ALGUNS PONTOS DE DISCUSSÃO PARA A IMPLANTAÇÃO DE UM VERDADEIRO POLICIAMENTO COMUNITÁRIO ( * )



1. INTRODUÇÃO.

O policiamento comunitário representa um novo objetivo a ser perseguido por boa parte das polícias do mundo inteiro. Experiências bem sucedidas, especialmente no Japão, no Canadá e na Inglaterra são os parâmetros que policiais estabeleceram para nortear os esforços no sentido de desenvolverem algo consistente nos seus próprios países.
As questões mais importantes do policiamento comunitário talvez não estejam ligadas ao enorme leque de benefícios que defensores desta modalidade de "fazer polícia" costumam elencar. Não há o que discutir quando se evoca uma presença policial mais efetiva nas comunidades, desenvolvendo trabalhos conjuntos, numa política de proximidade que objetiva ampliar os laços de confiança. Não há, também, quem negue os benefícios de determinados parâmetros, especialmente implantados nos países acima citados, nos quais - em maior ou menor intensidade - a polícia, como o braço do Estado autorizado a usar a força, prefere muito mais se colocar como "parceira" da comunidade, estimulando a prevenção ao crime e reforçando um diálogo com as comunidades, difícil de ser amplamente compreendido em culturas cuja violência policial está arraigada.
Mas as questões que poderiam ser mais duramente discutidas não estão ligadas na esfera do que seria útil ou conveniente num policiamento deste tipo, posto que parece unanimidade tais utilidade ou conveniência. Parece que a discussão precisa passar por uma abordagem mais aprofundada do que representa o policiamento comunitário como vertente de ação do tecido social. E apenas para ilustrar, o policiamento comunitário não é uma idéia nova. Surgiu com a criação das polícias modernas, como lembra Rolim (2006, p.29):


"...as primeiras forças policiais modernas estruturaram seu trabalho a partir de vínculos bastante próximos com os cidadãos. O centro desses vínculos foi estabelecido com as 'rondas policiais', feitas a pé por patrulheiros conhecidos pela comunidade e que com ela interagiam.".


Ora, além desta proximidade que o patrulhamento a pé propiciava, as organizações policiais ainda eram responsáveis por outras funções na área administrativa, como a expedição de alvarás e licenças e, mais ainda, "em Boston, a polícia cuidou da saúde pública até 1853 e, em Nova York, da limpeza pública até 1881."( ROLIM, 2006, p.29).
Esta proximidade começou a acabar quando alguns policiais pareciam próximo demais das comunidades. Casos de corrupção e favorecimento, baseados no conhecimento bastante estreito dos policiais com alguns dos membros das comunidades e, além disso, a difusão e massificação das novas tecnologias, na época, como a telefonia e a comunicação via rádio e a produção em série de veículos, determinaram o fim do policiamento comunitário: instituiu-se uma nova polícia, em que as rondas a pé foram substituídas pela rondas em veículos; policiais foram alocados aleatoriamente para as áreas de patrulhamento, perdendo-se os vínculos com as comunidades nas quais estavam habituados; os cidadãos já não falavam “diretamente” com os policiais, ao invés disto conversavam com um operador numa central de rádio que, após triagem, enviava uma ou mais unidades da polícia. Acabaram com a corrupção, com o tratamento diferenciado, com os favorecimentos ilegais. Mas, acabaram também com a conversa ao pé do ouvido, com o aconselhamento, com a resolução direta e simplificada de determinados problemas que a proximidade polícia-cidadão poderia solucionar, sem demandar outras instâncias sociais (como a Justiça, por exemplo).
Hoje, nos anos iniciais do séc. XXI fala-se novamente do policiamento comunitário como se o mesmo nunca houvesse existido e como se fosse a solução para todos os problemas da Segurança Pública. Independente da discussão pueril do que seria bom ou útil, nesta área, é fundamental um aprofundamento para que possamos determinar o que é possível conseguir com um programa de policiamento fundado nas comunidades. Pois parece que a questão transcende meros aspectos de Segurança Pública para repousar em aspectos de caráter e identidade de cada comunidade e, numa discussão mais abrangente, no caráter nacional de um país como o Brasil.
E, apenas para explicitar melhor o que se pode esperar desta discussão, Rolim , (2006. p.23-24) assim contextualiza :


