COMO A ALFABETIZAÇÃO CARENCIAL AFETA A LEITURA



Comentarei um caso de dislexia em sala de aula, relatado por uma mãe de uma criança de 9 anos. O objetivo deste artigo é apontar a alfabetização carencial como uma das causas mais comuns de dificuldade específica em leitura e que exige da escola e dos próprios pais uma intervenção eficiente na idade ideal de aquisição leitora por parte dos educandos.
A mãe me relata o seguinte: “Tenho notado que meu filho de 9 anos, atualmente, cursando a 3ª série, apresenta dificuldade de leitura e tende a trocar letras como "b e d" e se confunde com o som de sílabas como "se e es", o que, segundo seu artigo, enquadra-se em um caso de dislexia pedagógica”.
O primeiro ponto a considerar é a idade-série da criança e, para tanto, tomarei como escala de referência o atual continuum da faixa etária ideal do ensino fundamental, previsto na Lei de Diretrizes Nacionais da Educação Nacional(LDB) e legislação educacional correlata. Aos 6 anos, a Lei diz que o aluno deve ingressar no ano inicial do ensino fundamental e, aos 14 anos de idade, concluir esta etapa da educação básica. Aos 9 anos de idade, portanto, o aluno deve estar na terceira série ou no quarto ano do ensino fundamental. Levando-se em conta este parâmetro nacional, observamos que a criança acima referida está na faixa etária ideal, o que já descarta o atraso escolar.
Mesmo sem o atraso escolar ou distorção idade-série é importante considerar um segundo ponto na análise do caso. Refiro-me à aquisição e ao desenvolvimento da habilidades lingüísticas básicas e instrumentais do ensino como leitura, escrita, fala e ortografia, necessárias para o desenvolvimento da capacidade de aprender e de aprendizagem, fins últimos do ensino fundamental.
A mãe afirma que a criança apresenta dificuldade em leitura, o que nos leva a supor dificuldade no reconhecimento das palavras. Em geral, o não reconhecimento da palavra, sobretudo na leitura em voz alta, decorre da falta de consciência fonológica, o que pode ser comprovado quando a mãe afirma haver, no déficit de leitura da criança, a troca ou permuta de fonemas /b/ e /d/, ambos oclusivos, e confusão na pronunciação de sílaba.
A troca de fonemas, no decorrer de leitura, decorre da falta de consciência fonológica. O déficit de consciência dos sons da fala afeta a leitura mas não necessariamente a fala, ou seja, uma criança pode não saber soletrar, decodificar, transformar letras em sons da fala, nomear as letras, separar ou apagar fonemas em uma palavra, déficits que tem implicações significativas na fluência leitora, mas nenhuma dessas deficiência poderá afetar a habilidade da fala.
A consciência fonológica deve ser trabalhada na fase de educação leitora, em que a criança aprende a ler com o objetivo de ler para aprender. Se a alfabetização é carencial, deficiente, a criança terá dificuldade de fazer o reconhecimento adequado das letras do alfabeto e das notações léxicas (til, cedilha, acentos agudo, grave etc) como representantes, no campo da escrita, dos sons da fala.
Sem o entendimento de que as letras representam os fonemas da língua materna (vogais, semivogais e consoantes) não há consciência fonológica, habilidade imprescindível à leitura acurada, uma consciência que, se apreendida, evitaria a leitura com hesitações na soletração ou dificuldade na transformação das palavras escrita em sons da fala.
A intuição da mãe de que a deficiência leitora da criança tem suas raízes na alfabetização deficitária pode ser observada quando diz que “ o processo de alfabetização do meu filho foi deficiente, pois ele não chegou a cursar o pré-primário, passou do 2º período pré-escolar diretamente para a 1ª série do ensino fundamental. Embora ele não tenha dificuldade
de compreensão e entendimento, apresenta uma leitura difícil e lenta, muitas vezes se perde durante a leitura de uma frase, como se apresentasse uma distração na hora de ler”.
Quanto a essa observação da mãe, importante é assinalar que a alfabetização em leitura não pode ser vista pela escola ou pelo pais apenas como um momento dentro da educação infantil, especialmente a pré-escola, que vai dos quatro aos cinco anos de idade. Também não menos importante afirmar que a educação infantil não é pré-requisito para o ingresso no ensino fundamental. A alfabetização em leitura pode começar na pré-escolar, mas seu lugar, enquanto ensino sistemático, deve ser o primeiro ciclo do ensino fundamental, isto é, do 1º ao 5º ano, ou, como se classificava anteriormente, da 1ª série à 4ª série do ensino fundamental.
Aos 9 anos, se a criança comete erros fonológicos, como a troca de fonemas na leitura ou a troca de letras na escrita ortográfica, é um forte indício que a consciência fonológica não está sistematicamente trabalha, o que poderá acarretar, no segundo ciclo do ensino fundamental, dificuldades progressivas na aprendizagem das práticas de leitura de textos e das práticas de produção de textos bem como das demais disciplinas do currículo escolar.

Vicente Martins, palestrante, é professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú(UVA), em Sobral, Estado do Ceará, dedica-se entusiasticamente às dificuldades de aprendizagem relacionadas com a leitura(dislexia), escrita(disgrafia) e ortografia(disortografia). E-mail: [email protected].
Autor: Vicente Martins


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