A EDUCAÇÃO EM VALORES COMO UM MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO PEDAGÓGICA



A EDUCAÇÃO EM VALORES COMO UM MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO PEDAGÓGICA

Maria Alba Guedes Machado Mello


INTRODUÇÃO

Os valores, a ética e a moral são temas sempre recorrentes entre filósofos, cientistas políticos e também entre pessoas comuns. Em todos os momentos de mudança de paradigmas, a questão ética sempre emerge com força na pauta de discussão em todos os âmbitos da convivência humana. A Ética faz parte de um campo de estudos filosóficos (axiologia), cuja teoria é a Moral, mas apela ao campo político e histórico porque fundamenta o sentido da vida e o entendimento do mundo, além de ser a referência para elaboração de leis em todas as sociedades humanas.
Na história da humanidade, dois marcos são paradigmáticos: primeiro quando a Filosofia desbancou o logos mítico, na Grécia Antiga (séculos VI e V a.C.), na forma de entender e interpretar o mundo e o sentido da vida; apesar dos filósofos pré-socráticos terem sido os responsáveis pela fundação da Filosofia, foi Platão, com a criação da Academia, quem estabeleceu o estudo sistemático da Filosofia e lhe deu implicações políticas. E, segundo, na Modernidade, quando a narrativa científica substituiu a teológica.
O conceito de indivíduo, dotado de subjetividade e autonomia, aportado pelos três grandes acontecimentos que inauguram a Modernidade (Reforma Protestante, Iluminismo e Revolução Francesa), consolidou-se com as proposições filosóficas de Descartes, Locke e Rousseau, e as da Psicologia, com Freud.
Entretanto, tais paradigmas da Modernidade, também entraram em crise, o chamado mal estar da civilização. Taylor (1994) aponta três elementos explicativos para a crise da Modernidade: a fragmentação / atomização do sujeito moderno, como conseqüência do seu exacerbado individualismo; o desencantamento do mundo, que significa a perda do sentido da vida, conforme demonstrou Nietzsche no conjunto de sua obra; e a chamada “jaula de ferro”, que é a interpretação sociológica de Max Weber do mundo moderno, na qual explica como a estrutura social aprisiona e submete o indivíduo.
A Filosofia contemporânea, no processo de discussão da crise da Modernidade, apresenta diferentes caminhos para a reconstituição de valores éticos que possam garantir uma convivência democrática e de respeito à dignidade humana. A primeira corrente de pensamento (universalista) segue a tradição kantiana que afirma o princípio da Justiça; a segunda (comunitarista) de tradição neoaristotélica, propõe o princípio do Bem como valor a ser conquistado, concebido conforme cada povo e cultura.
A terceira corrente filosófica da escola da Ética discursiva tem como principal teórico Jürgen Habermas. Suas proposições buscam preservar o legado do Iluminismo — que são os valores da Liberdade, Autonomia, Solidariedade, Justiça e necessidade de Legitimação—, propondo que os valores éticos universais sejam estabelecidos com base no diálogo celebrado por todos os afetados e em condições de simetria. Por estabelecer como norma básica para definição de valores éticos, um procedimento (Diálogo) e não um princípio (Justiça ou Bem) essa escola filosófica é também chamada de procedimentalista (CORTINA, 1996).
Em termos políticos, o marco ético da sociedade contemporânea é a instituição da Organização das Nações Unidas – ONU. Quando foi constituía a ONU, após as duas grandes Guerras Mundiais, sua preocupação com a paz mundial redefiniu a base ética das relações entre as Nações. Como resultado, foi elaborada, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, o principal código de ética do século XX e que é, ainda hoje, a maior referência dos princípios éticos norteadores da conduta humana.
A DUDH introduz, no processo civilizatório da humanidade, o ideal de universalidade dos direitos humanos e, com isso, institui o “cidadão do mundo” . A DUDH foi e permanece como base dos documentos e tratados internacionais de direitos humanos mais importantes, como os tratados pela eliminação da discriminação racial (1965), pelos direitos da mulher (1979), contra a tortura (1984) e pelos direitos da criança (1989).