"Os policiais devem atuar segundo regras claras definidas pela legislação e pelos seus próprios estatutos, mas eles devem aplicar esses comandos ao pé da letra em todas as situações? Ainda que a resposta seja afirmativa, é possível compreender a atividade policial sem considerar a enorme margem de escolha dentro da qual cada profissional de segurança pública e suas agências operam? Policiar não pressupõe, afinal de contas, estabelecer prioridades e decidir, em última instância, quando usar da autoridade legal e quando isso simplesmente não vale a pena? Mas se cabe aos policiais apenas "aplicar a lei", isso não estaria a sugerir que não existem decisões importantes a serem tomadas e que, consequentemente, as comunidades e os cidadãos nada têm a fazer quanto à definição das atividades policiais?".


E este parece ser o núcleo do problema: se há regras definidas e claras, o que se espera do policial? Que as cumpra ao pé da letra, numa postura republicana e totalmente alheia a um envolvimento com a comunidade ou, numa política de proximidade, busque a melhor solução para o encaminhamento de determinado problema, favorecendo soluções “negociadas” com a comunidade, promovendo a confiança e a interação polícia-comunidade? Por exemplo, um jovem comete seu primeiro furto, deve ser levado para uma delegacia – em cumprimento às leis, para ser responsabilizado pelas regras republicanas – ou pode o policial fazer com que o mesmo devolva o objeto de furto ao seu dono, fazê-lo desculpar-se e levá-lo aos país ou responsáveis para uma solução mais “comunitária’, levando-se em conta tratar-se de um pequeno delito? Será que a primeira postura não geraria um mal maior de expor o jovem aos perigos da convivência com outros criminosos e, até, a estigmatização por ser rotulado como “criminoso”? Por outro lado, não serviria de exemplo para outros afoitos desistirem deste caminho? Da mesma forma, a segunda opção poderia promover a “recuperação” sem maiores traumas, mas não poderia servir de exemplo de impunidade? Esta é uma área na qual as perguntas são bem mais fáceis de serem formuladas que as respostas.





2. ELEMENTOS DE POLÍCIA COMUNITÁRIA.





O policiamento comunitário pressupõe alguns elementos fundamentais. Ao invés de simplesmente combater o crime, o grande objetivo é preveni-lo. E esta prevenção está pautada na busca de uma "parceria com a comunidade de soluções que levem à resolução dos problemas de segurança pública". (MARCINEIRO e PACHECO, 2005, p.87-88).

Com efeito, sem a interação comunidade-polícia, a prática do policiamento comunitário passa a ser de mão única, num processo controlado apenas pela força policial, sem o devido respaldo comunitário. Especialmente na cidade de São Paulo este fenômeno é facilmente observável, evidentemente dentro das proporções descritas, nas reuniões dos chamados CONSEGs (Conselhos de Segurança Comunitários). A idéia era reunir representantes das polícias civil, militar e, conforme o caso, da Guarda Municipal e de outros órgãos de interesse comunitário, tais como sub-prefeituras, etc. para - junto com membros das comunidades - discutir e equacionar a problemática local de segurança. No entanto as coisas não costumam ocorrer conforme o previsto. Conforme observa o sítio da DHnet:


"A Coordenadoria dos Conselhos Comunitários de Segurança tem ainda recomendado aos membros natos dos CONSEGs (Comandante Policial Militar e Delegado de Polícia do respectivo Distrito Policial ou município) que não permitam que o Conselho se transforme em mais um entulho burocrático.
Nesse sentido, temos percebido alguns dos óbices mais comuns, a frearem a expansão da modernidade, representada pelos CONSEGs. Inicialmente, a falta de envolvimento das autoridades policiais, na gestão dos CONSEG de suas áreas. Outro problema muito comum, a atrapalhar o bom andamento dos CONSEGs, é o surgimento de lideranças inadequadas ao trabalho comunitário: pessoas que buscam auferir vantagens pessoais, financeiras ou eleitorais dos CONSEGs prejudicam sensivelmente a pureza dos objetivos que norteiam Os Conselhos, sua força e legitimidade.
É certo que, se as autoridades policiais não se mobilizam, inicialmente, para localizar líderes comunitários legítimos e para convidá-los a organizar o CONSEG de sua área de atuação, aventureiros e interesseiros poderão se oferecer para assumir essa liderança. A experiênc??ia tem-nos demonstrado que maus líderes de CONSEG trazem maior prejuízo e desgaste que se não houvesse CONSEG, pois as pessoas de bem se afastam e hesitam em tornar a participar. Deixá-los assumir tais espaços, que resistirão em abandonar, com prejuízo e desgaste para a administração pública e para a comunidade, via de regra, pode ser em grande parte atribuído ao desinteresse das autoridades policiais da área respectiva.
Orientar a ação dos CONSEGs para que busquem atingir os objetivos propugnados pela Secretaria é missão delegada aos membros natos, Autoridades Policiais Civis e Militares das respectivas áreas. Vale lembrar que não é da competência dos participantes do CONSEG interferir em escalas de serviço, transferências de policiais, fixação de efetivos e outras de domínio técnico exclusivo do administrador policial.
Comunidades omissas, especialmente de bairros tradicionais ou pequenos municípios, com baixos índices de criminalidade, representam, igualmente, um desafio para o administrador policial.".


