Do Hotel Pra Sala



Saio pra sacada tomar um ar e conferir o tempo antes de sair. Gosto de ver a cidade daqui do quarto do hotel. Gosto quando é um pouco mais alto do que esse terceiro andar.

Saio levando os diários de classe que tenho pra fazer e entregar na semana que vem. Logo tomo o caminho com as pedras mineiras irregulares brincado de se adequar aos meus passos, nem apressados ou preguiçosos, apenas brincando com os movimentos e possibilidades de encaixar-me naquelas formas retas. Aqueles vários tipos de quadriláteros e outras tantas figuras que se desenhavam sob meus pés. Não posso simplesmente parar de caminhar, então o jogo que se forma entre a velocidade e tamanho de meu próximo passo é impressionantemente parecido com os vários tipos de dinâmicas à que me encontro submetido todos os dias. Como, por exemplo, enquanto digito ou leio esse texto. Imagine se pudesse sempre coordenar meus movimentos pra que entrassem num ritmo específico com o resto do mundo, quero dizer, especificamente com os  eventos sonoros e visuais à que estou submetido todos os momentos de minha existência.

Enquanto andava subindo o caminho das pedras mineiras irregulares atentava para o jogo dos encaixes possíveis e efetivamente realizados. Como a vida mesmo. No jogo diário e momentâneo de preparar o próximo gesto, seja ele o apertar as teclas de um teclado qualquer, ou andar em um campo com as pedras mineiras irregulares, mexer o suco com os canudos, ou ler esse texto. Então por isso, por causa do desenrolar do jogo, me ocorreu que não podia parar de andar. Não podia simplesmente parar e pensar onde era melhor colocar meu pé de modo que se encaixe em um dos vãos formados pela irregularidade daquele tipo de desenho com as pedras mineiras.  Imagine, uma pessoa parada no caminho. Não se para ali sem um motivo qualquer. Sem uma outra pessoa lhe cumprimentando, como ocorreu hoje pela manhã quando encontrei o professor negro, magro e careca da educação física. Naquele momento parei, mas só assim em ocasiões que nos permitem. Não se estaciona simplesmente ali para observar o campo e estimar as ações possíveis e ótimas para serem executadas pelos meus pés que insistem em levar meu corpo vida afora, ou para pensar em quão grande deve ser meu próximo passo de modo que encontre um vão perfeito de encaixe de meu pé com o desenho formado pelas pedras. Apenas vou. Posso até pensar que me sinto como um observador do que acontece, embora tenha que vir com aquela conversa sobre o observador em primeira pessoa.

Controlo um pouco o jogo todo. Poucos parâmetros. Sinto mesmo a força das várias necessidades como a de um padrão de constância de dinâmica que me conduz, incrivelmente semelhante a quando toco uma coisa qualquer em algum instrumento musical com o grupo, ou quando fico aqui acionando essas teclas produzindo esse texto. Criar ritmos é uma atividade bastante, em tempo real, com a necessidade vital de timing adequado. Ontem comprei uma edição de revista falando de tempo para várias áreas da ciência e filosofia. O Willian Wack (não sei como se escreve o nome do apresentador do "jornal da globo") abriu seu editorial de ontem comentando como o timing é uma aspecto dos mais vitais, se referindo a uma situação política. Como não termina o caminho, levanto a cabeça olho pra frente e, quanto caminho ainda há para percorrer. Para adequar o passo aos vãos. Quanto tempo vai passar até lá. Como posso planejar sem parar.

Ao fim do caminho vem o sol forte e calor dessa cidade. Preciso me hidratar. Vou ao quiosque pegar um suco de qualquer coisa, talvez mesmo de maracujá. Não, preciso tomar suco de outra coisa. Já tomei remédio pela manhã, mesmo com o médico dizendo que não precisa. Tomei mesmo assim. Melhor prevenir. Não tem suco de maracujá. Deve ser um sinal. Vou tomar de qualquer outra coisa, não sei. Saio com mulher me perguntando se nem adoçante era pra colocar. Não gosto de tomar coisas com açúcar. Volto ao jogo dos encaixes, agora na rua com losangos, em situações mais regulares o movimento parece mais eficaz para o bom encaixe entre os pés e os vãos. O suco de clorofila refresca um pouco nesse calor. Não gosto das coisas com açúcar. Bastava uma colherinha de nada pra tirar todo gosto desses 700ml de suco verde.

Bom, finalmente posso encarar os quatro lances de escada que me conduzem à minha sala. Debaixo desse sol, jogado encaixes de pés e vãos, agora com os losangos, levando meus diários em uma das mãos e equilibrando os 700 ml. do suco verde na outra, só penso em ligar o ar e sentar defronte o computador pra ter o que fazer fugindo do preenchimento dos diários de classe. Vou escrever essa coisa toda. 
Autor: andré gonçalves de oliveira


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