O Monstro Labiríntico Da Literatura: O Livro De Areia



O Monstro labiríntico da Literatura:O Livro de Areia

1- Um autor Antropófago

O mundo existe para acabar em livro

Mallarmé

Como classificar Borges? Um escritor argentino oulatino-americano? Não. Borges ultrapassou o limite do regional rumo ao universal, pertence à literatura, ao mundo das bibliotecas: o espaço por ele tão lembrado em sua obra. Deslocou-separa uma temática inerente desde Homero a James Joyce, abrindo diálogo com entes desse universo tão amplo: a literatura, a mestra de nuances. Comenta, em sua autobiografia, ter "...sempre chegado às coisas depois de ir aos livros". "Uma forma de felicidade é a leitura" .

Vale ressaltar as palavras deHaroldo de Campos, na Folha São Paulo de 15/06/1986 ,as quais diziam " que a existência da figura de Borges e de sua obra reduz ao absurdo a preposição de que um país subdesenvolvido só pode produzir literatura subdesenvolvida." Em síntese, Borgeselevou a literatura latino-americana a patamares universais.

Borges, na verdade,foi um escritor antropófago, ou seja, alimentou-se dos grandes escritores; suas leituras transparecerem no tecido de suas narrativas com o seu jeito ímpar de renová-las; Décio Pignatari diz que seu texto remete sempre a outros textos, e num labirinto de textos ele tentou enredar o mundo e a si mesmo. Evidencia-se isso no conto O livro de Areia cuja analogia com a literatura vai se erigindo desde o início; o amálgama da arte literária vem à baila, a mistura infinita do livro: um monstro labiríntico.

2- A metáfora da literatura

"A linha consta de um número infinito de pontos; o plano, de um número infinito de linhas; o volume, de um número infinito de linhas; o volume, de um número infinito de planos; o hipervolume, de um número infinito de volumes...."

O livro de Areia

Debruçar-se na leitura de O livro de areia(1975) é percorrer o universo labiríntico da literatura, perfilado pela sutileza narcísica da metalinguagem, isto é, na poética voltada para si mesma, deum escultor da palavra refletindo-se num espelho mágico. O plano da função metalingüística cruza o plano da função poética, levando a uma polifonia da estrutura, de modo intenso; aliás,a intensidade é uma constante desse arquétipo narrativo, desde as primeiras palavras até o final, consoante a Cortázar(2004):

"Um escritor argentino muito amigo do boxe me dizia que, no combate que se dá entre um texto apaixonante e seu leitor, o romance sempre ganha por pontos, ao passo que o conto precisa ganhar por nocaute. Isto é verdade, pois o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto um bom conto é incisivo, mordaz, sem quartel desde as primeiras frases."

É lícito dizer a maestria desse autor argentino afirma-se já no primeiro parágrafo, colocando sua narrativa como verdade, mas a verdade que ele enuncia é aquela verossimilhança interna, a capacidade ficcional, a coerência artística- tocante ao fazer literário. " Afirmar-severídica é agora uma convenção de qualquer narrativa fantástica ; só que a minha é verídica."

Borges com um projeto estético impar soube arquitetar matematicamente essa "máquina microscópica"- o conto. As premissas de Edgar A. Poe de Filosofia da Composição (1981), acerca desse arquétipo literário, vêm à tona na escritura borgeana: o efeito, a brevidade, a leitura em uma sentada.

Nessa vereda da metalinguagem, conjugada com análise à luz das teorias do conto, engendra-se a pedra de toque deste escrito: trazer à baila os procedimentos, o "modus operandi", que confeccionam essa narrativa breve, no entanto incisiva, tangente de múltiplos sentidos, usando as palavras de Borges, arenascer a todo o momento, a cada leitura e releitura: uma metáfora da literatura, porque condensa muitos elementos,e, segundo Pound(2005), "grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível."

...fechado, um livro é literal e geometricamente um volume, uma coisa entre outras. Quando o livro é aberto é aberto e se encontra com seu leitor, então ocorre o fato estético(...), pode-se afirmar também que cada releitura de um livro e cada lembrança dessa leitura renovam o texto. (Borges, "Sete Noites", 1983)

A priori, o contoO livro de areia é uma espécie de metáfora da literatura: um conjunto de analogias que trazemo pacto estético: o leitor diante do livro, tal qual um ritual. Como é uma narrativa condensada, o ambiente resulta da eliminação de apresentações, retratos, descrições; exibe-se apenas o acontecimento puro. O narrador-personagem compra um livro, o qual o deixa perplexo pelo caráter fantástico de nunca se repetir as páginas, por ser infinito. Torna-se imprescindívelnotarque ele compra de um vendedor de bíblia, um índice cujo sentido implica no valor sagrado do livro; as referências ao texto bíblico mostram-se veemente em toda narrativa. Isso ele transforma em relato, no conto, assumindo-se como escritor desde o início, o autor implícito, umespectro de Borges.

"Abrio-o ao acaso. Os caracteres eram-me estranhos. As páginas, que pareceram gastas e de pobre tipografia, estavam impressas em duas colunas, como um bíblia. O texto era apertado e estava ordenado em versículos. No ângulo superior das páginas havia algarismos arábicos. Chamou-me atenção que a página par trouxesse o número(digamos) 40.514 e a ímpar, a seguinte, 999. Virei-a; o dorso estava com oito algarismos.

Eé o infinito que dá o tom da narrativa, índice que leva à semelhança com a literatura, erigindo um estranhamento que deságua no fantástico, cuja função éexpressar uma visão mais profunda sobre a realidade. "Para Borges aliteratura Fantástica vale-se de ficções não para evadir-se da realidade, mas para expressar uma visão mais profunda da realidade." (1980). Semelhantemente, Todorov(1975) diz quea transgressãodas leis da natureza fazem com que tomemos consciência das coisas mais fortemente.

