Inépcia da denúncia por ausência de elemento subjetivo do injusto
Warley Belo
Professor de Pós-graduação/UFJF
Mestre em Ciências Penais/UFMG
Advogado Criminalista
A exigência de descrição do fato jurídico com todos os seus elementos traduz-se na perfeita exegese do garantismo constitucional moderno onde se evita peças acusatórias lacônicas ou omissas e se privilegia o direito fundamental indisponível da cidadania.
Se for verdade que não existe crime sem conduta, mais ainda é que não existe conduta sem vontade. Se o conteúdo volitivo for típico, temos o dolo, elemento subjetivo do tipo penal (art. 18, CP), que segundo Welzel[1], significa a vontade de realização da ação.
A subjetivação do tipo penal, iniciando em Helmuth von Weber, Graf zu Dohna, Hans Welzel, Maurach, Niese dentre outros, acabou por fundar a teoria finalista da ação com conseqüências processuais explícitas. É que o tipo deve constar da narrativa da inicial, por expressa exigência legal, sendo certo que o dolo, como elemento subjetivo do injusto, deve estar narrado, também, na denúncia ou queixa, sob pena de inépcia.
Faz parte integrante do tipo, o elemento dolo que envolve a consciência e a vontade do agente de empregar, por exemplo, a violência ou grave ameaça como meio de execução nos crimes de roubo[2]. Ou, no caso de furto, deve ser explícito o animus de se apoderar da coisa para si ou para outrem, como exigido pelo tipo, e se tal não constar na denúncia, o fato narrado é atípico, podendo se traduzir em furto de uso. Também é imprescindível na distinção entre tentativa e crime consumado e tal descrição quase sempre não consta da denúncia e nem fica demonstrada nos autos, entre muitos outros exemplos.
Na teoria causal, o elemento subjetivo só era objeto de análise no momento da sentença. Todavia, adotada a teoria finalista da ação, o dolo deve ser aferido no início da ação penal. A ausência do elemento subjetivo na denúncia ou queixa contraria o disposto no art. 41, do CPP, que determina que a exordial de acusação contenha a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias. Com a teoria da imputação objetiva, o que modifica é que primeiro se deverá aferir o fato objetivamente e, só então, passa-se ao aspecto subjetivo, igualmente importante.
A peça acusatória limita-se, muitas vezes, a descrever o fato objetivo sem, contudo, registrar o ânimo, seja doloso (ou o culposo) do agente. Entretanto, a ação típica é o somatório de fatores internos e externos e a exordial não pode prescindir do elemento subjetivo, pois o Código de Processo Penal exige que a denúncia tenha por respaldo elementos concretos, que tornem possível o exercício da defesa plena do acusado. A inépcia da denúncia, demonstrada pela inequívoca deficiência subjetiva da denúncia, impede a compreensão da acusação e traz flagrante prejuízo à defesa do réu. Conforme nos ensina Daniela de Freitas Marques[3], são várias e importantes as funções do elemento subjetivo do injusto:
“os elementos subjetivos do injusto permitem a distinção entre comportamentos que constituem um exercício regular de direito daqueles que integram o injusto penal. Como exemplo: o direito constitucionalmente assegurado de associação e o da associação com o fim de cometer crimes (...). Os elementos subjetivos do injusto permitem”, também, “a distinção entre tipo legal de crime e outro. Como exemplo: os tipos de seqüestro ou cárcere privado, de extorsão mediante seqüestro e rapto”, já revogado. E mais: “os elementos subjetivos do injusto permitem a alteração do bem jurídico protegido. Assim, no Código Penal Brasileiro, vê-se que o art. 146 tem como bem jurídico lesado ou ameaçado de lesão a liberdade individual; o art. 158, o patrimônio.”
O elemento subjetivo constitui, assim, uma das principais circunstâncias relacionadas com o fato criminoso. A jurisprudência[4], entretanto, não tem sido generosa na aceitação da tese.
Dispondo o art. 43, I, do CPP, como condição para o recebimento da denúncia ou queixa, sobre a necessidade de o fato narrado se constituir crime, e sendo este a ação ou omissão típica e ilícita, e integrando o dolo o tipo, caso não esteja o dolo evidenciado na narrativa da inicial estará sendo narrado um fato atípico, que não se adequou ao conceito de crime. E, de acordo com José Frederico Marques,
"a ausência de fato típico torna inadmissível a persecução penal contra o autor de uma conduta que possa ser tida por ilícita ou antijurídica"[5].
O elemento subjetivo, intencional quando do cometimento do fato típico, é indispensável à configuração do delito. Sua ausência, a par de constranger o réu em sua dignidade humana, é falha na descrição da conduta típica. A denúncia, na demonstração da existência do crime, deve descrever todos os elementos (objetivo, subjetivo e normativo). A ausência de qualquer desses elementos deve levar à inviabilidade da ação penal em nome do garantismo processual.
NOTAS
[1] Hans Welzel. Derecho Penal alemán, Santiago: EJC, 1970, p. 95.
[2] O TJDF já decidiu assim:“Faz parte integrante do tipo do art. 157, § 2º, II, do CPB, o elemento subjetivo do dolo que envolve a consciência e a vontade do agente de empregar violência ou grave ameaça como meio de execução, e tal descrição não consta da denúncia e nem está demonstrada nos autos, o que contraria o disposto no art. 41, do CPP, que determina que a exordial de acusação conterá a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias.” (TJDF – ACr 2000041007843-4 – 1ª T. – Rel. Des. Pedro Aurélio Rosa de Farias – DJU 07.08.200208.07.2002)
[3] Elementos subjetivos do injusto. BH: Del Rey, 2001, p. 126 e 127.
[4] Criminal. HC. Perturbação da tranqüilidade. Contravenção penal. Trancamento da ação penal. Ausência de justa causa não evidenciada de plano. Inépcia da denúncia. Elemento subjetivo do tipo não detalhado na peça acusatória. Exercício pleno da defesa possível. Falhas não-vislumbradas. Ordem denegada. HC 27481, Ministro GILSON DIPP
[5] MARQUES, José Frederico. Tratado de direto processual penal. São Paulo: Saraiva, v. I, 1980, p. 171.
Autor: Warley Belo
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