Atualmente vivemos a globalização econômica, a revolução tecnológica nos meios de comunicação e o aumento das imigrações de populações dos países pobres para os países ricos, fenômenos que deram uma maior visibilidade à diversidade cultural existente no planeta; outra grande resultante desses processos é a escassez dos recursos naturais, antes em abundância na Terra. Tais fenômenos trouxeram consigo conflitos e disputas políticas que colocam novamente em questão o problema da convivência humana ante a diversidade de culturas e também na relação com a Natureza.
Como uma resposta a esta situação, florescem movimentos sociais que assumem, cada vez, mais uma dimensão também global. São movimentos que, sem perderem de vista os fatores econômicos, vão mobilizando populações em torno de temas universais como a questão da discriminação, da mulher, da criança, do meio ambiente. Neste contexto, a defesa da democracia surge no sentido de ampliação da cidadania que ganha um novo estatuto: o direito a ser diferente, além da igualdade de tratamento.
Essa sociedade, democrática, plural e global, demanda uma educação que compreenda o indivíduo como intersubjetivo e sujeito histórico, portanto consciente. Mais que nunca, o indivíduo deverá ser entendido como uma persona moral e sua formação —essencialmente em valores— deverá abranger todas as suas dimensões: cognitivas, emocionais, volitivas e condutuais; deve dar conta das dimensões de consciência e juízo morais; autoconhecimento e autorregulação; sentimentos e emoções; hábitos e virtudes; empatia e perspectiva social; e abertura para um mundo de valores, no qual buscar o seu sentido de vida.
No âmbito da Educação, essa nova conformação vai-se refletir em um movimento de renovação pedagógica, pela educação ética, Educação Moral ou Educação em Valores.

AS DIFERENTES ABORDAGEM DA EDUCAÇÃO EM VALORES

Em verdade, não existe educação que não seja moral. Todo ato de educar implica moralidade e valores. O que distingue a Educação Moral na História da Educação é a intencionalidade com a qual é desenvolvida pelos mecanismos pedagógicos de ensino-aprendizagem nos ambientes educativos.
A Educação Moral, historicamente, dependeu da Filosofia. Foi no Mundo Antigo, momento de nascimento da Filosofia, que a ética e os valores morais foram constituídos, como tais. Ora mítico, ora filosófico, o pensamento educacional antigo teve como ideal de ser humano, o herói. O Bem era o sentido da vida e a Justiça a forma de viver o Bem.
No século IV d.C, Santo Agostinho transcendeu o Bem e a Justiça como princípios éticos e inaugurou uma nova moral: o amor a todos, inclusive aos inimigos. A conduta das pessoas deveria ser guiada por uma nova ética: ama e faz o que queiras. A educação, neste caso, deve conduzir à autodescoberta, ou seja, ao encontro com Deus que existe no interior de cada ser humano.
Na Modernidade, o principal marco é o pensamento pedagógico de Rousseau, fundador do naturalismo pedagógico, cuja base é a crença de que todo homem nasce naturalmente bom. Rousseau vê a educação como uma forma de preservar o estado natural da criança, pois acredita que a fonte da liberdade moral, é o coração de cada qual.
Também o próprio desenvolvimento das ciências humanas e sociais interviu no processo de fundamentação da Educação Moral; duas disciplinas, a Sociologia e a Psicologia, foram as que mais contribuíram para sua formulação. Entre as diferentes posições então existentes, destacam-se: uma, radicalmente sociológica (Durkheim), e outras duas de orientação psicológica (Piaget e Kohlberg).