No entanto, se há uma verdadeira interação entre a polícia e a comunidade, resultados surpreendentes podem ocorrer. E esta interação pode não estar necessariamente ligada ao grau de desenvolvimento econômico ou social da comunidade. Exemplos surgem em várias partes do mundo, como no Quênia:


"Através da união das comunidades locais, sociedade civil, polícia e administração da província, o CBP busca desenvolver soluções locais para os problemas de segurança das comunidades afetadas. O projeto começou por conscientizar e difundir a filosofia e os princípios do policiamento comunitário por toda Isiolo. Por meio de um fórum de policiamento comunitário, as pessoas envolvidas identificaram três objetivos para o programa: prevenção do crime, melhora da segurança e redução do número de armas pequenas.
Barazas (fóruns de debate) semanais e fóruns mensais sobre segurança comunitária foram organizados para incentivar a discussão dentro da comunidade local, junto com o governo e os agentes de segurança. Esse método colaborativo aumentou a confiança entre a comunidade e a polícia, devido à comunicação estabelecida entre as partes interessadas. O projeto enfatiza a mensagem “segurança começa com você”. Dessa forma, o policiamento comunitário também fomentou um espírito de cooperação, segundo o qual os cidadãos têm obrigações e direitos. (YEUNG, 2008).".


Com efeito, esta é uma prática que exige empenho. E este empenho deve ser de ambas as partes (comunidade e polícia). No sítio da polícia de Pacific Grove, cidade da Califórnia, alguns destes conceitos são lembrados:


"Community policing is based on the premise that partnerships between police and citizens will help increase public safety and reduce crime. A seemingly simple concept, community policing will actually require a complex and challenging mix of changes to our police department’s organizational culture and structure. These changes will need to be combined with innovative approaches to fighting or preventing crime that may call for extensive community cooperation, planning, and outreach.".


E, ainda, buscando exemplos dos EUA, país cuja necessidade de policiamento comunitário é evidente (devido a diversos excessos cometidos pelas polícias americanas, freqüentemente noticiados pela imprensa), uma monografia sobre o assunto, emitida sob os auspícios do Departamento de Justiça dos EUA, identifica o esforço que deve ser feito por toda a organização policial.


"The more conspicuous police presence of the long-term patrol officer in itself
may encourage community response. But it is not sufficient. The entire police
organization must vigorously enlist the cooperation of community residents in
pursuing the goals of deterring crime and preserving order. Police personnel
on every level must join in building a broad rapport with community members.
(BUREAU OF JUSTICE ASSISTENCE, 1994).".


Portanto, qualquer comunidade que pense claramente na incorporação de padrões comunitários de policiamento precisa ter em mente que tal objetivo só será possível se polícia e comunidade partilharem deste mesmo objetivo. Como concluí Jucá (2002):

"Com a participação direta da comunidade, será mais fácil detectar e exterminar as causas da violência, rumo à restauração da tão almejada paz social. Apenas através dessa conjugação de esforços que se visualiza uma segurança pública eficaz. Porque diante da absurda onda de violência que perpassa a nação brasileira, a sociedade clama por segurança. E qualquer aperfeiçoamento na política de segurança pública é relevante, válido e urgente.".

A fórmula parece fácil de ser obtida, pois consiste no esforço conjunto polícia-comunidade... Mas, por que isto não é comumente alcançado?




