A vida e o direito à vida, mesmo que em liberdade interrompida



INTRODUÇÃO:

O presente artigo tem o propósito de avaliar criticamente a situação do sistema carcerário brasileiro, sua correlação com o aumento da criminalidade, a indiferença social e estatal, e os aspectos jurídicos que permeiam o debate. Apontar a falta de políticas públicas sérias que visem solucionar o problema da segurança pública, além do desrespeito flagrante às garantias constitucionais e legais dos presidiários, também se insere nos objetivos deste trabalho. O assombroso aumento da população carcerária, que quase dobrou entre o período de 2000 a 2008, sem acompanhar o aumento nos investimentos nessa área, criou uma situação insuportável e inadmissível em qualquer país que pretenda o mínimo respeito aos Direito Humanos.

ASPECTOS GERAIS DO PROBLEMA:

O problema da violência no país tem chamado atenção de toda a sociedade para o tema segurança pública, que talvez nunca esteve tão em voga como atualmente. Os grandes centros urbanos perderam a exclusividade e a violência se arrastou pelo interior e chegou até o homem do campo. Apesar do maciço investimento feito pelos governos federal, estadual e municipal, não existe, nem nunca existiu, uma política pública de âmbito nacional coerente e séria para combater o problema. Para se ter idéia, só o Estado de São Paulo investiu no ano de 2008, 7,5 bilhões de reais em segurança pública. As eficiências das agências de polícias se fazem demonstrar por uma constatação inegável: os presídios estão lotados.
Apesar da evolução da legislação brasileira no aperfeiçoamento e ampliação da aplicação de penas alternativas ao cárcere, a população nos presídios só faz aumentar. Basicamente isso se deve a três motivos: endurecimento da legislação, especialmente com a edição da Lei dos Crimes Hediondos na década de 90; aumento da criminalidade; e o aparelhamento das polícias. Nossa população carcerária está chegando próximo a meio milhão de pessoas.
Os presídios brasileiros se transformaram em um depósito cruel de pessoas que, de uma forma ou de outra, se tornaram indesejadas no convívio social, ou pelo menos assim foram consideradas por algum magistrado. As condições de sobrevivência nesses locais se tornaram as piores possíveis. Em muitos presídios do país as celas são tão lotadas que os presos têm que revezarem para dormir, pois o chão é pouco para tantos corpos.
O descaso dos governos com essa situação é o reflexo do descaso social. A sociedade não se importa com o que acontece do lado de dentro dos muros dos presídios. Existe, inclusive, certo sentimento de vingança social que legitima a crueldade com aqueles que descumpriram o “contrato social”.
Ironicamente a função desempenhada pela pena privativa de liberdade é idealisticamente, a recuperação do detento, possibilitando seu retorno ao convívio social. Entretanto, todos sabem que as cadeias não recuperam. E pior, além de não recuperarem, acabam por inserir de uma vez por todas os detentos no mundo da criminalidade. Na verdade as cadeias se tornaram fábricas de criminosos. Por isso o sistema penitenciário é um sistema que se auto-alimenta, pois o próprio sistema produz seu material humano: o bandido.
É preciso mudar essa realidade se quisermos viver em uma sociedade segura, e a solução de todo problema se inicia pela conscientização social de sua existência. É preciso, portanto, que a sociedade veja a situação dos presídios como um problema que urge solução, e que faça a ligação causal desse problema com a criminalidade que toma conta das ruas. É preciso dizer também que o problema da violência é um problema social, e como tal demanda soluções de ordem social, e não individualista, de forma que ir morar em um condomínio de segurança máxima não o deixará imune ao problema, pois que isso é solução individual pra problema coletivo, ou seja, não soluciona nada.

