Educação Auditiva E Educação Musical: Uma Proposta Ecologicamente Orientada



1. Audição e comportamento: a abordagem ecológica da percepção do som
Gibson (1966) propõe a percepção como uma atividade de detecção de informação no
meio-ambiente, como responsável pela orientação da ação adequada do percebedor no meio, assim
como a ação é responsável por orientar a percepção adequada desse percebedor nesse meio. Gibson
(1966 e 1979) fala de um mutualismo entre o animal, que percebe e age, e o meio onde isso ocorre;
e de um acoplamento entre percepção e ação e entre animal e meio. Maturana (1995 e 1997) se
refere ao conceito de acoplamento estrutural para descrever as relações entre a percepção e a ação
de determinado organismo em determinado meio-ambiente no tempo. Gonzales (1989) propõe que
o principal objetivo da percepção é orientar a ação, e o principal objetivo da ação é orientar a
percepção.
Para Gibson, informação é como uma seta bi-direcional, com uma ponta voltada ao
percebedor (denominada informação-sobre, ou invariante) e a outra voltada para o meio-ambiente
(informação-para ou affordance)1. Com isso podemos entender as atividades de percepção e ação
com um tipo de acoplamento que Maturana (1995) chama de estrutural. Os padrões informacionais
a que os percebedores acoplam-se disponibilizam para ele um conjunto específico de condutas, que
de acordo com as diferentes situações (relacionais entre percebedor e meio), ocorrerão com maior
ou menor probabilidade.
Como exemplo podemos observar o caso de alguém que está dirigindo um carro em uma
avenida movimentada e ouve o som de uma sirene de ambulância vindo atrás. Precisamos levar em
Belo Horizonte, 25 a 28 de outubro de 2005
XIV Encontro Anual da ABEM
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consideração a significação que o som da sirene vai adquirir nessa situação e a partir daí poderemos
conjecturar sobre as diferentes opções de conduta. Posteriormente será o caso de descrever como
ocorre esse processo de significação de acordo com a teoria da percepção direta. Não é o caso de
afirmar que o som da sirene determinou o comportamento de direcionar o carro para as laterais,
uma vez que, se o motorista ouvisse o mesmo evento sonoro como efeito em uma música em seu cd
player ele não teria o mesmo comportamento. O mais próximo do senso comum, e com base no
paradigma do processamento de informação, seria afirmar que o motorista ouviu aquele som, o
processou, levando em conta todo o contexto, e como resultado do processamento, utilizando seu
arquivo de representações mentais, decodificou a mensagem presente no padrão sonoro da sirene e
conseqüentemente, escolheu aquela conduta como melhor alternativa de ação.
A abordagem ecológica propõe que através da detecção de invariantes específicas no meio
o percebedor preparado consiga informação suficiente para se comportar adequadamente frente a
determinado evento. Continuando com nosso exemplo, seria o caso de entender o padrão sonoro da
sirene, situado no arranjo específico daquele ambiente acústico, como padrão de invariantes
estruturais e transformacionais,2 gerando affordances específicos, como o ato de direcionar o carro
para a lateral, entre outros possíveis e melhores ou piores dependendo da totalidade de aspectos
percebidos no contexto. Nesse sentido não foi o percebedor que escolheu sozinho tomar a decisão
de sair da frente da ambulância, do mesmo modo como não foi o som da sirene que o fez se
comportar de tal modo. Segundo a abordagem ecológica, o motorista dirige o carro para a lateral,
porque seu sistema perceptivo acoplado ao padrão informacional no meio sintoniza-se com tal
padrão e ajusta sua ação de mover a direção do carro com seus braços e os pedais com seus pés.
Todo esse ajuste complexo é então orientado em tempo real pela atividade dos sistemas perceptivos
mais treinados, mais habituados a tal atividade. Em outras palavras, o sistema formado pelo
acoplamento entre percebedor que age e o meio onde esse percebedor encontra a informação para
agir é auto-organizado3. Isso porque não se observa atividade controladora de nenhum agente
externo ao sistema percebedor-meio e também porque nenhum dos dois elementos do sistema
controla sozinho o funcionamento do sistema.
Assim o significado deixa de ser definido como uma interpretação de um percebedor sobre
um dado evento do mundo, de acordo com o processamento de suas representações mentais, e passa
a ser entendido como significado perceptivo. Conforme a abordagem ecológica podemos entender
1 Para maior esclarecimento sobre as noções de invariante e affordance consultar: Gibson 1966 e 1979;
Michaels and Carello 1981. Para maior esclarecimento sobre tais noções aplicadas à música consultar:
Oliveira 2002; Oliveira and Oliveira 2003.
