A Imagem Da República Brasileira Em 'os Bruzundangas'



A República dos Estados Unidos da Bruzundanga é um país criado por Lima Barreto que, em síntese, revela os graves problemas pelos quais passava a jovem república brasileira. Segundo este autor, "a Bruzundanga fornece matéria de sobra para livrar-nos, a nós do Brasil, de piores males, pois possui maiores e mais completos". Por esta frase podemos até afirmar que a Bruzundanga seja um lugar com características bem parecidas com as do Brasil, no entanto, quando prestamos bastante atenção para os detalhes que Lima Barreto descreve sobre este país fica claramente estabelecido que a Bruzundanga é o Brasil, apenas com denominações diferentes. Mais do que ficção, a República da Bruzundanga é um retrato da realidade brasileira.

As notas de Lima Barreto sobre a história deste país nos permitem fazer algumas reflexões sobre a história da sociedade brasileira nos primeiros anos do regime republicano. Tal como o Brasil, a Bruzundanga tem uma história política com lutas a favor de autonomia provincial em relação ao império, ou seja, assim com no Brasil, fez-se na Bruzundanga um governo republicano em repúdio ao regime monárquico. Lima Barreto analisa de forma clara o interesse da alta sociedade por cargos políticos. Para ele, a política na Bruzundanga não passa de uma vulgar especulação de cargos e propinas, e isto serve para que possamos fazer um paralelo direto com as relações de favor que definiu o perfil da sociedade brasileira marcada por um conflituoso jogo de poder.

O artigo de Roberto Schwartz (As idéias fora do lugar) que pensa um sistema republicano instaurado numa sociedade marcada pela escravidão propõe-nos a concluir que as idéias trazidas de fora (Europa) não poderiam dar certo num Brasil moldado pela prática do favor. Assim, uma das principais características da sociedade à época, torna-se o principal elemento que Lima Barreto explora em Os Bruzundangas. O alvo das críticas de Lima Barreto são os políticos e os mecanismos dos quais eles se utilizam para ocupar cargos de destaque. É bom ressaltar que a política brasileira desde os primeiros anos da República foi delineada de modo que o poder ficasse polarizado em poucos grupos (oligarquias).

Pensando as relações de submissão, Lima Barreto atenta para a arrogância e prepotência dos grandes proprietários de fazendas, quase todos políticos de destaque, os quais estavam mais interessados em manter as suas regalias e garantirem o bem-estar de seus filhos. A república na Bruzundanga é a mesma no Brasil, onde os interesses pessoais estão acima dos interesses da nação. Lima Barreto dar destaque, ainda, para o jogo de interesses e poder que há entre os casamentos de filhas de grandes proprietários e demais membros que compunham a alta sociedade como os nobres doutores. Ter um título de doutor na Bruzundanga, principalmente de médico, advogado ou engenheiro, significava compor a nobreza doutoral daquela sociedade de caráter excludente, o que não se diferenciava nem um pouco da sociedade brasileira. Assim, as relações de submissão eram freqüentes quando se tratava de pessoas com importantes títulos ou cargos políticos.

As mudanças sociais que ocorrem no Brasil depois do processo de abolição da escravatura não foram suficientes para que houvesse uma revolução no sistema educacional brasileiro, apesar de ser este um dos projetos republicanos. Devido a tal problema, Lima Barreto ver a educação na Bruzundanga como algo que trás privilégio social, sobretudo quando alguém tem um título de doutor: "o ensino superior fascina a todos na Bruzundanga". Neste sentido o autor pensa a realidade brasileira fazendo referência as dificuldades que os pobres enfrentam para entrar numa escola de ensino superior. Daí a importância de ser formado, e "bem formado", nesta nova sociedade.

