A mudança radical de consciência e a fluoxetina (mais a pílula vermelha)



Uma verdade bastante notada por pessoas encarregadas de conscientização individual ou coletiva é que assuntos que inspiram reflexões profundas e atitudes consideradas radicais, como vegetarianismo, envolvimento de músicos popularizados com maldades contra animais, exposição de perniciosidades e incoerências religiosas - desde absurdos contidos em livros sagrados até comportamentos maléficos movidos por fé cega -, efeitos nocivos de refrigerantes à saúde e repensamento de hábitos de forte implicação ambiental negativa, são difíceis de serem aceitos pela população. A grande maioria, especialmente na internet, replica os esforços de conscientização com dizeres reacionários ou simplesmente birrinhas e xingamentos. Mas felizmente há aqueles que, mesmo depois de tentarem resistir, admitem a razão dos conscientizadores e começam a aceitar seus alertas e filosofias - são essas pessoas que eu abordo neste artigo. Entretanto, nesses assuntos, é muito difícil haver uma suplantação abrupta ou absolutamente rápida de ideais, crenças, filosofias e atitudes. Há quase sempre um processo lento e gradual de assimilação da nova consciência. Do mesmo jeito que remédios com efeitos colaterais temporários.

Antes de relacionar esses remédios com a gradualidade da assimilação da conscientização, tenho que descrever o que de fato acontece quando a pessoa os ingere. São efeitos colaterais que o corpo sente por não estar acostumado com o princípio ativo. Tenho experiência com isso: já tomei fluoxetina anos atrás para tratamento de pensamentos invasores (pequena desordem de ordem cerebral), e o início não foi nada agradável. Tontura e acessos de vontade gratuita de chorar marcam a primeira semana de medicação. Quanto a uma nova consciência, é assim mesmo também: “tontura” psicológica ao ver que aquele valor que ditava parte de sua vida se tornou intragável, que aquele gás antigo que você respirava com o ar da vida se tornou corrosivo para você; sentimentos negativos - e muitas vezes vontade de chorar também - por ver que aquilo que você acreditava que era certo, válido e saudável (ou sem impacto significativo na saúde) na verdade era maligno, insustentável e até doentio.

Outra semelhança evidente entre os efeitos da fluoxetina e da assimilação de uma consciência radicalmente diferente dos paradigmas anteriores da pessoa é tentar-se moderar a dose para diminuir a complicação da aceitação (corporal ou psicológica) e aumentá-la quanto mais a pessoa, em corpo ou consciência, se sente estabilizada. Descrevo em três exemplos marcantes, que tenho que dispor em parágrafos separados por serem extensos.

O primeiro exemplo é o de um cristão moderado que, depois de tomar conhecimento dos diversos absurdos da Bíblia e da própria doutrina de Javé/Deus, Jesus e (opcionalmente) semidivindades católicas, se decepciona profundamente com a sua agora ex-religião mas ainda crê num Deus-nome-próprio, ainda que este não seja semelhante ao homônimo bíblico cujos podres foram escancarados. Tempos depois, vai percebendo que a crença teísta pós-cristã também tem incoerências, visto aspectos da realidade como desastres naturais com muitas mortes, a falta de isonomia divina perante as pessoas com mesmo nível de fé (como em vestibulares, em que um cristão passa em terceiro lugar geral e outro, apesar de ter tido tantos esforços e devoção quanto o felizardo teve, sequer é aprovado) e outros aspectos em que a razão começa a suplantar a fé. Vira então um deísta, pessoa crente em uma energia superior impessoal que rege o universo. Muitos conformam-se com essa etapa, mas outros igualmente muitos, vendo que o deísmo muitas vezes é apenas uma tentativa de aplacar o efeito-fluoxetina, tornam-se agnósticas ou finalmente atéias. O efeito adverso inicial foi ver a “muleta religiosa deluxe” tornar-se “nociva à saúde”, e a pessoa ter que arranjar uma muleta mais simples e menos inconveniente para o portador, partindo logo após para uma bengala antes de se tornar independente de apoios externos.