2 Para esclarecimento de invariantes estruturais e transformacionais em percepção auditiva humana conferir
Oliveira e Oliveira 2002.
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significado, como o conjunto de possibilidades de comportamentos (respostas, ações) frente a um
evento em uma situação específica.
2. Aprendizagem musical e desenvolvimento da significação sonoro-musical de acordo com a
abordagem ecológica.
Educar musicalmente, ou ensinar música é uma atividade que envolve aprendizagem, e
especificamente, aprendizagem de significados (como conjuntos de comportamentos possíveis).
Consideramos que o significado é aprendido quando o organismo percebedor desenvolve o
comportamento mais adequado frente a um evento específico. Musicalmente falando, mesmo dentro
do pequeno escopo da música tonal, podemos tomar como exemplo a atividade de ditado de
determinados padrões musicais. O aluno mostra que aprendeu através da execução correta de um
exercício onde ouve a seqüência: dó, ré, mi, fá; e escreve respectivamente o que ouviu. Ele
aprendeu que aquele padrão gráfico refere-se àquele padrão sonoro ouvido (dó, ré mi, fá), ou em
outras palavras diríamos que ele aprendeu aquela significação gráfica daquele padrão sonoro e viceversa.
Se nos referirmos a atividades mecânicas de execução instrumental o exemplo continua
valendo.
Quando se examina as definições de aprendizagem nas diferentes perspectivas em educação
musical se nota a diversidade de opções epistemológicas e ontológicas. Vamos nos referir
especificamente a uma tradição representacionista no estudo da educação musical, em oposição a
uma alternativa não-representacionista para descrição de atividades como a aprendizagem musical
ou o desenvolvimento de significação. Como exemplo de tal tradição podemos nos remeter a um
trecho que trata da descrição do processo de aprendizagem musical segundo Gainza (1977, p.22):
A música, o ambiente sonoro – exterior ao homem – ao entrar em contato com as zonas
receptivas deste (sentidos, afetos, mente) tende a penetrar e internalizar-se, induzindo um
mundo sonoro interno (reflexo direto ou representação daquele) que a sua vez tenderá
naturalmente a projetar-se em forma de resposta ou de expressão musical.
É clara a posição dualista e a opção internalista da autora para localizar a atividade de
aprendizagem. Ela não apresenta suas definições de conceitos que são fundamentais em sua
proposta, como por exemplo: o que são exatamente para a autora os "sentidos, afetos" e
especialmente a "mente"?
No entanto há alternativas teóricas para a descrição de determinadas atividades como as de
percepção e de aprendizagem que propõem novidades especialmente no que diz respeito ao
3 Para maior esclarecimento sobre auto-organização ver: Atlan, 1992; Debrun, 1996.
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repertório conceitual utilizado. De acordo com Maturana (1995, p.32): Há duas perspectivas
básicas a partir das quais se pode encarar o fenômeno de aprendizagem a fim de explica-lo. Uma
primeiramente chamada de interações instrutivas entre o percebedor e o meio. O meio dá ao
percebedor as informações e as significações necessárias para que este monte representações
adequadas para orientar sua conduta. Assim aprendizagem será o processo de construção de uma
representação interna adequada. Tal perspectiva está nitidamente implícita na proposta de Gainza
(1974). Por sua vez, a outra perspectiva, segundo Maturana (1995, p.32) é a que entende
aprendizagem como:
(...) o caminho da mudança estrutural que segue o organismo (incluindo seu sistema
nervoso) em congruência com as mudanças estruturais no meio como resultado da recíproca
seleção estrutural que se produz entre ele e este, durante a recorrência de suas interações,
com conservação de suas respectivas identidades.
Nesse sentido vai a definição de aprendizagem para Maturana no mesmo artigo (1995, p.45) que
afirma que: (...) aprendizagem é um processo que se estabelece no viver, porém que não consiste
em captar o mundo como a palavra sugere, o fenômeno de aprender é mudar com o mundo (...).