Entendendo a moral como um fato social, Durkheim (1947) coloca como finalidade da Educação Moral, a satisfação dos interesses sociais. Propõe uma moral laica que rompa com os paradigmas religiosos predominantes e que seja inteiramente racional. Segundo ele, não basta descartar a religião, é preciso substituí-la e, nessa nova abordagem da moral, deve-se ter o devido cuidado de não empobrecê-la, ao contrário: a racionalização da moral deve enriquecê-la ainda mais.
Durkheim (1947) desenvolve a sua proposta de Educação Moral, para as escolas públicas, começando pela segunda infância, tendo em vista determinar uma conduta para todos, de forma que a convivência não seja governada pelo arbítrio individual. São três elementos básicos, da Educação Moral, propostos por Durkheim (1947): o espírito de disciplina, a adesão ao grupo social e a autonomia da vontade.
Como o campo da moral é o do dever e o dever é prescritivo, a primeira lição de Durkheim é o desenvolvimento do espírito de disciplina. O professor deve apresentar as normas da escola à criança e ajudá-la a cumpri-las, com regularidade e num processo de repetição que possa criar hábitos. Durkheim (1947) pensa que o ser humano, como um ser social, tem naturalmente uma tendência à socialização; portanto, a adesão ao grupo social, ao qual pertence, é quase um processo natural da criança.
A escola, como primeira sociedade que vincula a criança ao mundo, deve educar para a socialização. É esse vínculo que fundamentará, no futuro, as condutas solidárias e cívicas. À medida que adere a um grupo social, a criança vai compreendendo o sentido da autoridade e da obediência, sempre em proveito coletivo. Desses dois primeiros elementos, deriva o terceiro: a autonomia da vontade. Pensa Durkheim (1947) que a moral pode ser entendida de duas maneiras: ou como uma lei que deve ser obedecida sem contestação, ou como um ideal a ser atingido por toda a sociedade. É essa segunda abordagem que a escola deve adotar, pois só assim educará as crianças de forma que sua própria vontade, autônoma, seja os ideais coletivos.
Durkheim é o primeiro a propor uma Educação Moral, nas escolas, para a socialização. Tem o mérito de fazer da socialização um processo cuidadoso e sistemático e, sobretudo, laico. Entretanto, partindo de valores absolutos, esse paradigma reduz a Educação Moral a um simples processo de adaptação do indivíduo à sociedade.
Outras abordagens da Educação Moral buscaram flexibilizar a força impositiva do coletivo sobre o individual, colocada por Durkheim. Entre elas, vale referência a abordagem da Educação Moral como clarificação de valores, cujos teóricos mais destacados são Raths, Harmin e Simon, que trouxe, como conteúdo, o respeito à natureza histórica e cultural dos valores e a autonomia do sujeito. Porém, essa autonomia é individualista e eletiva, sem uma percepção social mais marcante. Induz mais a uma coexistência harmônica de valores diferenciados do que à necessidade de intercâmbio cultural. Os neoaristotélicos, entre os quais se destaca Peters, defenderam, no início do século, a Educação Moral como formação de hábitos virtuosos, cuja ênfase é a relação direta entre moral e hábitos, formas de ser e comportar-se. É um paradigma de concepção finalista e teológica que pré-determina os valores, portanto, absolutos, colocando os hábitos virtuosos, como objetivos a serem alcançados.
A Educação Moral como um processo de desenvolvimento é um paradigma calcado nas teorias cognitivistas de Dewey, Piaget e Kohlberg. Estabelece que a Educação Moral pode ser desenvolvida de forma consistente, através do processo de formação da capacidade de juízo moral e afirma claramente a autonomia do sujeito.
A teoria moral de Dewey estabelece a relação entre razão e sentimentos, e tem a motivação como peça-chave para o desenvolvimento do indivíduo, tanto moral como cognitivamente. Inspirado em Dewey, Piaget realizou uma pesquisa, estudando as formas como as crianças brincavam e compreendeu que o desenvolvimento moral era semelhante à aplicação das regras, quando brincam. Piaget concluiu que o desenvolvimento moral das crianças obedecia à sua estrutura cognitiva, inicialmente caracterizada pelo egocentrismo. As crianças têm, portanto, um primeiro estágio de desenvolvimento do raciocínio moral heterônomo, caracterizado por uma estrita adesão às regras, deveres e obediência à autoridade. Quando a obediência às regras se tornava problemática, elas agiam com base no sentido de reciprocidade. Para Piaget, essa habilidade proporciona a passagem do egocentrismo à adoção da perspectiva do respeito mútuo e o sentido de justiça, o que indica um desenvolvimento moral autônomo.
