Não vamos matar ninguém!



(Artigo de resposta ao texto intitulado “Vamos matar o porquinho”, de Prof. Márcio Adriano Moraes - http://www.onorte.net/noticias.php?id=20346)

O artigo do Sr. Márcio mostra como uma religião pode legitimar a arrogância de superioridade e senhorio humanos sobre as demais formas de vida senciente e fundamentar atos muito cruéis do ser humano contra outros animais. Com riqueza de detalhes, defendeu através de suas crenças e normas católicas que os humanos podem impor um domínio despótico e cruel sobre os bichos de modo a utilizar os corpos deles para seus mais variados anseios.

É notável como as religiões abraâmicas – cristianismo, islamismo e judaísmo, religiões que incluem o profeta Abraão em suas mitologias – vêm sendo eficientemente utilizadas na reafirmação reacionária, por parte de muitos, de valores que insistem em negar respeito e reconhecimento aos direitos e valores intrínsecos dos bichos não-humanos.

Convém analisar as partes do artigo dele e escancarar a desgrenhada (a)moralidade – que o próprio professor confessou – da religião católica no que concerne ao tratamento histórico de seres não-humanos e humanos.

Em primeiro lugar, embora o articulista tenha tentado renegar os valores abraâmicos de “animais impuros”, me vejo na obrigação moral de comentar e rechaçar aqueles fatores que ainda hoje se fazem entraves para o proporcionamento de respeito e estima aos bichos de determinadas espécies.

Olhando-se para o passado, quando as tribos hebraicas e árabes adotaram o critério da “impureza de espécie” para se proteger das doenças trazidas pela carne de porco, tais como teníase e cisticercose, pela interdição de seu uso(!) pecuário, podemos até entender o motivo de terem “imundificado” os porcos e outras espécies.

Com um olhar mais abrangente, no entanto, podemos ver que essa “impureza” é atribuída não só por interditar-lhes a carne, como também por lhes tornar espécies “imundas”, desprovidas de dignidade intrínseca, que não deveriam ser nem citadas pela fala, tal como estamos vendo em alguns noticiários sobre muçulmanos que não querem que falem de “gripe suína” só porque a expressão alude a porcos. É uma das razões fundamentais por que essas religiões são inimigas potenciais dos Direitos Animais exceto quando determinadas denominações adulteram ou suavizam esse seu caráter pernicioso.

No segundo parágrafo do artigo de Márcio, ele tenta jogar a baixaria da impureza suína na contextualização temporal do Velho Testamento, ainda assim atribuindo a este o caráter de divinamente inspirado. Pergunto: e quanto ao sangrento capítulo 31 de Números? E o fato de haver em Deuteronômio 28 cerca de cinquenta versículos com ameaças de maldições divinas a quem não for fiel a Javé, contra apenas treze versículos que prometem bênçãos aos fiéis? E as diversas alusões a genocídios e assassinatos de crianças de peito? São inspirações divinas também?

É de se questionar também: e os Salmos que tanto consolam crentes hoje? E as supostas profecias que teriam antecipado fatos da vida de Jesus? Também eram questões meramente temporais e contextualizadas?

O terceiro parágrafo do texto rechaça as motivações religiosas do vegetarianismo, afirmando que Jesus teria autorizado o consumo de qualquer alimento. Pergunto então: quer dizer que Jesus é/era cego a todo o sofrimento que é envolvido na pecuária, no abate dos animais “comestíveis”, na asfixia que peixes sofrem depois da pesca? Que messias era esse, tão insensível perante indescritíveis formas de agonia e com os mais cruéis métodos de assassinato pastoril de animais, tais como golpes no crânio e degola?

É visível que Jesus não tinha nenhuma compaixão para com animais não-humanos. Sua vinda à Terra não lhes trouxe nenhum benefício, nenhuma bonança, nenhuma perspectiva de moralização das relações dos humanos com eles. Bem pelo contrário, como podemos perceber de pessoas como o professor Márcio. É de se pensar: a verdade é que temos hoje pessoas mais santas e compassivas que o Jesus descrito pela Bíblia.

Respondendo agora ao quarto parágrafo do texto que faz apologia ao assassinato do porquinho da ficção, concordo que temos que respeitar quem não compartilha dos hábitos alimentares vegetarianos. Mas digo que devemos prestar respeito não porque homens – propriamente ditos, não no sentido machista de chamar seres humanos em geral de “homens” – disseram que é mais moral, mas sim porque a paciência é uma virtude imprescindível no ato de conscientizar. Devemos transmitir os valores do respeito aos animais das formas mais pertinentes e menos invasivas possíveis, e para isso ser paciente e tolerante e não criticar nem condenar as pessoas pelo que comem são requisitos importantíssimos.

A parte final, a maior e mais decisiva do artigo que está sendo criticado e replicado aqui, expõe o lado mais nojento e escandaloso do especismo religioso. Primeiro percebemos o especismo bíblico de restringir o mandamento “Não matarás” apenas aos humanos – detalhe que pode ser compreendido como conveniente perante um contexto histórico que tornava o vegetarianismo inviável e a pecuária necessária na região do Levante, mas cuja imutabilidade, vide a pretensa perfeição da palavra de Javé, torna-se problemática em tempos de sustentabilidade nutricional vegetariana e ascensão da luta pela libertação animal.

Em seguida, um trecho dá uma pista de como o cristianismo incita o senhorio humano sobre os demais animais: “Quanto aos animais, Deus permite ao homem administrá-los e também utilizá-los para alimentação. Ora, não foi essa uma das primeiras ordens de Deus ao homem? Cuidar de toda a sua criação? (cf. Gn. 1, 28ss).” Não é demais pensar que esse versículo é a base (i)moral da consideração dos bichos não-humanos como inferiores e de tantos consequentes crimes bioéticos cometidos pelo ser humano nas regiões do planeta dominadas por tal religião.