Como dito inicialmente nesta análise, Lima Barreto ver na Bruzundanga uma saída para os males do Brasil. A política brasileira durante as primeiras décadas do regime republicano passou por intensos momentos de instabilidades resultando em várias revoltas populares. Por este aspecto o autor descreve a organização política da Bruzundanga fazendo, na verdade, uma severa critica de como o Brasil estava sendo administrado. Tal como a república brasileira, a Bruzundanga era um país com variadas riquezas naturais, no entanto, vivendo na miséria devido à incompetência de seus administradores. Nesta questão Lima Barreto é bem enfático, sobretudo na forma como ele analisa a carreira política destes governantes, o que acaba retratando a maneira como a política era vista no Brasil. Devido a isto, o autor é bem irônico em relação à intelectualidade dos que se aproveitam da política para atender apenas a seus interesses particulares.

Este é, de fato, um retrato da sociedade brasileira. A partir da Bruzundanga, o autor ver um Brasil marcado por um sistema eleitoral fraudulento: "às vezes semelhantes eleitores votam até com nomes de mortos". Este era outro grande problema da república brasileira que permeou por toda a República Velha o qual fica evidente nas notas de Lima Barreto.

Podemos perceber ainda nos Bruzundangas uma crítica de Lima Barreto a respeito do projeto de modernização da cidade do Rio de Janeiro, à época do governo de Rodrigues Alves, sendo este um fator do progresso republicano que deveria ser adotado no Brasil. "O mandachuva (quer dizer o presidente da Bruzundanga) [...] convenceu-o que devia modificar radicalmente o aspecto da capital." A leitura do trabalho de Nicolau Sevcenko (Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira Republica)[1] nos permite encontrar alguns aspectos analisados por Lima Barreto em Os Bruzudangas que se referem às características sociais e políticas da República do Brasil.

Em primeiro lugar tem-se a maneira como as reformas do projeto modernizador do Rio de Janeiro atingiram de forma drástica a população, visando dissolver a velha sociedade imperial. Outra questão analisada por Sevcenko e que Lima Barreto desenvolve ao longo de suas notas sobre a Bruzundanga, refere-se ao arrivismo e a idéia de que tudo que vem de fora é o melhor. Quando Lima Barreto pensa "os samoiedas" da Bruzundanga, sendo que na tal escola era necessário se vestir como que no ártico levando em conta que o país estava localizado nas zonas tropical e sub-tropical, este autor faz, contudo, uma sátiraaos costumes de origem européia utilizados no Brasil, ou seja, o pressuposto de que a sociedade brasileira deveria está imitando a todo custo o modo de vida europeu (Belle Époque).

Assim, a partir das questões aqui levantadas podemos concluir que existe uma estreita relação entre a Bruzundanga e o Brasil de início do século XX, e que algumas destas características ainda permanecem na atual sociedade brasileira. Portanto, quando Lima Barreto descreve a República da Bruzundanga vemos a imagem de um Brasil marcado pela corrupção, o clientelismo e o jogo de interesses como princípios norteadores daquela sociedade. Vemos também a inexistência do amor pela profissão interessando apenas o status e o brilhantismo que ela possa oferecer. A partir destas reflexões podemos ainda perceber o quanto questões fundamentais como a educação e a cultura são menosprezadas pelos administradores públicos e que a inexistência de uma cidadania [2] nos primórdios da república tem o peso desfavorável na construção do cenário político do Brasil.

Os Bruzundangas de Lima Barreto deve ser antes de tudo apreciada como uma obra literária que vai ao fundo dos graves males da sociedade brasileira. Ela é sem sombra de dúvidas uma lição de História do Brasil. Se bem que Lima Barreto faz isto desde "Triste Fim de Policarpo Quaresma" o qual focaliza o nacionalismo ufanista e os fatos políticos e históricos que ocorrem durante o governo de Floriano Peixoto, pensando assim o autoritarismo do "Marechal de Ferro". Daí Lima Barreto ser considerado o "romancista da Primeira República" mostrando com brilhantismo a realidade de uma sociedade que não consegue se libertar de velhas práticas mergulhando o país em um mar sem esperanças.

[1] SEVCENKO, Nicolau. Literatura com Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

[2] CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia da Letras, 1990.


Autor: Luiz Batista de Carvalho


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