O Aniversário



O despertador toca, chamando-o para mais um dia. Josenildo levanta-se, ensonado e caminha lentamente para o banheiro. Não, exclama! Não é um dia comum, hoje é meu aniversário! E como em um passe de mágica começa sentir uma nova energia.

Faz tudo com muita alegria e até atreve-se a assobiar Sandra Rosa Madalena, do Sidney Magal, lembrando-se daquela malvada, ingrata, mas gostosa da Eliana. Pensa consigo mesmo que ao passar na frente da casa da Dª Eucrásia, ela haverá de lhe chamar e dar um par de meias brancas de presente, sempre igual, comprada no bazar da Vera, logo ali na esquina.

Dª Eucrásia alugou-lhe uma edícula nos fundos de sua casa há 6 anos e desde então, nunca lhe faltou com o par de meias brancas de aniversário e um panetone de Natal. - Eta, mulher porreta, que memória, deve marcar no calendário que tem pregado na porta da cozinha, pensa Josenildo enquanto toma seu café requentado de ontem.

Arruma-se com maior esmero hoje porque as colegas da repartição irão dar beijinhos e por vias de dúvidas passa até perfume, um luxo que não pode se dar todos os dias depois que a safada da governadora cortou muitas regalias dos funcionários públicos. Enquanto pensa vai tratando de sair, hoje até mais cedo para poder tomar o cafezinho que a Dª Eucrásia irá oferecer depois dos beijos molhados e dos parabéns. Fecha a porta sua porta e ao passar pela porta da senhoria tenta disfarçar o sorriso e timidamente, como um menino diz: - Dia, Dª Eucrásia! E para na certeza que ela falará: - Josenildo, meu filho , é hoje o dia dos seus anos? (Como se ela não soubesse...) E depois virá até ele, com um sorriso no rosto e ele todos os anos nota um pelo de barba bem no queixo.... Mas, Dª Eucrásia, continua lavando a louça e não diz nada houvesse.

Muito sem graça ele caminha em direção ao porta. Vai falando todos os palavrões que conhece....Ela deve estar mesmo esclerosada! Tenho que tratar de ir vendo se encontro outros cômodos para alugar porque mais dia menos dia logo os filhos a mandam para o asilo e depois vendem a casa, fominhas por dinheiro como eles são! Coletivo lotado, mas ele não se importa, afinal não é todos os dias que a gente faz aniversário.

Enquanto caminha vai pensando em como agradecer as colegas de serviço e mentalmente vai contando quantos presentes irá ganhar. Um é certeza, o da Cidinha da contabilidade, porque ela demonstra que tem uma quedinha por mim...não haverá de faltar. E tem também o da Raimunda, a copeira, um sabonete, mas a coitada é gente fina, embora ela quem deveria usar mais sabonete porque quando levanta os braços caem todos por perto da fedentina.

Caramba, já ia esquecendo da Magali, a secretária do Dr. Rolmão, ela com toda a delicadeza de mulher fina, com sua voz sensual, certamente antes de mandá-lo para o banco irá chamá-lo cerimoniosamente e dará um pequeno mino, com um beijo no rosto. Já deu caneta, agenda, abridor de cartas (como se pobre precisasse) e pensou mais, bem que ela poderia dar uma carteira esse ano porque a minha esgarçou toda e lá no camelô tá na hora da morte! E assim chegou ao serviço.

Bateu o ponto e nem parou para um dedinho de prosa com o Gumercindo porque hoje tinha que ser mais rápido e voltar mais cedo da rua a fim de estar melhor apresentável para a hora que os colegas chamassem para cantar os parabéns. A turma fazia uma vaquinha e compravam sempre um bolo que era servido em guardanapo de papel. Um fatia fina que parecia que dava para ver do outro lado, melhor assim porque o que sobra levo para comer amanhã junto com café (fazia sempre um fresquinho). Vida de contínuo não é fácil, leva papel de um lado para outro e todos têm pressa. Na lida matutina ninguém o cumprimento e ele pensava consigo mesmo que o pessoal iria fazer a maior surpresa da paróquia. Fingiriam que tinha esquecido e ao voltar do banco estariam com o bolinho na mesa da cozinha e cantariam o parabéns e cada um daria um presente.