O segundo caso é o de um onívoro - ou melhor, carnívoro, para dar ênfase a seu gosto quase compulsivo por carnes - que fica em contato por muito tempo com vegetarianos. Outrora aficionado por maminha, picanha, carne-de-sol, galeto, bacalhau, churrascos em geral, pudim de leite e chocolate adoidado, o sujeito ainda tenta resistir por um bom tempo aos debates dos vegetarianos (ver a questão da pílula vermelha e do reacionarismo mais abaixo), estes que mostravam como era um ato de importância, ética e compaixão tornar-se um deles, mas um dia finalmente amolece e, mexido por argumentos que escaparam às suas tentativas de esquiva e reação contrária, lambe aos poucos a pílula de “fluoxetina vegetariana”. Com a idéia de aceitar gradualmente o paradigma vegetariano, primeiro diminui o consumo de carne vermelha. Em seguida restringe-se à carne branca. Nota-se que, com o tempo, a fluoxetina foi totalmente absorvida através das lambidas e a pessoa vai assistindo vídeos de matadouros e documentários anti-carnivoristas, apesar de ainda insistir em diminuir lentamente o consumo de animais mortos e produtos de bichos explorados vivos. Enfim acaba com o carnivorismo, mas ainda está no estágio de semivegetariano (mais conhecido como ovolactovegetariano). Depois de aceitar na prática que a produção de leite, ovos e mel também é muito cruel, enfim torna-se um vegetariano estrito, podendo tomar a vontade de ser vegano quando tiver condições e opções suficientes de produtos livres de crueldade. O efeito adverso desse foi o sofrimento em consentir que estava participando indiretamente do massacre dos matadouros e do circo de horrores da exploração de reses fêmeas e de galinhas ao mesmo tempo em que continuava comendo seus produtos, ainda que em doses reduzidas.

A última amostra aplicada principal da relação de consciência e fluoxetina é a ingestão de refrigerantes. “Cocólatra” compulsiva, a pessoa resiste por anos aos argumentos de que tomar “refris”, especialmente os de cola, faz mal à saúde podendo causar danos a longo prazo no organismo. Num momento de epifania momentânea, causada ou pela evolução de consciência ou por uma reportagem que mostra (hipoteticamente) que refrigerantes aumentam 10 vezes a suscetibilidade à contração de câncer de estômago, ela encontra enfim determinação para se tomar a “fluoxetina conscientizadora”. Ela surte um significativo efeito colateral: a abstinência de refrigerante (sim, muitos têm abstinência da gostosura de um “bom” “refri”). Para minorá-la, o conscientizado começa a moderar as doses da bebida e começa a experimentar sucos. Até que consegue enfim substituir os líquidos industrializados pelas delícias da fruta liquidificada.

Vemos por esses e outros exemplos que a conscientização tem efeitos análogos com a fluoxetina. Ambas vêm para um bem, mas possuem fortes efeitos adversos de início que requerem muitas vezes a moderação temporária de suas doses (de comprimidos ou de teor de mudança de atitude).

Completando a coisa, há outro colega entrando na conversa: a pílula vermelha de “Matrix”. Ela tem tudo a ver com o contexto: a conscientização cura a pessoa de paradigmas equivocados e nocivos, a fluoxetina trata-a dos pensamentos invasores e a pílula vermelha liberta-a de um mundo ilusório, da dominação através de uma grande ilusão por parte das máquinas. Todos os três possuem o fim de libertar de um mal. A vermelhinha, assim como as outras duas, inflige efeitos colaterais em sua ingestão - foi essa parte que me interessou a inseri-la aqui no artigo -: dificuldades lancinantes de se acostumar com um mundo totalmente diferente e a paradigmas inéditos. Se você descobrisse que este mundo é uma ilusão, uma Matriz, e fosse expelido para um mundo subterrâneo em que humanos eram aprisionados em câmaras criogênicas e tinham seus cérebros conectados com o mundo virtual para viverem achando que estão vivendo um mundo real? Os efeitos iniciais seriam horríveis - tem destaque a vontade louca de reaver aquele mundo cujo caráter real não volta mais, de pedir ajuda a algum amigo que não está mais ao alcance e de clamar guarida a Deus, outra entidade que ficou para trás na Matriz -, e você, na tentativa de minorar a “tensão do mundo novo”, incutiria na própria cabeça que aquilo era um sonho ou uma alucinação que você não saberia se terminaria. Efeitos tão fortes quanto o da fluoxetina, tão perturbadores quanto o da conscientização por mudanças radicais. Paralelamente a essas complicações, começa-se aos poucos a se aceitar um mundo real totalmente diferente, noções de paradigmas bastante remexidas e a opção sem alternativas de compreender e aceitar a nova vida, a nova atitude, os novos valores, a nova percepção da realidade. Assim, um tempo depois de ter saído da Matriz, você acaba se adequando ao novo mundo, aos novos paradigmas. Olhe, é tudo aquilo que a conscientização traz! Mudanças nos paradigmas, na percepção e visão de mundo, na atitude em relação à antiga vida... Visto isso, vemos que assim é o estabelecimento de uma nova consciência: uma pílula vermelha, com efeitos colaterais iniciais de fluoxetina... e necessária para a cura de muitos males.