Disso surge um olhar mais profundo ao fato estético: o narrador-personagem vivenciando o prazer de ter o livro, maravilhando-se do seu poder. O efeito que se produz no narrador-personagem é o mesmo que se produz em quem ler o conto: o efeito do fantástico, pontuado pelo espanto e o estranhamento, algo que os retira do automatismo, da lógica,para a beleza recônditadas coisas. Cabe salientar que o efeito marca-se por uma intensidade que vai revelando o mistério do livro, ao passo queleitor concomitamente vai se espantando; o preâmbulo constitui-se na chegada do vendedor na casa do narrador-personagem, desencadeando a tensão do conto.

Apoiei a mão esquerda sobre a capa e abri com o dedo polegar quase pegado ao índice. Tudo foi inútil: sempre se interpunham várias folhas entre a capa e mão. Era com se brotassem do livro.

Ademais, faz-se necessário observar, à luz de Ricardo Piglia, que esse construto condensado- próximo à poesia, configura-se num novelo curto que se abre concomitantemente em dois fios, em duas histórias, intercalando-se: uma velada e outra indiciada de forma a estabelecer um labirinto narrativo, ou seja, a forma e o significado relacionam-se de modo intrínseco constituindo o signo de, icônico, (acepção Pierce), pois ocorre uma relação necessária entre a parte que expressa, formalmente, o conteúdo (=significante) e o conteúdo expressado (=significado). Com efeito,a primeira história (explícita)é a da compra do livro, o enredo; já segunda história (implícita) vem apenas indiciada por pequenas metáforas, as quais sugerem o universo da própria literatura. Um vínculo forte faz-se presente: o discurso de representação com o discurso representado, a enunciação com o enunciado. À guisa de exemplo, veja o excerto abaixo no qual se evidencia a semelhança indiciada das características do livro com a literatura:

(...) O número de páginas deste livro é exactamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última. Não sei por que estão numeradas desse modo arbitrário. Talvez para dar a entender que os termos de uma série infinita admitem qualquer número.

Destaca-se de maneira sugestiva a parataxe, a não hierarquização(Nenhuma é primeira; nenhuma, a última) visto que a literatura quebra com a visão subordinada sobre as coisas, criando um mundo coordenado. No que tange a esse aspecto, observa-se a percepção do narrador diante do livro de areia: "Senti que era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia a realidade".

Livro de Areia =Literatura

Areia não temquebra com a lógica

Princípio nemparatática, sem subordinação.

Fim .

Outro ponto salutar é oque indicia a belezado espetáculo da leitura, onde o leitor está no pedestal da criação, percebe que a cada leitura do livro vê algo distinto do que olhara ; é a experiência estética; o fantástico da leitura do arcabouço literário, lembrando a perspectiva de Rimbaud:"A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa remota terra incógnita, mas no próprio coração do imediato".

(...) examinei com uma lupa a lombada já gasta e as capas e rejeiteia possibilidade de algum artifício. Comprovei que as pequenas ilustraçõesdistavam duas milpáginas uma da outra. Fui-as anotando num registo alfabético , que não tardei a encher. Nunca se repetiram. De noite, nos escassos intervalos que concedia a insônia, sonha com o livro.

Esse espanto deduz-se numa co-existência, conforme Barthes, do livro com o narrador, ou seja, o texto literário (o livro)transmigra para dentro da vida da personagem, quando a escritura ( a escritura do outro) chega a escrever fragmentosde sua própria cotidianidade, de modo que ele tenta se livrar dele esquecendo-o numa biblioteca, mas o livro permanece em sua memória, não é à toa que ele engendra o conto.

Aparece nessa coexistência um matiz sugestivo: a relação do leitor com o texto literário, a confluência rica de trocas. Nessa via, no final conto surge outro índice que leva a essa relação, quando o narrador se sente transformado pelo livro monstruoso: " Declinava o verão, e compreendi que o livro era monstruoso. De nada me serviu considerar que não menos monstruoso era eu, que o apercebiacom olhos e o palpava com dez dedos com unhas." Daí surge um nuance da literatura a cicatriz que deixa no leitor e a percepção mais aguçada de sua condição.E é desse pacto que emana a poesia, porque Borges concebia que " a poesia não é os livros na biblioteca, os livros no laboratório mágico de Emerson. No encontro do leitor com o livrotemos a poesia – na descoberta do livro".Dessa forma,pode-se dizer que esse autor tão genial inventou uma poética da leitura.

3-A beleza do monstro

De tudo exposto ficou evidente a marca de Borges: seu artifício de confeccionar um conto que revelasse esse monstro que é o texto literário, cujacapacidade é de envolver com suas garras, de mudar a percepção sobre a realidade. Ademais, de tornar o leitor um "prisioneiro" do livro.

BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo, Perspectiva , 1977

BORGES, Jorge Luis(1975) . O livro de areia; tradução Lígia Morrone Averbuck. São Paulo: Globo, 2001.

CORTÁZAR, Júlio. Valise de Cronópio. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.

______________.Obra Crítica/2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

MONEGAL, Emir r. Monegal. Borges:Uma poética da leitura. São Paulo: Perspectiva, 1980.

JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo: Ed. Cultrix, s.d.

PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. São Paulo: Companhia das Letras, s.d.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.

JAKOBSON, Roman(1975) "Lingüística e Poética" em Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix.

POUND, Ezra(1934). ABC da Literatura. Editora Cultrix, São Paulo, 2005.


Autor: Vicente alves batista


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