Que pena que a Magali sempre vai embora assim que o Dr. Romão sai...Como ela me põe louco, como cheira bem essa danada! Quem me dera se ela me desse bola! Só de pensar sente o corpo todo tremer. Gostosa! Foi comprar a marmitex na padaria da esquina e disfarçadamente viu os bolos, teve vontade de perguntar o preço mas conteve-se, de repente poderia ter algum colega da repartição e ficaria com cara de tacho se pegassem no flagra. Magali chama para fazer o serviço de banco e nada! Filha da mãe! Deu todas as instruções e não deu o presente, sequer cumprimentou. Deixa estar que quando ela me pedir para ir correndo no banco para ela porque a conta está estourada eu vou enrolar, digo que tive problemas, que o coletivo quebrou, que o metrô teve problemas e que não deu tempo de pegar o banco aberto.

Ela me paga, aquela gostosa ingrata! No banco filha para tudo! Justo hoje que estou com pressa. Sempre assim, quando a gente não quer vai rápido que tenho tempo até para parar na loteca do Zeca e ficar jogando conversa fora e hoje essa porcaria! Quando Deus quis conseguir sair do banco. Correndo foi para o ponto do ônibus que não tardou a chegar, mas como estava lotado. Vou chegar suando! Ainda bem que tinha trazido um lenço porque paro no bar do Jura e lavo debaixo do sovaco. Chegando na repartição estranhou....cada um em sua mesa e não prestavam atenção a ele.

Que coisa! Será que não sabem que é dia 23 de agosto, dia que o Getúlio Vargas suicidou-se? Como podem ter se esquecido? Eu que sou um cara tão legal e quebro todos os galhos deles? Bando de ingratos. E olhando o relógio e ninguém se manifestando. Caramba. Não ficará assim. Foi conversar com o Anésio, o do arquivo. - Como o tempo passa, Nésio. Parece que foi ontem que fez aniversário de morte do Getúlio e já é de novo. E o Anésio nem se dignou a responder de tão entretido que estava lendo a página de esportes que havia surrupiado do jornal que alguém tinha esquecido na mesa. Idiota, parmeirense recalcado! Hora de ir embora...O coração apertado...Ninguém...ninguém mesmo tinha lembrado.

Última esperança: Dª Eucrásia. Ela certamente descobriu e irá pedir perdão e eu vou perdoá-la do fundo do meu coração, talvez até chore. E pensando nisso foi-se embora e ao passar pela porta da Dª Eucrásia ela nem sequer ouviu-o passar, de tão entretida que estava na novela. Velha!!! Esclerosada!!! Talvez ainda a Tatá telefone lá do interior, se é que o vagal do marido pagou a conta do telefone porque o Beto é um folgado e quando ela dá o dinheiro para ele pagar o telefone não é sempre que paga e cortam o bendito. Vou esperar. Fez um café fresquinho e colocou na garrafa térmica. Tomou e nem tinha fome. Sentou-se ao lado do telefone, nem se deu ao trabalho de acender a luz, fumava e ficava olhando a fumaça... Pensou e como pensou...lembrou da mãe, uma santinha, que Deus a tenha!

Pensou nos irmãos, cada um em um canto...Lembrou da Rita, aquela ingrata que o trocou pelo José farmacêutico...Lembrou de cada fracasso, de cada decepção e cada desamor. E o relógio correndo...19, 30 horas. Decidiu! Já que ninguém se importa comigo, não farei falta! Vou me matar. Tomo formicida que comprei para acabar com o gato da Dª Eucrásia e acabo comigo. Pegou a branquinha que tinha guardado debaixo da pia da cozinha para ocasiões especiais...Não, tem que ter estilo! Foi pegar a garrafa de champanhe que ganhou junto no Natal e mesmo sem gelo abriu. Antes foi passar um gel no cabelo e se pentear.

Pegou um copo, copo mesmo, não esses de massa de tomate, colocou champanhe e em seguida uma colher de formicida. Uma é pouco, não, vou colocar logo duas porque assim quando o locutor da hora do Brasil estiver falando: hoje, dia 23 de agosto, comemora-se o aniversário de morte do presidente Getúlio Vargas, eu também, como ele, estarei deixando a vida. Tomou e fez uma careta. Diacho, bem que poderia colocar um gostinho melhor na formicida! Poderiam imaginar que é última coisa que um suicida ingeri na vida! Deitou-se no sofá...Sentiu uma estranha calma como se fosse uma a coisa mais normal se matar. O rádio ligado e pode ouvir os acordes da Protofonia do Guarani iniciando a Hora do Brasil. E eis que o locutor começa: Hoje, 22 de agosto, o Presidente Lula está no Rio Grande do Sul para comparecer, amanhã, dia 23 de agosto à solenidade em homenagem ao Presidente Getúlio Vargas.

Autor: Maria Cristina Galvão de Moura Lacerda


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