ASPECTOS JURÍDICOS DO PROBLEMA:

Nossa Constituição elencou diversas disposições no seu artigo 5°, intitulado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, no caput do mencionado artigo que está inserido na primeira página de nossa Carta Suprema, pode ser observada a seguinte transcrição: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,...”
O que se nota nas primeiras palavras do referido artigo é que o legislador teve a sabedoria de nos igualar perante a lei e expressou uma situação taxativa para que essa referida igualdade fosse realmente uniforme, ou seja, sem distinção de qualquer natureza.
Surge então um questionamento com relação a essa igualdade, será que ela só é válida para o ser humano que esteja livre? E com relação àqueles que têm a sua liberdade restringida por conta de infração penal, estes, com exceção da respectiva punição, manterão seus direitos de igualdade com relação aos demais? Ou sofrerão uma sanção que jamais se finda dentro da própria pena pela quebra das normas pactuadas para o bem estar da sociedade, perdendo todos os demais direitos e a própria dignidade?
Após a perda da liberdade, o ser humano que cometeu algum delito, irá parar nos casos mais extremos, no sistema carcerário brasileiro, lá ele perderá além da liberdade, toda igualdade conferida aos homens livres da sociedade, será além de um prisioneiro que ficará sob a custódia do Estado punitivo, que comparece para sentenciar os membros da sociedade à perda da inviolabilidade, do direito à vida e a segurança, por não se lembrar este Tutor que o humano entregue a ele, ainda continua detentor de seu primordial direito natural que é a “vida”, um excluído, quase como se fosse um ser apartado que perde sua condição humana e passa a ser tratado como uma estatística.
Quando o Estado toma para si a responsabilidade e o dever de cuidar de pessoas, ele falha vergonhosamente, tendo em vista o modelo desrespeitoso que uma vida humana é tratada nesse sistema, mesmo, sendo bem claro, que as pessoas que escolheram o caminho do erro, também possuem o direito de serem tratados de forma justa, condizente com a sua origem humana, e não com a origem de suas más escolhas. É uma questão de princípios morais, questão de Tratados Internacionais de Direitos Humanos e acima de tudo uma questão filosófica, vez que a dignidade humana, segundo Maria Helena Diniz, “é o princípio moral de que o ser humano deve ser tratado como um fim e nunca como um meio”, frise-se bem que o ser humano não deve ser tolhido de sua liberdade e colocado num verdadeiro depósito de pessoas, para lá perecer e não cumprir com sua função no mundo, qual seja, aprender através do conhecimento e utilizar este conhecimento adquirido para evolução de seu discernimento.
A pessoa presa logicamente sofre restrições de alguns direitos fundamentais, tais como a liberdade de locomoção (artigo 5.º, inciso XV, da Constituição Federal), o livre exercício de qualquer profissão (artigo 5.º, inciso XIII, da Constituição Federal), a inviolabilidade domiciliar em relação à cela (artigo 5.º, inciso XI, da Constituição Federal); todavia ficam intactos inúmeros outros: direito à dignidade humana (artigo 1.º, inciso III, da Constituição Federal), direito à vida, segurança e propriedade (artigo 5.º, caput, da Constituição Federal), direito à integridade física e moral (artigo 5.º, incisos III, V, X e LXIV, da Constituição Federal).
A tendência constitucional contemporânea sabe-se, que é a de conferir especial relevo aos direitos humanos, concebidos como fundamentais e indissociáveis da plena realização da pessoa humana. Essa escala de valores adotada pelas Cartas Constitucionais coloca o ser humano como figura central; daí por que a limitação de direitos do indivíduo deve estar reservada a situações específicas. Não pode, todavia, essa limitação atingir, afetar, violar a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental a nortear todo o sistema constitucional brasileiro.
Assim, embora preso, o indivíduo deve ter respeitada a sua integridade física e moral, bem como a sua dignidade. Luiz Vicente Cernicchiaro e Paulo José da Costa Junior acentuam que “o conceito e o processo de execução, de modo algum, podem arranhar a dignidade do homem, garantida contra qualquer ofensa física ou moral. Lei que contrariasse esse estado, indiscutivelmente seria inconstitucional”.
Importante papel, nesse sentido, está reservado ao Estado. Cândido Furtado Maia Neto adverte: “Um Estado somente é democrático quando as autoridades públicas constituídas (legisladores, polícia, promotores de justiça, juízes de direito e servidores penitenciários), que protagonizam o sistema de administração de justiça, aplicar o Direito Penal-Penitenciário resguardando os princípios gerais de Direitos Humanos do processado e do condenado preso”.
Entretanto, não há dúvida de que cabe ao Poder Judiciário, principalmente, o papel de garantidor dos direitos e liberdades fundamentais, especialmente das pessoas condenadas e presas. Assim Celso Luiz Limongi assevera: “No Estado Democrático de Direito, portanto, com a divisão dos Poderes, cumpre principalmente ao Poder Judiciário ser o garante, o instrumento principal de defesa da cidadania e dos direitos humanos fundamentais, contra o arbítrio dos Poderes Executivo, Legislativo e do próprio Judiciário. É o Judiciário o bastião moral e legal que protege o indivíduo contra o arbítrio do Estado. E os juízes precisam estar bem ciosos dessa grave responsabilidade”.
