A antiética na cultura do comércio e posse de animais



Imagine o Mercado de Delos, numa cena corriqueira do século 3 A.C.. Lá, homens, mulheres e até crianças eram “emplacados” com tábuas penduradas no pescoço com origem, qualidades e defeitos descritos e o preço em dracmas. Comerciantes abastados chegavam à ilha da cidade, compravam essas pessoas para lhes servirem de escravos e arrogavam então a si a posse dos humanos comprados.
Imagine você, vindo de uma viagem no tempo, perguntando para um comerciante daqueles quem eram aquelas três crianças nuas no barco dele e se tinham algum parentesco com ele. Então ele diz: “Ah, são uns escravos que comprei agora há pouco. E não sou pai deles, sou dono”. E explica que os garotos comprados eram de sua preferência: morenos, cabelos longos e de olhos verdes, e satisfaziam aos seus desejos de ter crianças bonitas para sua companhia afetiva.
Uma sensação de indignação e compaixão invade você ao ver aquele senhor tratando aquelas crianças como mercadorias, como coisas, como objetos de posse e categorizáveis. Não tolera que ele esteja daquela forma comprando vidas humanas dotadas de afeto e sentimentos num mercado. Num ato de reação humana a atos de desumanidade, você semeia uma conversa argumentativa com o “dono” das crianças na intenção de mostrar que ele está sendo imoral e desumano e fazê-lo libertar aquelas crianças ou adotá-las como filhos de verdade. Seus argumentos falam de as crianças serem humanas iguais a ele, terem sentimentos, pensamentos, desejos, virtudes e direitos naturais à dignidade. O homem então, depois de dez minutos de conversa, vai embora irritado, levando as crianças, sem assimilar a moral de direitos humanos que você tentou incutir nele. Para ele, os meninos eram seres inferiores e sem direito à dignidade que apenas os humanos de sua “raça” tinham e cujos sentimentos e demonstrações de inteligência serviriam para sua função de escravos de companhia.

Agora, imagine você, dois anos depois de voltar daquela viagem temporal, na frente de um pet shop, querendo comprar filhotes de um yorkshire, manifestando preferência por cãezinhos de pêlo comprido, liso e de cor acaju. Paga então 600 reais por dois cachorros. Quando você vai saindo com os dois filhotes recém-desmamados, chega um defensor animal, com a camisa manifestando o ideal da libertação animal. Ele logo começa uma pequena entrevista com você sobre os animais recém-comprados. “Você é o quê desses cães? E como os obteve?”, pergunta o ativista. Você, imaginando o quão idiotas aquelas perguntas pareciam ser, diz cordialmente “Sou dono deles, ué. Comprei-os aqui no pet shop”. E afirma que você os comprou para que lhe fossem companheiros. Uma sensação de indignação e compaixão invade o rapaz ao ver você tratando esses animais como mercadorias, como coisas, como objetos de posse e categorizáveis (você os comprou com seletividade de raça, cor e pelagem). Ele então lhe bombardeia de argumentos que corroboram o caráter antiético do comércio e da arrogância de posse de animais: um deles é que os animais não-humanos têm sentimentos, pensamentos, desejos, virtudes e direitos naturais à dignidade, ainda que os pensamentos sejam construídos de forma diferente do pensar humano.
Você, caso seja empático, começa a ficar pensativo: algo parecido já acontecera antes. Depois de uma boa reflexão, repara que as únicas diferenças entre as criaturas defendidas por você no século 3 A.C. e as defendidas pelo defensor animal no século 21 D.C. são a espécie e a presença ou ausência das capacidades de fala articulada, raciocínio, intelecto e trabalho manual complexo.

Partindo dessa lição que você teve com a relação entre as falas do ativista da causa animal e o déjà-vu de Delos, convido a pensar: é certo categorizar um animal de espécie diferente como portando uma vida inferior à humana só por causa da falta de habilidades humanas, a despeito de todas as semelhanças existentes?