3. UM POLÍTICO BRASILEIRO DO SÉC. XIX E UM SOCIÓLOGO BRITÂNICO DO SÉC. XX.




Das muitas maneiras de se encarar a problemática relativa ao policiamento comunitário não há como fugir de uma discussão mais aprofundada a respeito da natureza social e política da sociedade e/ou comunidades envolvidas. E o epicentro da discussão repousa na idéia de contraponto entre o reforço das relações comunitárias, em que os interesses locais são mais enfatizados ou o estabelecimento de regras objetivas, baseadas em preceitos jurídicos distantes daqueles interesses locais, mas que atendem ao conjunto da sociedade.
Nestes pólos opostos, dois pensadores – igualmente distantes tanto em reflexões quanto em contemporaneidade, parecem exemplificar bem, através de suas idéias alguns dos pontos fundantes que podem auxiliar na compreensão da problemática.
O primeiro deles é um professor de sociologia da Universidade de Londres, Nikolas Rose, nascido na década de 40 do séc. XX e defensor, sob determinados aspectos, do aprofundamento da experiência comunitária como uma nova forma de pensar e agir politicamente. O texto que serviu de base para este pequeno confronto de idéias é o relacionado nas referências deste trabalho como La muerte de lo social ? Re-configurácion del territorio de gobierno ? .
O segundo autor, apesar de nascido em Paris em 1807, Paulino José Soares de Souza, visconde do Uruguai, viveu no Brasil, formando-se na Faculdade de Direito de São Paulo em 1831, tornando-se magistrado um ano depois. E, ainda :


"Em 1836, passou a atuar também junto ao poder central : elegeu-se deputado geral pela província do Rio de Janeiro no bojo do Regresso – movimento conservador de retorno à centralização política. Já no Segundo Reinado, assumiu as pastas da Justiça (de 1841 a 1843) e dos Negócios Estrangeiros por alguns meses em 1843, e de 1849 a 1853). Tornou-se senador vitalício em 1849, conselheiro de Estado em 1853 e recebeu em 1854 o título de visconde do Uruguai. Nos últimos anos de vida o visconde foi, por duas vezes, nomeado ministro em missões no exterior, continuou atuando no Senado e no Conselho de Estado e dedicou-se a escrever seus livros. Morreu em 1866, desiludido com o declínio do Partido Conservador. (FERREIRA, 2009, p.20).".


O texto que embasou este « debate » foi escrito pela professora de ciência política do curso de ciências sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Gabriela Nunes Ferreira e está inserido num livro cujos organizadores são André Botelho e Lilia Moritz Schwarcs, chamado Um Enigma Chamado Brasil (vide Referências) .
A oposição das idéias de Rose e do visconde do Uruguai está na importância que o primeiro atribuí ao novo papel representado pelas ações nas comunidades, enquanto o segundo defende um poder central forte, centralizador, não como fórmula ideal mas como solução possível para países como o Brasil, cuja participação comunitária estaria « contaminada » por interesses não exatamente nobres.


"No Brasil o mundo da política era, segundo Uruguai, desvirtuado e perigoso, sujeito às paixões e aos interesses mesquinhos nascidos nas localidades – onde faltavam homens talhados para agir visando ao interesse público. O maior dique contra este mundo era a administração. Em toda a obra do visconde transparece a valorização da administração, terreno da neutralidade e da eficácia, em contraposição à esfera política, presa fácil das facções. No Brasil, descentralizar o poder em detrimento do poder central e do seu instrumento, o poder administrativo, gerava a anarquia e eliminava a única garantia dos cidadãos contra o arbítrio. Era preciso, sim, estender o raio de ação da administração, fazendo-a chegar até as menores localidades. A administração brasileira tinha, segundo ele, uma cabeça enorme, mas braços e pernas curtos.". (FERREIRA, 2009, p.26-27).


Já Rose se contrapõe a esta premissa, estabelecendo os vínculos comunitários como « remédios » para alguns dos males das sociedades modernas :


"El término "comunidad", claro está, ha sido prominente en el pensamiento político desde hace tiempo; sin embargo, se volvió gubernamental cuando se hace técnico. En los años sesenta, la comunidad ya estaba siendo invocada por sociólogos como un antídoto posible para la soledad y el aislamiento del individuo generados por la sociedad de masas. Esta idea de comunidad como la autenticidad perdida y la pertenencia común, inicialmente se delegó en el campo social como parte del lenguaje de crítica y oposición contra la burocracia remota.". (ROSE, 2007).


