CONVERSA COM POMBOS: CECÍLIA MEIRELES ANTES DE “O ÚLTIMO ANDAR”



RESUMO: O artigo realiza, 43 anos pós-partida da poetisa e educadora Cecília Meireles (1901-1964) ao mundo espiritual, uma descrição dos últimos instantes da lírica-pedagoga, estabelecendo relações com dois poemas da autora publicados na obra “Ou isto ou aquilo” (1964): “O último andar” e “A pombinha na mata”. No texto, coloca-se em destaque a natureza da visão e sensibilidade poética da autora, qualidades que acompanharam a poetisa ao longo de sua existencia material, persistem na eternidade de sua obra; e se relacionam, também, às atividades desenvolvidas pela lírica-pedagoga no campo da educação.

PALAVRAS- CHAVE: Cecília Meireles – nascimento – morte - poesia – educação.




CONVERSA COM POMBOS: CECÍLIA MEIRELES ANTES DE “O ÚLTIMO ANDAR”

Hercília Maria Fernandes[1]

1 INTRODUÇÃO

Declarou Lígia Fagundes Teles (apud NISKIER, 2007) - em conferência proferida na Academia Brasileira de Letras, durante as comemorações do Centenário de Nascimento da poetisa e educadora Cecília Meireles (1901-1964) -, que, ao fazer uma visita à poetisa em companhia do poeta Paulo Bonfim, um pouco antes de Cecília partir para o alto do seu “último andar[2]”, entraram no quarto do hospital onde a lírica convalescia, já de um longo período de enfermidade, e encontraram-na:

“[...] linda, entre os travesseiros, sentada como uma rainha. [...] Havia pombos no terraço do apartamento lá do hospital, e nesse instante ela disse: ‘Toda manhã, na hora do café, jogo miolo de pão para eles e eles conversam comigo’. Aí o poeta Paulo Bonfim perguntou: ‘E o que é que os pombos dizem, Cecília?’ Ela respondeu: ‘Ainda não sei, mais tempo aqui, vou descobrir. ‘Foi esta a última visão de Cecília’” (TELES apud NISKIER, 2007).

Assim, se deu a vida de Cecília Meireles, do nascimento à passagem espiritual, uma história marcada por encontros com “silêncios” e “solidões” poéticas, por liras e canções que desenham acordes doces, melódicos, sinestésicos, oníricos em concordância com compassos ritmados, extrasensoriais, e apurado misticismo. O lirismo é, sem sombra de dúvida, a marca definidora de sua voz poética e se estendeu, também, aos vários universos de atuação profissional empreendidos pela lírica, oferecendo-lhe o Motivo imperativo para o seu canto:

Eu canto porque o instante existe,
e a minha vida está completa
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.

Irmão das coisas fugidias;
não sinto gozo nem tormento
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico
Se permaneço ou me desfaço
- não sei, não sei.
Não sei se fico
Ou passo.
[...]

Sei que canto.
E a canção é tudo.
Tem sangue eterno, a asa ritmada,
E um dia sei que estarei mudo:
- Mais nada.

(Motivo In: Viagem, 1939)

Movida por um misto de inquietação e isolamento, a lírica “diáfana, etérea e fluída” da literatura modernista construíra uma das mais significativas obras femininas no Brasil. Na literatura, o nome de Cecília é sinônimo de poesia em “tom maior”, isso significa que sua poesia confere ao leitor a qualidade da ressignificação textual. Além disso, a escritora dominava brilhantemente a linguagem e o léxico; manuseando, como ninguém, os ritmos e os metros breves; como também, não se prendia às convenções e/ou normas das escolas literárias, preferindo seguir, conforme assinala Bosi (1972), “caminhos livres e individuais”.

A autora dominava tanto o gênero poético como o ficcional e o narrativo-histórico. Para comprovar tal realidade, basta, ao leitor, a apreciação de obras como: “Viagem” (1939), “Vaga música” (1942), “Mar absoluto” (1945) e “Retrato” (1949) – para citar algumas dentre tantas pertinentes ao gênero poético; E, para ilustrar algumas relacionadas ao universo da prosa poética e narrativo-histórica, destacam-se as obras “Romanceiro da inconfidência” (1953) e “Crônica trovada da cidade de Sam Sebastião” (1965).