Nesse sentido, ainda, as precisas observações de Alberto Silva Franco: “Urge que o juiz, além do normal exercício da jurisdição penal, faça valer, efetivamente, os direitos fundamentais e garantias constitucionais do cidadão, no campo penal e processual penal, todas as vezes que tais direitos ou garantias suportem ou estejam em vias de suportar algum tipo de lesão. Urge, ainda, que o Juiz Penal tome consciência de que, além da jurisdição penal, exerce também a jurisdição constitucional das liberdades e que, por isso, não pode compactuar com nenhum agravo à Constituição Federal”.
As violações aos direitos humanos ocorrem em profusão, existindo uma profunda e triste discrepância entre os ditames legais, os escritos doutrinários e a realidade.
Com efeito, a superpopulação carcerária, a falta de condições mínimas de higiene, segurança e saúde, além de violações sexuais às quais estão os presos sujeitos, sem contar a violência a que estão expostos, tanto por parte dos funcionários como de outros presos, é uma realidade corrente no país e faz com que os indivíduos cumpram pena em condições degradantes, indignas, desumanas, configurando uma das mais sérias violações aos direitos humanos. Diante dessa triste realidade, cumpre às autoridades concretizar aquilo que o texto constitucional, os diplomas internacionais e a Lei de Execução Penal determinam o que é um enorme desafio a ser vencido.
No Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) encontraram algumas regras que traduzem direitos das pessoas presas. Desta forma, o Pacto dispõe em seu artigo 7.º: “Ninguém poderá ser submetido à tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”. Em seguida, em seu artigo 9.º, temos: “Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais. Ninguém poderá ser preso ou encarcerado arbitrariamente. Ninguém poderá ser privado de sua liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos”.
Ainda nesse Pacto, em seu artigo 10, encontramos outras disposições atinentes ao tema. No item 1° está disposto: “Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana”. No item 2°, encontramos: “As pessoas processadas deverão ser separadas, salvo em circunstâncias excepcionais, das pessoas condenadas e receber tratamento distinto, condizente com sua condição de pessoas não condenadas”. No item 2°b, por sua vez: “As pessoas jovens processadas deverão ser separadas das adultas e julgadas o mais rápido possível”. Finalmente, no item 3°: “O regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e reabilitação moral dos prisioneiros. Os delinqüentes juvenis deverão ser separados dos adultos e receber tratamento condizente com sua idade e condição jurídica”.
Na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, encontra-se disposições similares. Confira-se o artigo 5.º, “in verbis”:
“Artigo 5.º – Direito à integridade pessoal
1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.
2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.
3. A pena não pode passar da pessoa do delinqüente.
4. Os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e devem ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas.
5. Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento.
6. “As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados.”
Além dessas disposições, a Organização das Nações Unidas prevê regras mínimas para o tratamento dos reclusos, além do instrumento denominado Princípios Básicos para o Tratamento dos Reclusos (Resolução n. 45/111, de 14.12.1990), que configuram regras mínimas e princípios a serem observados na organização penitenciária e no tratamento dos presos.
Um dos princípios básicos a ser observado é o da igualdade, na medida em que o instrumento normativo contempla: “as regras que se seguem devem ser aplicadas, imparcialmente. Não haverá discriminação alguma com base em raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, meios de fortuna, nascimento ou outra condição. Por outro lado, é necessário respeitar as crenças religiosas e os preceitos morais do grupo a que pertença o recluso”.
O instrumento normativo, ainda, prevê regras básicas com respeito à separação dos reclusos em categorias. São elas, em síntese:
• Na medida do possível, homens e mulheres devem estar detidos em estabelecimentos separados; nos estabelecimentos que recebem homens e mulheres, a totalidade dos locais destinados às mulheres será completamente separada;
• Presos preventivos devem ser mantidos separados dos condenados;
• Pessoas presas por dívidas, ou outros reclusos do foro civil, devem ser mantidas separadas de reclusos do foro criminal;
• Os jovens reclusos devem ser mantidos separados dos adultos.
Além dessas, outras regras existem prevendo as condições dos estabelecimentos com relação à higiene pessoal, vestuário, exercício e desporto, serviços médicos, informação e direito de queixa dos reclusos, contatos com o mundo exterior, biblioteca e religião.