Baseado em Piaget, Kohlberg projetou o desenvolvimento moral como um processo natural e evolutivo, dependente do desenvolvimento cognitivo, e materializado em três níveis hierarquizados. O conflito é, para Kohlberg, a situação que coloca questionamentos entre várias opções morais e a situação educativa que melhor propicia a evolução do desenvolvimento moral.
No primeiro nível, o pré-convencional, os juízos morais da pessoa caracterizam-se por uma perspectiva individual. Este nível possui dois estágios: um primeiro, de orientação heterônoma, é caracterizado pelo egocentrismo e pela impossibilidade de levar em conta os pontos de vista alheios; e um segundo em que predomina o sentido de reciprocidade moral e as regras são seguidas somente quando se tem um interesse imediato.
No segundo nível, o convencional, tem-se um entendimento de que as normas e convenções sociais são necessárias para manter a ordem social, e também possui dois estágios: um (o 3º) em que predomina a perspectiva da comunidade local (ou família) e tem-se a capacidade de compartilhar sentimentos, acordos e expectativas que estão acima dos interesses individuais, embora sem considerar o sistema social em geral; o outro estágio (4º) está marcado pela perspectiva de “membro da sociedade” em que ser moral é seguir os deveres definidos pelas responsabilidades sociais. É necessário obedecer às regras, pois elas sustentam o sistema de leis que protegem a todos e cada um.
Finalmente, o nível pós-convencional que se caracteriza pelo raciocínio baseado em princípios, usando a perspectiva “acima da sociedade”. As razões individuais fundamentam-se nos princípios que marcam as regras e as normas, mas rejeitam a aplicação mecânica de uma lei ou de uma norma; os conflitos devem ser resolvidos com base nos princípios que garantem o contrato social. Este nível comporta ainda um outro estágio teórico (o 6º) e hipotético, no qual o indivíduo se conduz por princípios universais como a justiça e a igualdade dos direitos humanos, a exemplo de personalidades como Gandhi ou Luther King.
Em 1973, Kohlberg postulou a existência de um sétimo estágio, chamado religioso, que definiu como experiência contemplativa de tipo não-egoísta, cuja evidência empírica não se pode demonstrar.
A teoria de Kohlberg sofreu várias críticas, inclusive no âmbito de seus próprios colaboradores, entre os quais se destaca Guilligan, que considerou a teoria de Kohlberg parcial porque usava somente homens nos seus estudos. Escutando as experiências das mulheres, Guilligan (apud BUXARRAIS, 2004) chegou à conclusão de que a moralidade do cuidado pode ser usada no lugar da moralidade da justiça e dos direitos, exposta por Kohlberg. Sob o seu ponto de vista, o pensamento moral feminino caracterizar-se-ia, pela sensibilidade às necessidades dos demais, o que fundamenta a moralidade do cuidado e da responsabilidade. Essa seria uma premissa da não-violência, enquanto que a moralidade da justiça e dos direitos está baseada na igualdade. Guilligan propõe uma teoria sobre o desenvolvimento moral feminino, seguindo a estrutura da teoria de Kohlberg.
A crítica fundamental a estes paradigmas está na ausência (ou pouca ênfase) do intercâmbio e da natureza dialógica que deve ter a Educação Moral. É justamente na enfática afirmação do intercâmbio e do diálogo que se concentra a proposta da educação moral como construção da personalidade moral, de Puig (1998), para quem a Educação Moral é eminentemente prática, e requer a participação plena e ativa do aprendiz.