2 A POETISA-PEDAGOGA ALIMENTA SONHOS

Cecília Meireles nasceu em 07 de novembro de 1901, em meio a uma série de antecedentes e precedentes de acontecimentos e perdas familiares. Entretanto, a menina sonhadora, envolta aos livros e a imaginação criadora da etérea infância, constrói, no curso de sua vida, obras que se eternizam no corredor do tempo: exaltação à natureza; introspecção, tendências ao universalismo e humanismo, aos sonhos, devaneios e a fuga do real; ênfase aos desejos de liberdade, plenitude e à condição solitária do ser; evocação à precariedade e à fugacidade do tempo, das coisas e dos seres; Enfim, nada na vida humana foi-lhe indiferente e escapou aos olhos verdes, ávidos e singelos de Cecília Meireles, constituindo-se marcos definidores de sua voz lírica e do seu anseio por desprendimento, já que:

No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:

no último andar.

(O último andar. In: Ou isto ou aquilo, 1964).

Os caracteres de sua poética – sonhos, liberdade, fraternidade, transcendência, desejo de plenitude, dentre outros aspectos já mencionados -, tão amplamente ligados às concepções sócio-educativas da pedagoga-poetisa, constituem-se, no campo educativo, ingredientes fecundos que suavizaram, com extrema delicadeza e brandura, os postulados pragmáticos do ensino e da ciência pedagógica.

Nascida sob o signo de escorpião, signo da intuição, sensibilidade e imaginação fecundas; mas, paradoxalmente, signo da ação e da concretude material, a poetisa-pedagoga também arquitetara uma das mais elevadas obras na história da educação brasileira, na primeira metade do século XX. Expandindo sua voz doce e, ao mesmo tempo, irônica na imprensa jornalística carioca nas décadas de 1930 e 1940; onde tratava, fluentemente, nos jornais “Diário de Notícias” e “A Manhã” de temas relacionados aos problemas sócio-educacionais brasileiros, contribuindo para difusão dos ideais renovadores da Educação Moderna e da Escola Nova. A educação era, portanto, para Cecília, “uma causa” que a poetisa-pedagoga acreditava de “maneira inabalável” (NEVES, 2007), abraçada com muita “paixão assim como a poesia” (MEIRELES apud VIANA, 2007).

Participante ativa do Movimento em prol da Escola Nova brasileira nos anos de 1930, conjuntamente com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho e demais escolanovistas, Cecília Meireles imbuiu a educação e o ensino com seu sopro lírico e sentimental sem, no entanto, perder de vista a cientificidade e sistematicidade que envolve o processo de instrução e formação humanas; sem retirar, portanto, da pedagogia o status quo de ciência objetiva e transformadora da realidade. Pois, como diz a escritora Rute Rocha: “[...] sem lucidez não se pensa bem a educação. Sem objetividade não se constrói em educação. Mas sem beleza não tem a educação nenhum propósito” (ROCHA apud MEIRELES, 1984).

Ao passo em que se dedica à produção literária, Cecília luta a favor do processo de democratização da escola e expansão das idéias renovadoras da Educação Moderna e Nova Pedagogia no Brasil, cuja criança constitui o centro da tarefa educativa e cuja finalidade da educação é efetivar a construção de uma nova organização social: humanamente melhor, mais justa e fraterna. Defende “diuturnamente” os ideais dos intelectuais brasileiros para efetivar uma cultura de modernidade e modernização da realidade nacional, sobretudo sócio-educacional. E, em razão do sentimento às crianças e à infância brasileiras, escreve livros, dentro do gênero infantil, a fim de contribuir para a construção do gosto literário, aquisições de conhecimentos, valores morais, do despertar de competências e habilidades no leitor-criança. Destacando-se, dentro do gênero, as obras: Criança meu amor (1924); A festa das letras (1937); Rute e Alberto resolveram ser turistas (1939); Rui: pequeno dicionário de uma grande vida (1949); e, Ou isto ou aquilo (1964), esta última, considerada uma espécie de divisor de águas e/ou marco paradigmático na história da poesia infantil brasileira.

A intensa participação de Cecília Meireles na cultura brasileira, tanto na literatura como na educação, nos anos de 1920 aos iniciais de 1960, exprime a modernidade de suas concepções e a condição do intelectual-artista, do sujeito sócio-humano que se vale dos saberes instruídos, domínios técnicos e estéticos para efetivar mudanças na realidade objetiva. Porém, as ações de Cecília foram, antes de tudo, poéticas. Os sentimentos dedicados, a delicadeza na expressão, a beleza e a intuição foram sempre marcas registradas no conjunto de seus discursos e práticas efetivas, elementos que evidenciam a alteridade de sua poética como valor da mais alta educação.