Logo em diante, a Igreja Católica faz-se descrita como guardiã do especismo, da dominação despótica e cruel dos animais não-humanos pelos humanos, de sua arrogância de superioridade, do não-reconhecimento dos Direitos Animais e do valor intrínseco dos não-humanos, pelo que estabelece no parágrafo 2417 do Catecismo da Igreja Católica (CIC):

“Deus confiou os animais à administração daquele que criou à sua imagem. É, portanto, legítimo servir-se dos animais para a alimentação e a confecção das vestes. Podem ser domesticados, para ajudar o homem em seus trabalhos e lazeres. Os experimentos médicos e científicos em animais são práticas moralmente admissíveis, se permanecerem dentro dos limites razoáveis e contribuírem para curar ou salvar vidas humanas.” (CIC, §2417) Sinceramente não é uma conduta moral inesperada para quem não respeita nem mesmo a dignidade dos próprios seres humanos.

Para quem impôs as mais variadas brutalidades ao longo da História, como a destruição de milhares de culturas ao redor do planeta, as guerras cruzadas medievais, a tortura e assassinato de milhões de pessoas na Inquisição, a legitimação sacra da escravização de africanos, a aliança com governos totalitários de extrema-direita no século 20, o silêncio perante as milhões de mortes humanas no Holocausto das décadas de 30 e 40 etc., impor a dominação humana e a prerrogativa de, com fins utilitários, explorar, abusar, torturar e matar livremente outros animais, mesmo pelas piores e mais cruentas formas possíveis, é “fichinha” para essa instituição.

Para uma entidade que excomunga as vítimas de estupros e as pessoas que as salvaram em vez dos criminosos, insiste em censurar os direitos homossexuais e o laicismo e trava lamentáveis batalhas pelo atravancamento da ciência e pela limitação da liberdade individual, autorizar a exploração animal foi muito normal.

Outro trecho chama a atenção pela hipocrisia católica: “É claro que de modo algum, a Igreja aceitaria os atos de violência contra animais, pois isso seria um afronto à criação divina: ‘É contrário à dignidade humana fazer os animais sofrerem inutilmente e desperdiçar suas vidas’ (CIC, §2418).“

Meu caro, a (suposta) dignidade humana já foi comprometida desde a escrita do parágrafo 2417. Como podemos considerar dignos os que advogam em favor da desigualdade de valor intrínseco entre os animais, os que torturam bois em touradas, rodeios e vaquejadas, os que violam e dilaceram os corpos de cobaias, ratos, cães, chimpanzés etc. em experimentos científicos, os que espancam e esfolam martas, raposas, chinchilas, jacarés, pandas etc. para obtenção de peles e os pecuaristas que ganham imensas quantias de dinheiro com a matança de bilhões de seres sencientes por ano?

E outra, fazê-los sofrerem inutilmente é transgressão. E fazê-los sofrerem “utilmente”?

O texto do professor católico caminha ao seu final com mais uma declaração muito lamentável: a diferenciação entre o valor humano e o não-humano e a reiteração do especismo. Devemos SIM tratar outras espécies animais com a mesma dignidade que nós mesmos(as). Nós humanos somos SIM animais.

Quando o parágrafo 2418 do CIC fala que “é igualmente indigno gastar com eles o que deveria prioritariamente aliviar a miséria dos homens. Pode-se amar os animais, porém não se deve orientar para eles o afeto devido exclusivamente às pessoas”, surge em mim a obrigação de negar esse absurdo. Indigno sim é escrever tantas linhas defendendo que outros animais são inferiores a nós, que não merecem o mesmo respeito, o mesmo carinho, os mesmos direitos à vida e à liberdade, que só têm direito a um amor inferior, que certo nível de afeto não lhes é merecido.

Ao professor Márcio e à sua Igreja especista, declaro que os bichos que eu criar num futuro próximo – por adoção ou resgate da rua, releve-se – serão tão amados quanto meus futuros filhos biológicos. Às vezes imagino que os bichos, quando não são iguais a nós em dignidade e vida, são até superiores, uma vez que são incondicionalmente fiéis e amorosos a nós, não nos traem, não manifestam preconceito, não maltratam outros animais conscientemente, não destroem seu habitat de forma desvairada e são dotados de muitas outras qualidades intrínsecas que demandariam mais milhares de palavras para descrevê-las.

Para terminar de comentar o texto, apoio o garotinho da historinha quando ele não quer comer carne de porco e prefere ver o bichinho vivo. E ainda lhe digo que os motivos de se prezar pela vida dele vão muito além de considerar maldade matá-lo e achar que sua carne cadavérica é nojenta, pegajosa.

Agradeço ao professor que escreveu tal artigo especista por ter revelado um podre que eu ainda não conhecia da Igreja Católica: que o ato dela de menosprezar a vida animal não-humana é formal, institucional e fundamentado num de seus códigos de conduta. Isso me faz ter ainda mais repúdio e desprezo por essa entidade que, por que não, poderia ser descrita como a máfia mais antiga do mundo por tantas maldades praticadas.

Concluí que o catolicismo, com suas regras de catecismo seguidas fielmente, é incompatível com a defesa dos Direitos Animais ou, no mínimo, não encoraja nem mesmo as formas mínimas de vegetarianismo por não ter sua moralidade equiparada ao ato de comer sem o custo da exploração e do sofrimento. Fica a recomendação, ainda que difícil de ser seguida, que os devotos de santos e de Maria abandonem a submissão a essa religião ou ao menos cultivem em suas vidas a moral paralela de respeitar todas as formas não-patológicas de vida animal, mesmo que seu deus ignore como essa atitude é boa.
Autor: Robson Fernando


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