É perfeitamente compreensível o conflito de idéias se levados em consideração os contextos de vida dos pensadores : Rose, com o espírito comunitário inglês – cujos preceitos influenciaram de forma profunda a Economia, a Administração e o Direito no Reino Unido e colônias. Já o visconde do Uruguai, influenciado pela cultura francesa na sua formação no Brasil, cujos preceitos fundamentais valorizavam uma regulação de toda a sociedade baseada em leis e através de uma administração centralizadora. E estes opostos não passaram desapercebidos à percepção do visconde :


"O modelo institucional mais adequado à realidade brasileira, dizia Uruguai, era próximo ao francês, com uma administração organizada hierarquicamente. Nas legislações inglesa e americana, a garantia contra os abusos de autoridade e os ataques à liberdade individual provinham do po princípio eletivo. Na francesa, do princípio hierárquico. O primeiro sistema seria preferível, em tese. No entanto, nos países onde era arraigado o « hábito de impunidade », tal sistema só poderia gerar males e aumentar a desmoralização. Entre liberdade civil e liberdade política, o visconde fazia uma opção clara pela primeira. Na França, dizia ele, os indívíduos não tinham a mesma ingerência nos negócios públicos que nos países anglo-saxões ; mas não havia país onde a segurança pessoal, o direito de propriedade e a imparcialidade dos tribunais estivessem mais bem garantidos. (FERREIRA, 2009, p.27).".


Este pensamento era complementado pela idéia de que a organização anglo-saxônica contava com o chamado self-government , não desfrutado pelos « primos » tupiniquins:


"O ponto de partida era o reconhecimento da ausência, no Brasil, da tradição de self-government e da « educação cívica » que a acompanhava. Na origem desta realidade estaria o legado da monarquia absolutista portuguesa. Como contraponto, o visconde tinha em vista os modelos inglês e sobretudo americano de organização social e política. O princípio do self-government, indicando ao mesmo tempo a autonomia política e administrativa das localidades e a participação ativa dos cidadãos na condução dos negócios públicos, só se desenvolvera plenamente nesses países." (FERREIRA, 2009, p.26).


E, ainda :


"Na relação entre costumes e leis, a precedência cabia aos primeiros. As instituições não deveriam ser pensadas em abstrato, mas em correspondência com as condições objetivas do povo. Daí nascia a crítica à importação de idéias e instituições estrangeiras, em desacordo com a configuração social e cultural do Brasil. Nessa crítica, retomada posteriormente por diferentes autores, estava a base de um discurso eficaz, que retratava como formalistas ou idealistas os seus adversários, atribuindo a si próprio o domínio da efetiva consideração da realidade brasileira.". (FERREIRA, 2009, p.29-30).


Já Rose busca demonstrar que determinadas comunidades foram formadas através de interesses muito específicos e que a administração de vertentes pautadas em políticas sociais são abrangentes demais para o atendimento desta demanda. Para que isto pudesse ser satisfatoriamente tratado é necessária uma abordagem baseada « num território novo de gestão da existência individual e coletiva » :


"(...) la emergencia de la idea de comunidades de riesgo - consumidores de drogas, homosexuales, portadores de determinados genes, la juventud en peligro-; la preeminencia del lenguage de la comunidad en los debates sobre el multiculturalismo y sobre los problemas que se presentan a politicos, psiquiatras, polícias y otros agentes, trabajando en condiciones de pluralismo cultural, ético y religioso. Todas estas son señales de que lo social puede estar dejando paso a "la comunidad" como un territorio nuevo para la géstion de la existencia individual y coletiva, una nueva superficie o plano en el que las relaciones micro-morales entre personas son conceptualizadas y administradas." (ROSE, 2007).