3 SAUDADE: A CANÇÃO DOS POMBOS

Ao deixar a vida material em 09 de novembro de 1964, a mulher amadurecida, entretanto eterna criança em sentimento, pela dor das perdas familiares, lutas ideológicas e perseguições políticas, no Brasil, na década de 1930; Cecília Meireles vê no sofrimento causado pela enfermidade a oportunidade do exercício da alteridade poética, buscando “no instante que parece eterno, mas não é” (SANDRONI, 2005), o diálogo fraterno com os seres da natureza a fim de compreender, poeticamente, os mistérios da existência e da brevidade do tempo.

Assim, a passagem descrita pela escritora Lígia Fagundes Teles – apresentada aqui, inicialmente, acerca da experiência expressa por Cecília Meireles no quarto de hospital -, faz lembrar, 43 anos pós-partida de Cecília rumo ao seu “último andar”, de um poema que encanta, desde 1964, os leitores da poetisa, sejam eles crianças, adultos e/ou adulto-crianças. Poema que integra a obra “Ou isto ou aquilo”, donde se evidencia o tema da premonição da morte. Talvez, nessa última visão de Cecília, a eterna menina, ao ouvir as vozes dos pombos, tenha, enfim, encontrado as respostas tão almejadas ao longo de sua existência humana como “poetisa das almas”:

Três meninos na mata ouviram
uma pombinha gemer.

"Eu acho que ela está com fome",
disse o primeiro,
"e não tem nada para comer."

Três meninos na mata ouviram
uma pombinha carpir.

"Eu acho que ela ficou presa",
disse o segundo,
"e não sabe como fugir."

Três meninos na mata ouviram
uma pombinha gemer.

"Eu acho que ela está com saudade",
disse o terceiro,
"e com certeza vai morrer."

(Pombinha na mata In: Ou isto ou aquilo, 1964).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARAÚJO, Marta Maria de. A educação tradicional e a educação nova no manifesto dos pioneiros (1932). In: ______. Trabalho apresentado no I Colóquio sobre o Manifesto da Educação nova. Belo Horizonte, 18 a 21 de ago., 2000.

___________. Lembrando a educadora Cecília. In: ______. Revista Educação em Questão. V. 1, n. 1 (jan.- jun. de 1987) – Natal, RN: EDUFRN, 1987.

BELOTO, Maria Rosa Mijas. Cecília Meireles, Caetano Veloso e o tempo. In: _____. Revista Tema: São Paulo, n. 36, pp. 68-97, 2000. Disponível em: Acesso em: 10/01/07.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1972.
LAMEGO, Valéria. A musa contra o ditador. Suplemento Literário. IN: ____. Folha de São Paulo. São Paulo: 4 de ago. de 1996a.

_________. A farpa na lira: Cecília Meireles na revolução de 30. Rio de Janeiro: Record, 1996b.

MEIRELES, Cecília. Ou isto ou aquilo. Ilust. Thais Linhares. 6 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

_________. Obra em prosa: crônicas de educação. Rio de janeiro: Nova Fronteira: Biblioteca Nacional, 2001, Vol(s) 1, 2, 3, 4 e 5.

_________. Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.

_________. Problemas da literatura infantil. 3 ed. São Paulo: Summus, 1984.

_________. Criança, meu amor. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977.

NEVES, Margarida de Souza, LÔBO, Yolanda Lima, MIGNOT, Ana Chrystina Venâncio. Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro: Puc-Rio & Loyola, 2001.

NISKIER, Arnaldo. Cecília Meireles: A educadora, 2007. Disponível em: .

PÉCAUT, Daniel. Intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a nação. São Paulo: Editora Ática, 1990.

ROCHA, Ruth. Prefácio. In: _____. MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 3 ed. São Paulo: Summus, 1984.

SANDRONI, Luciana. Cecília, a poeta aprendiz (apresentação). In: _____. MEIRELES, Cecília. O estudante empírico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

VIANA, Lúcia Helena. Cecília Meireles (estudo biográfico). In: _______. Vidas lusófonas. Cecília Meireles. Disponível em: . Acesso em: 02/01/07.


NOTAS:

[1] HERCÍLIA MARIA FERNANDES: Pedagoga; Especialista em Educação Infantil; Mestranda em Educação (PPGEd/UFRN-Natal); Professora vinculada às redes Estadual e Municipal de Educação no Rio Grande do Norte; Poetisa e Escritora já com dois livros lançados, em prosa e poesia, com o apoio cultural do SESC-RN.
[2] Em o poema “O último andar” (MEIRELES, 1964), Cecília trata da transitoriedade da vida e desenvolve o tema do desejo de liberdade e plenitude do ser.
Autor: Hercília Fernandes


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