Posto dessa forma fica clara a proximidade entre as noções de aprendizagem de Maturana (1995 e
1997) e de Gibson (1966, 1979). Segundo a abordagem ecológica, o organismo aprende por
enriquecimento de seu sistema perceptivo. A aprendizagem melhora a sintonia, a utilização do
sistema faz com que ele vá se auto-ajustando, se auto-sintonizando cada vez melhor com o tipo de
informação específica a ser detectada. Nas palavras de Gibson:
De qualquer forma, esta não é o tipo de aprendizagem concebida pelas teorias da
associação, ou do condicionamento, ou da memorização. Ela não é uma soma de
associações, uma anexação de respostas, ou um acúmulo de memórias. Aprendizagem
perceptual tem sido concebida como um processo de "enriquecimento" (…) (Gibson and
Gibson, 1955) Gibson, 1966, p. 269).
Com a utilização da noção de auto-ajuste a aprendizagem não precisa desse tipo de noção
de memória de armazenamento, ela ocorre como enriquecimento da sintonia, uma melhor afinação
com determinado padrão informacional do meio ambiente, conforme observa a citação acima.
No caso da audição humana desde a orelha externa, o sistema perceptivo parece já estar em
processo de auto-sintonização com a informação sonora disponível no meio. Toda a vibração dos
ossículos do ouvido médio, assim como os padrões de vibração das fibras na membrana basilar, e
conseqüentemente os múltiplos padrões de disparo das células ciliadas para o nervo auditivo, bem
como os padrões de ativação do córtex são considerados por Gibson (1966, p. 271) como atividade
de ressonância auto-sintonizada entre o sistema perceptual e o meio-ambiente. A atividade de
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músculos como o estapédico e o tensor do tímpano nos seres humanos dão mostra de que há um
controle que não depende unicamente do percebedor, mas das condições que o meio-ambiente lhe
possibilita.
Sobre o aparecimento do significado, as teorias baseadas nas abordagens
representacionistas participam da opinião que o significado, e mesmo o conhecimento como um
todo, são construídos internamente por um sujeito que constrói suas representações mentais
adequadas do mundo. Por outro lado a abordagem não representacionista propõe que não há
necessidade de utilizar a noção de representação mental para descrever adequadamente o
aparecimento da significação. Há sim a necessidade da consideração da constante interação
recorrente, que gere padrões condutuais consensuais entre os indivíduos e o meio (Maturana, 1995).
É no desenvolvimento de tal interação que os padrões denominados por significado podem emergir.
3. Educação auditiva como tópico central de uma educação musical ecologicamente orientada:
considerações metodológicas e estéticas.
Consideramos que o desenvolvimento de hábitos e de habilidades relevantes para uma
cultura musical específica é o que se pode entender como sumário dos objetivos da educação
musical. Propomos ênfase na audição, e não na audição de um tipo específico de música. Para a
abordagem ecológica é preciso levar em conta que inicialmente é mais importante desenvolver a
capacidade auditiva de uma maneira mais ampla, do que desenvolver especificamente a capacidade
de reconhecer padrões sonoros específicos de uma ou outra determinada cultura musical.
Propomos um privilégio da audição através de diferentes atividades que desenvolvam
diferentes hábitos de audição/ação em situações variadas. Desenvolver a capacidade de detectar
diferentes invariantes e affordances sonoros para melhor ajustar a ação realizada nas diversas
situações de audição no meio.
É o caso de iniciarmos do nível de audição mais natural possível e caminharmos em direção
aos níveis de audição que envolvam a utilização de representações musicais4 dessa natureza por
meio de diferentes propostas técnicas e estéticas. Estamos propondo centrar a educação musical na
educação da audição e no desenvolvimento de hábitos de audição/ação relevantes e requeridos em
diversas situações possíveis. Estamos levando em consideração que a aprendizagem e significação
só ocorrem quando há um corpo em uma situação específica precisando ajustar seu acoplamento
com o meio através do ajuste de uma conduta também específica.
A proposta de uma educação musical ecologicamente orientada certamente deve estar
centrada no desenvolvimento de diferentes hábitos de audição/ação, de acordo com diferentes
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propostas estéticas. Por fim, se começarmos buscando o desenvolvimento de hábitos de
audição/ação mais naturais possíveis, estaremos muito mais próximos de uma estética que tem
como obras, por exemplo, paisagens sonoras, do que de uma estética que tem como representante a
sonata clássica. No entanto, a sonata clássica e outras formas e formatos representantes de outras
estéticas musicais devem estar incluídos no programa de uma educação musical ecologicamente
orientada, na medida que se respeite o desenvolvimento dos hábitos de audição/ação requeridos
para cada uma das estéticas abordadas.
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4 A noção de representação aqui utilizada refere-se a representação externa.


Autor: andré gonçalves de oliveira


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