CONCLUSÃO:

O sistema penal brasileiro fundamenta-se em um violento sistema punitivo, promovedor institucionalizado de pura vingança social. É a violência utilizada como instrumento para reprimir a violência. Todo problema, nós sabemos, só pode ser solucionado por uma consciência diversa da que o gerou. Se a criminalidade é gerada pela consciência da violência, a solução só pode vir pela consciência da não-violência, fundada na negação da violência como forma de resolver algum problema.
Não é possível se falar no combate à criminalidade sem iniciar o debate pela promoção de políticas públicas de bem estar social. É uma falácia tentar resolver a questão da criminalidade com aparelhamento das polícias e endurecimento da legislação penal, sem se tratar da desigualdade social, pois é ela o grande impulsionador da criminalidade.
O sistema carcerário carece de uma reformulação completa de métodos, a começar pela conscientização dos seus funcionários que do outro lado da grade existe um ser humano violentado pelo sistema (primeiro pelo sistema capitalista e depois pelo sistema penal).
Uma solução que se apresenta ao imenso problema seria a de se promover atividades onde os detentos pudessem receber algum tipo de instrução, que seja em ciências que esclarecesse e melhorasse os conhecimentos destes, ou em ciências que tivessem uma finalidade profissionalizante.
Como o modelo utilizado pela APAC, onde os presos recebem os dois tipos de auxílio, o de obtenção de conhecimento e de uma profissão, associado ao aspecto religioso juntamente com a participação da família.
Destacando dentre os meios educativos o papel de uma biblioteca instalada dentro do estabelecimento prisional, na qual sem sombra de dúvidas promoverá a ocupação de boa parte do tempo ocioso dos detentos de forma construtiva e salutar, isto sem dizer na mudança de sentimentos e pensamentos que fatalmente ocorrerão com o eventual leitor dedicado, pois é de conhecimento público e notório que educar liberta.


*Este texto foi escrito em parceria com Telma Ângela Martins Trindade.

BIBLIOGRAFIA:
1) http://www.revistazap.org/presidiosonline/presos_cresce_pop.php
2) Apostila Direitos Humanos Completo – Curso Flávio Monteiro de Barros – Ed.:
3) http://www.ssp.sp.gov.br/home/noticia.aspx?cod_noticia=17016
4) Direito Penal na Constituição. 3.ª ed. São Paulo: RT, 1995. p. 144.
5) Direitos Humanos do Preso. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 1-2.
6) Direitos Humanos e Execução Penal. In: Direitos Humanos – Visões Contemporâneas. Publicação da Associação Juízes para a Democracia, 2001. p. 117.
7) Lei de Crimes Hediondos. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1992, ano 5, vol. 5, p. 55. Apud STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo.
8) A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua Integração ao Processo Penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2000. p. 134.
Autor: Carlos Henrique Franchin


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