Apesar de fortemente marcada pelo procedimentalismo, a Educação Moral como construção da personalidade moral não considera o sujeito abstrato e desencarnado da sua identidade histórica. Se para as éticas procedimentalistas os procedimentos são simples instrumentos de reflexão e ação moral, para Puig (1998) os procedimentos apelam aos valores, pois estão orientados por um telos que aparece na linguagem e conduzem ao autoconhecimento e ampliação da consciência moral. Assim, se pode estabelecer um vínculo entre valores substantivos e procedimentais.
Os procedimentos têm, em verdade, um ethos democrático e estão voltados para valores substantivos como Justiça, Igualdade, Tolerância, que podem ser universalizados. Um exemplo histórico dessa possibilidade é o movimento feminista através do qual histórias pessoais e subjetivas foram enriquecidas e conjugadas, ganhando espaços públicos de discussão e intervenção social.
Dada por estabelecida a vinculação entre substância e procedimento, Puig (1998) elabora uma nova forma de educar moralmente que é tanto procedimental como substantiva. Pode-se dar em ambientes formais e informais, mas seu espaço privilegiado é a escola, onde se faz de forma sistemática.
Em termos substantivos a personalidade moral engloba valores como justiça, liberdade, igualdade, solidariedade, tolerância, respeito, empatia, compromisso, responsabilidade entre outros, que se constituem como guias da ação moral.
Estes guias de valor são entidades simbólicas que pautam as formas de vida de uma coletividade, medeiam a ação sociomoral dos indivíduos e plasmam a cultura moral das sociedades. Para Puig (1998), as idéias morais (conceitos, máximas, teorias éticas), as pautas normativas (costumes, tradições), as instituições sociais, os modelos que conformam a cultura de cada sociedade e as práticas individuais devem ser tratadas como guias, horizontes, muletas da abertura antropológica (o inacabamento humano) e, enfim, como reguladores da ação moral. Adverte entretanto que, como todo elemento cultural, estes guias estão submetidos a processos evolutivos de mudança.
Este é um dos pontos diferenciais da Educação Moral como construção da personalidade moral: enquanto os demais paradigmas absolutizam estes valores ou os rechaçam, atendo-se somente a procedimentos de clarificação, Puig (1998) os propõe como guias.
Em termos procedimentais, esse novo paradigma constitui-se da consciência moral autônoma e seus instrumentos de deliberação, condição imprescindível da moralidade, pois é quem tem o poder de estabelecer os seus critérios. A consciência moral autônoma é uma construção psicosocial, em que consciência é saber que sabe; moral é formulação de juízos de valor e autonomia é autodeterminação.
Puig (1998) compreende que essa consciência moral autônoma é um regulador social superior aos demais reguladores que possuímos —desde os mecanismos biológicos aos condicionamentos históricos e socioculturais— e que orientam a relação do indivíduo com o meio social.
Apoiando-se em Piaget, Kohlberg, Vygotsky e em Habermas, Puig (1998) conclui que a atual complexidade social em que vivemos acaba por estabelecer uma hierarquia entre os sistemas reguladores do ser humano, na qual a consciência moral autônoma assume —pelas suas próprias características— uma posição superior. Nas suas palavras:
Trata-se, pois, de um abandono da 'filosofia da consciência' em favor de um paradigma lingüístico e comunicativo, que entende a consciência moral autônoma como um âmbito constituído de maneira intersubjetiva e que opera por meio do diálogo (p.101).

A construção dessa consciência moral autônoma que fundamenta a personalidade moral, requer recursos procedimentais e instrumentos de deliberação, de modo que o sujeito possa enfrentar os problemas morais proporcionados pelos meios de experiência. Os procedimentos cognitivos e afetivos (conhecer, sentir, pensar, atuar) mais os guias de valor (elementos da cultura moral) são os recursos que a Educação Moral deve lançar mão para conduzir o educando a uma ação sociomoral.