Apesar das diferenças de contextos culturais e de épocas dos autores, estes subsídios podem representar pontos de reflexão quando o assunto tangenciar a participação comunitária, como no policiamento – por exemplo.
E daí, depreende-se que a sociedade como um todo – seja mais regulada, seja mais fundada em tradições comunitárias – possuí necessidades específicas, que devem ser levadas em consideração na implementação do policiamento comunitário. O ponto de equilíbrio deve ser buscado entre as novas tendências (valoração da localidade) e a identidade social e cultural do país ; O policiamento comunitário, por mais que busque privilegiar as relações locais, não pode se afastar dos valores republicanos, sob pena de constituir-se em força que desrespeita as leis que faz uso da força para preservar. A solução parece estar na atuação cada vez mais preventiva ao invés de tolerante. A prevenção pode reforçar o tecido social criando um círculo virtuoso, no qual os vínculos comunitários podem ser reforçados sem riscos para a regulação do Estado; O gestor do policiamento comunitário deve administrar determinados interesses de grupos específicos, como forma de inclusão e admissão do multiculturalismo contemporâneo.
Longe de pretender esgotar o assunto este confronto de idéias é muito mais útil à reflexão que ao completo esclarecimento de qualquer idéia. E como complemento nada reconfortante da realidade brasileira, José Murilo de Carvalho no Seminário Cultura das Trangressões, em 27/08/2007 assim contextualiza :


"O que tento dizer, tateando um pouco, é que nunca houve entre nós condições de desenvolvimenmto de uma cultura e de uma prática de respeito à lei. Em parte isso se deveu à nossa formação histórica e à nossa estrutura de classes ; em parte, à nossa tradição legalista ; em parte, ao fracasso das instituições policiais e judiciais em aplicar a lei, tanto em sua tarefa punitiva quanto no de proteger direitos. Não tivemos escolas de civismo."(CARVALHO, p.86).


Ao gestor do policiamento comunitário cabe, então, administrar a implantação e a continuidade de um policiamento que deve se apoiar nas comunidades, que por sua natureza e característica não acreditam na polícia e na justiça. Tudo isto inserido numa sociedade que precogniza a regulação nos moldes centralizadores dos franceses, mas que tem por prática e cultura o desrespeito às leis...



REFERÊNCIAS.



BUREAU OF JUSTICE ASSISTENCE. Understanding Community Policing. Bureau of Justice Assistance. Response Center. U.S. Department of Justice. EUA, Washington, DC, 1994.

CARVALHO, José Murilo de. Quem Transgride o Quê? In: Cultura das Trangressões no Brasil. Lições da História. Coordenadores: Fernando Henrique Cardoso e Marcílio Marques Moreira. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.


DHNET - Direitos Humanos na Internet. Segurança Pública, Polícia Comunitária e conselhos comunitários de seguranças - CONSEGs. (S/D). Disponível em: http://www.dhnet.org.br/3exec/novapolicia/abc/conseg.htm#3. Acesso em 07/02/2010.

FERREIRA, Gabriela Nunes. Visconde do Uruguai: Teoria e Prática do Estado Brasileiro. In: Um Enigma Chamado Brasil. 29 intérpretes e um país. André Botelho e Lilia Moritz Schwarcs (organizadores). São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

JUCÁ, Roberta Laena Costa. O papel da sociedade na política de segurança pública . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3525. Acesso em: 02/02/2010.

MARCINEIRO, Nazareno e PACHECO, Giovanni C. Polícia Comunitária. Evoluindo para a Polícia do Século XXI. Florianópolis: Insular, 2005.

PACIFIC GROVE. Community Policing. Disponível em: http://www.ci.pg.ca.us/police/compolicing.htm. Acesso em 05/02/2010.

ROLIM, Marcos. A Síndrome da Rainha Vermelha. Policiamento e Segurança Pública no Séc. XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies, 2006.

ROSE, Nikolas. ¿La muerte de lo social? Re-configuración del territorio de gobierno. Rev. argent. sociol. [online]. 2007, vol.5, n.8, pp. 113-152. ISSN 1669-3248.
Disponível em: http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1669-32482007000100008

YEUNG, Cristina. Policiamento comunitário reduz violência no Quênia. Artigo publicado em 26/11/2008, no site da Comunidade Segura. Disponível em: http://www.comunidadesegura.org/fr/MATERIA-policiamento-comunitario-reduz-violencia-no-quenia. Acesso em 07/02/2009.








(*)Trabalho apresentado à disciplina A Questão Social e os Problemas Epistemológicos das Áreas Sociais Críticas, do Programa de Mestrado Profissional Adolescente em Conflito com a Lei, da Universidade Bandeirante de São Paulo.
Autor: Herbert Gonçalves Espuny


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