Ninguém gosta de sofrer rebuliços violentos na vida e ter que deixar para trás os prazeres costumeiros. Ninguém gosta de sofrer tonturas e acessos de náusea lacrimal (termo com que defino a vontade de chorar gratuitamente), seja em sentido real ou figurado. Poucos aceitam passar por esses problemas ainda que eles venham precedendo um tratamento eficiente, uma melhoria de vida. Daí, é pouca gente que aceita tomar consciência, fluoxetina ou pílula vermelha para extirpar problemas óbvios ou disfarçados de costumes aceitáveis. Do mesmo jeito que muitos resistem em tomar a fluoxetina visto que poderão passar mal por alguns dias até se acostumarem com as doses, ou em tomar a vermelhinha para aderir ao combate à ilusão da Matriz e em prol da libertação da humanidade visto que terão que abandonar uma vida - ainda que ilusória - inteira, poucos aceitarão o abandono dos velhos paradigmas e padrões confortáveis da vida apoiada no mal. E resistirão para continuarem na sua vida conformada e estabilizada nesse apoio nocivo. É aí que surgem os reacionários. Querendo a todo custo evitar as turbulências de uma vida privada de prazeres insustentáveis, reagem contra o tratamento, proferindo desqualificações aos remédios ou mesmo contra aqueles que os oferecem - exemplo dos carnívoros inveterados que se arrepiam só de ouvir a palavra “vegetarianismo” e dos “securas” em refrigerante que sempre reservam descrédito aos médicos e nutricionistas que avisam sobre o mal dessas bebidas industrializadas. É do mesmo jeito que alguns portadores de depressão ou outros problemas psicóticos tentam criticar a indicação de fluoxetina por ser muito pesada, dizendo que ela não é adequada para o tratamento, e que pessoas comuns, frente a zionianos (habitantes de Zion que estão arquitetando a luta contra a dominação pelas máquinas) em visita à Matriz, chamariam estes de loucos, desmiolados, lunáticos e vários outros adjetivos desagradáveis que atribuíssem à sua visão de mundo o caráter de loucura. No caso do reacionarismo, não há muita semelhança entre a reação à conscientização e à obrigatoriedade médica do uso da fluoxetina, mas há muita semelhança com a negação aditivada da pílula vermelha (aditivada com argumentos de desqualificação). Essas reações adversas pelas pessoas, toda via, não são motivos de desistência pelos conscientizadores, pelo contrário. Melhora-se a robustez da forma de conscientizar e, por tabela, sua eficácia, havendo probabilidades cada vez maiores de os reacionários serem vencidos e, em muitos casos, começarem uma “tontura” de consciência comparada à causada pelo medicamento.

Assim como a fluoxetina e a pílula vermelha, a conscientização em prol de mudanças radicais tem implicações adversas iniciais na vida da pessoa a ser atingida. Todo aquele conscientizador também já passou por esses efeitos colaterais e superou todos em pouco tempo. Seja as incoerências e absurdos das religiões ou o pesado mal contido no consumo de produtos de origem animal ou o mal dos refrigerantes, todas inspiram forte reacionarismo e recusa no entendimento da explicação conscientizante. Não devemos parar nossa evolução nas complicações que ela pode trazer em questões paradigmáticas (ou medicinais, como o caso do remédio) nem devemos nos deixar abalar pelas recusas iniciais de compreensão e vivenciamento das idéias que mudam a visão de mundo e de tratamento ético dos seres vivos. Ao contrário do tratamento medicinal, em cujas pesquisas a fluoxetina poderá ser substituída por outro princípio ativo com efeitos colaterais menores ou nulos, o tratamento por conscientização dificilmente terá jeito de ter suas implicações inicialmente estonteantes minoradas. É aí que devemos incutir na educação do ser humano que evolução implica privações de prazeres nocivos e de ilusões-muleta, mesmo que tragam dificuldades iniciais de adaptação. Assim como é na questão da Matriz e da pílula vermelha. E também precisamos aceitar que haja etapas intermediárias na mudança - como deixar uma muleta sofisticada para passar a usar uma bengala simples no caminho da emancipação corporal - mas não deixar que haja acomodação nessas etapas.
Autor: Robson Fernando


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