Numa breve definição, esses recursos estão assim entendidos: juízo moral é a opinião do que deve ser, preferencialmente forjada a partir de uma argumentação moral que implique normas consensuadas; compreensão é a reflexão que parte do sentimento e se expressa no juízo; auto-regulação é a capacidade de autocontrole do sujeito. No processo de constituição dessa consciência moral autônoma, tais recursos atuam de forma sistêmica e simultânea e não há preponderância entre eles. O resultado do conjunto é mais importante que o resultado de cada parte. A intervenção educativa funciona, metaforicamente, como uma oficina onde tutores e aprendizes trabalham juntos na execução de uma tarefa —a construção da personalidade moral; o processo ensino-aprendizagem é o de uma participação guiada.
Os debates teóricos e as diversas experiências de Educação Moral têm como conseqüência, a assunção da Educação em Valores como política pública, particularmente no final do século XX. A OIE – Organização Internacional de Educação, por exemplo, fundada em 1925 e que teve Piaget como diretor durante 40 anos, desde 1934 publica Recomendações para a inclusão da Educação em Valores nas escolas públicas de todo o mundo. Entre as suas Diretrizes, a mais importante é a de 1972 —Politique, Législation et Administración Scolaires— que define como conteúdos para a Educação Moral os direitos fundamentais do ser humano (à vida, à honra, à moradia, à propriedade, à educação e à cultura); as liberdades individuais (de pensamento, de consciência, de opinião, de religião e de associação); a Paz como ideal e objetivo da humanidade. Esses conteúdos deveriam ter uma abordagem interdisciplinar presente em todo o currículo escolar (IBÁÑEZ, 1995).
Embora os organismos internacionais de educação venham discutindo e publicando documentos sobre a Educação em Valores desde a década de 1970, o marco de referência das atuais políticas públicas é a Conferência de Jomtien, em 1990, e o relatório da Unesco (Educação, um tesouro a descobrir), publicado pela primeira vez em 1996. Tais definições políticas desencadeiam uma série de Reformas Educacionais em diferentes países do mundo ocidental, com diferentes enfoques da Educação Moral, mas com uma base consensuada de valores em torno da Declaração Universal dos Direitos Humanos .
No Brasil, historicamente, a Educação Moral também sempre esteve em discussão. Os jesuítas, que foram os principais responsáveis pela Educação no Brasil nos tempos da Colônia e do Império, imprimiram sua moral religiosa. A República, marco da separação entre o Estado e a Igreja, inaugurou a discussão da educação laica, e teve no Catecismo Positivista sua primeira inspiração. Entretanto, os debates entre uma moral laica ou religiosa perduram e as reformas educativas brasileiras oscilaram entre o civismo e a religião. Foi na década de 1930 que os Pioneiros da Educação colocaram em debate a democracia e a cidadania como finalidade da Educação, e de uma Educação Moral, o que permanece em pauta até o momento atual.
As discussões mais recentes, sobre Educação em Valores no Brasil, foram incorporadas na LDB – Lei de Diretrizes e Bases (9.394/96) que entre os princípios e fins da educação nacional, definidos nos artigos 2º e 3º, apresentam a liberdade, os ideais de solidariedade humana, o pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, e o pleno desenvolvimento do educando para o exercício da cidadania. Mais especificamente no artigo 27, inciso I, determina que os conteúdos da Educação Básica observem “a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática”. Essa é uma das bases dos PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais que elegem uma abordagem transversal para temas de interesse social, tais como: Ética, Saúde, Orientação Sexual, Meio Ambiente, Trabalho e Consumo, e Pluralidade Cultural.
Segundo Adélia Portela (2000), na reunião do grupo EFA-9 , em Recife/PE, no ano de 2000, a avaliação da adoção, pelo Brasil, das recomendações de Jomtien (1990) registrou, entre outros avanços, os seguintes: a) o reordenamento legal da educação brasileira, com destaque para a LDB e a Lei 9.424/96 (do FUNDEF); b) o aumento significativo da taxa de escolarização; c) a redução do analfabetismo; d) a expansão do ensino fundamental e médio; e) o estabelecimento dos PCNs; e f) a implantação do sistema de informações.