Se você começar a refletir seriamente e finalmente pensar “É, por que os animais, que são mais parecidos conosco do que pensamos tradicionalmente, ainda assim são tratados como inferiores?”, vai, por tabela, perceber também que é eticamente errado arrogar a si os direitos de ter posse de animais e valorar suas vidas. Do mesmo jeito que é considerado absurdo valorar a vida humana ou ter posse da vida e pessoa alheia.

Para ser mais evidente ainda em minha colocação sobre o especismo e a antiética da posse e comércio de animais não-humanos, vamos adotar dois exemplos que você considera nobres.

Primeiro, pense num Homo erectus. Ele tinha sentimentos, desejos, virtudes, pensamentos, como você que é Homo sapiens sapiens. Mas não tinha o intelecto nem o raciocínio apurado que você tem, nem falava direito e suas melhores ferramentas eram objetos de pedra rudimentarmente trabalhados. Pergunto: ele era inferior a você? A vida dele era inferior à sua? Ele merecia restrição de direitos só porque não tinha as habilidades humanas desenvolvidas? Deveríamos comercializá-los em “super pet shops” caso existissem? Pense nisso.
Agora pense num bebê. Você vai pensar “Poxa, um bebê? Claro que ele tem sentimentos, desejos, virtudes, pensamentos (ainda que em linguagem rudimentar), etc.”. Mas entro com a suposição de que ele fosse um bebê que tivesse uma doença degenerativa que lhe causasse uma atrofia cerebral, impedindo que ele desenvolvesse a maioria de suas habilidades de ser humano quando crescesse, e fizesse-o morrer aos 12 anos (mesma idade em que muitos cães e gatos morrem). Reflita então: ele merece ser vendido? Você compraria esse bebê de uma família que não tivesse condições de custear sua sobrevivência? Você se acharia dono desse bebê? Atenção, lembre-se de que ele não poderia nunca desenvolver intelecto, raciocínio, habilidade laboral, nada disso. Mas não deixa de ter sentimentos, desejos, necessidades e virtudes. Ele inclusive demonstra muito carinho para com você, da mesma forma que os filhotes de yorkshire comprados na história dos primeiros parágrafos lhe demonstram.

Faço a pergunta depois de todos esses casos: qual a diferença entre os seres humanos normais e os descritos no parágrafo acima? A presença de raciocínio, intelecto, habilidades manuais, etc.. E agora qual é a diferença entre o bebê mais o Homo erectus e os cães, gatos, bois, peixes-betas, iguanas, etc.? A única resposta adequada, apesar de sua possível visão especista indignada com minha comparação, é: a espécie. Daí pergunto: por que você compra cães e gatos mas repudia uma hipotética comercialização de espécimes de Homo erectus ou bebês com deficiência de raciocínio?

Agora você está começando a enxergar o quão antiética é a venda e a posse de animais. Não é ético que comercializemos ou nos apossemos de animais, que têm tanto em comum conosco e cujas ausências de habilidades humanas poderiam ser notadas em outros hominídeos ou em humanos com capacidades cerebrais comprometidas.

Como a posse de animais é algo moralmente errado, não devemos mais nos considerar “donos” dos animais, uma vez que a palavra “dono” conota posse ou propriedade e odiaríamos que alguém dissesse ser dono de seus filhos. O certo é nos entitularmos “tutores”, já que estamos educando e cuidando de nossos animais domésticos e os termos “educação” e “cuidados” servem perfeitamente também para nossas crianças ou, por outro exemplo, intercambistas que estejam sob nossos cuidados.

E como o comércio de animais também é antiético, fica meu clamor: NÃO COMPRE OU VENDA ANIMAIS, ADOTE-OS OU DOE-OS.


P.S: Se você se irritou com este artigo, pergunto: qual é o fundamento dessa irritação, além de mero especismo? O que foi dito aqui que está indiscutivelmente errado? E por que para você os animais não-humanos continuam não merecendo os direitos básicos que o ser humano tem (liberdade e dignidade, para dar os exemplos mais óbvios)? Acalme-se e reflita com o melhor de sua racionalidade.
Autor: Robson Fernando


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