, uma posição intermediária entre o cuidar, educar e o brincar, tão essenciais ao desenvolvimento da criança. Para a poeta-pedagoga, a tarefa de escolher entre um ou outro pólo impõe a criança o tédio, o esvaziamento e a mecanização do ensino. A escolha, nessa ótica, se constitui um corte à sua formação e educação, considerando que ela própria não conseguiu “entender [...] qual é melhor: se é isto ou aquilo” (MEIRELES, 2002, p. 38).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelas reflexões realizadas ao longo desse estudo, percebe-se que não se pode enquadrar a poética infantil ceciliana em apenas um “isto” ou um “aquilo”, essa atitude seria demasiadamente imprudente. Entretanto, pode-se dizer que "Ou isto ou aquilo" é uma obra atemporal, pois resiste a opressão da linearidade histórica.

O valor pragmático de sua poética será sentido e empregado mediante as aspirações de uma determinada época. E o seu valor lúdico persistirá no imaginário infantil, visto que a obra comporta todos os elementos necessários ao entretenimento da criança, mesmo em meio a um mundo tão transitório onde as imagens imediatas invadem o universo infantil por serem facilmente construídas com uma simples ação de toque ou clique.

A obra não se constitui apenas um instrumento capaz de promover no espírito da criança a fantasia e a construção de novos conceitos, nem, também, um precioso conteúdo lingüístico ou recurso metodológico a disposição dos educadores em seus fazeres diários.

A sua poética infantil, basicamente, é imbuída de um profundo lirismo. Lirismo que revela um amor fraterno e maternal, de quem acredita ser a criança um ser especial, naturalmente bom e potencialmente capaz de elevar-se e atingir a sua vocação de ser mais por meio do exercício e ampliação de suas faculdades. E, é esse sentimento que a poeta transborda abundantemente em palavras, sons e imagens, que toca a alma, o corpo e a mente do pequeno leitor.

O lirismo confere a obra infantil ceciliana uma posição equilibrada e intermediária, une em uma mesma expressão: instrução e divertimento. E, esse equilíbrio se constitui uma das características da alteridade de sua poética que se pode definir como “lírica pedagógica”.

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NOTAS:
[1] Artigo apresentado em comunicação oral no XII Seminário de Pesquisa do CCSA (PPGED/UFRN-Natal), em 11 de agosto de 2006. O estudo constitui uma síntese da monografia: "A lírica pedagógica de Cecília Meireles em 'Ou isto ou aquilo' (1964): instrução e divertimento", no curso de Especialização em Educação Infantil (UFRN-CERES/Campus de Caicó). E integra-se também à pesquisa (em andamento): "O lirismo poético-pedagógico em Cecília Meireles", sob a orientação do Prof. Dr. "Antônio Basílio N. T de Menezes", no Mestrado em Educação (PPGED/UFRN-Natal).

[2] Refiro-me aos novos fundamentos para a Educação Infantil apresentados nos Referenciais Curriculares para a Educação Infantil (BRASIL, 1998), e aos Parâmetros de Qualidade para a Educação Infantil (BRASIL, 2004 et al.), que sugerem uma nova atitude de conceber a educação da criança durante a primeira infância, propondo a integração de três pilares - cuidar, educar e brincar - como princípios norteadores ao processo educativo dentro dessa modalidade. Como também, a adoção de novas linguagens, atividades e estratégias metodológicas, pautadas numa concepção de pedagogia de projetos, cujo uso das linguagens múltiplas, na sala de aula, favorece uma aprendizagem interdisciplinar, significativa e dinâmica. Nesse sentido, tem surgido no mercado literário várias publicações de livros e coleções metodológicas, levando a reflexão ao educador acerca dessa temática, onde sugerem como melhor se utilizar da poesia, bem como da música, do teatro e da dança, do desenho, da TV e do cinema, no universo institucional.


HERCÍLIA FERNANDES (Mestranda em Educação/PPGED/UFRN)
Antônio Basílio N. T. de Menezes (Prof. Orientador)

http://fernandeshercilia.blogspot.com/
Autor: Hercília Fernandes


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