Entretanto, educadoras brasileiras, a exemplo de Lins (2003), chamam a atenção para que as determinações da LDB e as diretrizes dos PCNs esqueceram de cuidar da formação inicial dos (as) professores (as) no que diz respeito à ética e aos novos valores. Acredita Lins (2003) que a educação ética e moral dos professores não deve se restringir às aulas de Filosofia, mas converter-se em formas de agir cotidiano. Neste sentido, propõe que sejam incluídas outras dimensões na formação inicial do (a) professor (a) —além da competência em conteúdos— como o autoconhecimento, a construção da liberdade (como ato de discernimento e adesão consciente), a formação moral, conforme a proposta grega de construção de virtudes.
Pesquisa mais recente, realizada por Cunha e Lordêlo (2003), em redes públicas e privadas de municípios baianos, percebe que a prática da Educação Moral nas escolas está muito mais relacionada ao ambiente sociomoral da escola que propriamente ao desenvolvimento moral do indivíduo. Há uma defasagem entre discurso (juízo moral) e prática (ação moral) e quando há um projeto mais específico de Educação Moral, os parâmetros de avaliação são muito exigentes; de uma forma geral, a idéia de um padrão de desenvolvimento moral, não contempla todas as variáveis da interação social. Entretanto,
É preciso repensar as relações internas e externas ao ambiente escolar [...] redefinir sua [da escola] área de atuação enquanto elemento socializador da criança. Ela não mais será a instituição onde se aprende apenas conteúdos formais [...] mas poderá ser um lugar de experiências significativas para a construção da personalidade moral, possibilitando vivências que instrumentalizem a criança para o conviver ético (p.378).

Existem ainda iniciativas próximas ao sistema oficial de ensino e que ora complementam a educação formal, ora se desenvolvem em paralelo. Luz (2000) apresenta uma experiência de educação pluricultural, “Minicomunidade Oba Biyri” cujo propósito é criar um novo pensamento educacional com base na episteme africano-brasileira que possui valores e linguagens diferenciados dos vigentes e que são capazes de fundamentar um nova proposta pedagógica. Para a autora, a democratização da educação no nosso país pluricultural não pode prescindir da diversidade de valores das etnias presentes na nossa população.
A experiência da Minicomunidade Oba Biyri foi desenvolvida na cidade de Salvador/BA, junto à comunidade do terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, durante um período de dez anos (1976-86). Com uma linguagem pedagógica própria do universo simbólico nagô, uma compreensão transdisciplinar de currículo e a arte (o sentido do estético e do lúdico) permeando as atividades pedagógicas, a proposta desenvolveu a construção da identidade de crianças e adolescentes adotando os valores da sua comunidade nagô.
No âmbito da formação de professores (as), Costa (2002) apresenta um programa proposto pela instituição Modus Faciendi, baseado no paradigma de desenvolvimento humano, que tem em vista a construção da autonomia, tomando os valores como base e a cooperação como meio. Os conteúdos da educação incorporam conhecimentos, valores, atitudes e habilidades, conforme a Conferência de Jomtien (1990) e estabelece como proposta pedagógica 12 degraus a serem galgados para a construção e desenvolvimento pessoal: identidade, auto-estima, autoconceito, autoconfiança, visão de futuro, querer ser, projeto de vida, sentido da vida, autodeterminação, resiliência , autorealização, plenitude humana.
Existem ainda, no Brasil, outras iniciativas de Educação em Valores fundamentadas em uma visão holística, registradas por Cardoso (1999), que incorporam a dimensão espiritual do ser humano, sem adotar posicionamentos em relação a credos religiosos. Entre essas, situam-se:
1. A abordagem antroposófica da educação, cuja pedagogia foi idealizada por Waldorf e tem como difusor no Brasil, Rudolf Lanz que fundou diversas escolas, particularmente em São Paulo. A Pedagogia Waldorf acredita no desenvolvimento natural do ser humano (por setênios) e a educação tem como finalidade possibilitar experiências positivas para que a criança considere o mundo bom. Proporciona a aproximação da criança com a Natureza, desenvolvendo a jardinagem e o desenho de formas. Dá destaque para a oralidade, para o raciocínio lógico-matemático e para exercícios corporais. A arte (artesanal e profissional) é o principal mecanismo de desenvolvimento de valores;
2. A Educação para a Paz , empreendimento da Fundação Universal da Paz (Unipaz), sediada em Brasília (DF), cujo ponto nuclear é a dimensão transcendente do ser humano; desenvolve a intuição e a criatividade, e tem a arte como principal recurso pedagógico;
3. Numa abordagem diversa, mas também fundamentada na visão holística, a filosofia univérsica de Humberto Rohden tem sido difundida no Brasil pelo Centro de Auto-realização, sediado em São Paulo, mas possui escolas em diversas capitais brasileiras, inclusive em Salvador/BA, que oferecem ensino regular. Define como finalidade da educação a manifestação da Alma, ou Eu Profundo, e para isso utiliza técnicas de relaxamento e meditação. A escola é, sobretudo, um espaço de convivência da fraternidade e do amor;
Há também o PEVH - Programa de Educação em Valores Humanos, difundido pela Fundação Peirópolis, sediada em São Paulo. Martinelli (1999) apresenta a sua Pedagogia do Amor, cujos valores estruturais são: Amor, Paz, Ação Correta (dharma); Não violência e Verdade que correspondem a dimensões da pessoa humana, quais sejam: psíquica, mental, física, espiritual e intelectual, respectivamente. Esse Programa considera que o autoconhecimento é o principal requisito para a prática dos valores fundamentais. O autoconhecimento é feito através de estágios evolutivos da consciência que são: compreensão (percepção multissensorial); poder interior (natural do potencial humano); complementaridade (partilhas, parcerias); harmonia (integração entre forças e fraquezas); paz (equilíbrio) e criação. O PEVH utiliza técnicas de harmonização, de narrativas de contos, de trabalhos manuais e de estudos.
Assim, podemos constatar que a Educação em Valores tem, atualmente, um amplo espectro de abordagens pedagógicas, seja no que diz respeito aos seus conteúdos, seja no que se refere às suas práticas de trabalho. Configura-se, portanto, como um movimento de renovação educativa que poderá dar à Educação e, por decorrência, às novas gerações, um outro conteúdo ético e moral, superior ao que temos hoje em dia.
No âmbito das redes públicas de ensino, a Educação em Valores tem pautado-se pelas temáticas transversais dos PCNs que foram reforçadas pela política de municipalização e pelas medidas de descentralização administrativa da gestão educacional. A democratização da educação e a formação para cidadania são o ethos da Educação em Valores oficializadas pelas diretrizes da política educacional que tem em vista formar em valores como a consciência social, a responsabilidade individual e coletiva, a cooperação e a solidariedade.
A experiência de São Sebastião do Passé situa-se neste âmbito da Educação em Valores considera a Democracia como finalidade principal da educação municipal.

O texto a seguir apresenta o papel das eleições de dirigentes escolares na formação da cidadania da comunidade escolar, no marco da discussão sobre a Democracia, particularmente na questão da participação popular, enquanto um elemento determinante desta ordem social. Preocupa-se especificamente com o grau de determinação que o processo de eleição dos gestores escolares exerce na garantia e/ou na consolidação de uma gestão democrática da educação, cujo fundamento está no exercício consciente da cidadania dos alunos, dos professores, dos funcionários e de pais e mães que formam a comunidade escolar.

REFERÊNCIAS

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Autor: Maria Alba Guedes Machado Mello


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Valores Na Escola