O direito à identidade genética e o direito ao anonimato do doador na reprodução humana assistida



Grandes avanços tecnológicos na área da biotecnologia têm trazido benefícios incontáveis à humanidade, dentre eles as técnicas de reprodução artificial, auxiliando inclusive casais afetados pela esterilidade.
Assim, considerando a proteção dada pela Constituição, bem como pela legislação infraconstitucional, à família e ao direito de procriar, o Estado não pode negar aos seus cidadãos a adoção da técnica de reprodução humana assistida como meio de viabilizar o surgimento de uma família.
No entanto, a utilização dessa biotecnologia é responsável pelo surgimento de novos conceitos de paternidade e maternidade, não se definindo mais filiação com base no vínculo biológico, e sim nas relações baseadas nos laços de afeto.
Diante disso, surgem inúmeros conflitos entre princípios e direitos fundamentais inerentes a cada um dos indivíduos envolvidos nesse processo. Ora, o maior conflito que se pode perceber diz respeito ao direito da personalidade (e, em alguns casos, direito à vida) do receptor de conhecer a sua ascendência genética, bem como ao direito à intimidade de preservação do anonimato do doador do material genético.
No que afeta o sigilo sobre a identidade do doador, a Resolução nº. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, em seu item IV, 2, protege a identidade civil tanto de doadores quanto de receptores reciprocamente. O sigilo consiste em proibir a divulgação de dados pessoais sem a devida autorização do doador de gametas ou de embriões para implantação, os quais somente podem ser disponibilizados por critérios médicos emergenciais.
O que busca aqui é assegurar a proteção ao direito à intimidade, previsto expressamente no art. 5º, X, da Magna Carta. Porém, importa dizer que não se trata de uma regra absoluta a preservação do anonimato do doador, sendo uma questão de proporcionalidade e razoabilidade a ser aplicada no caso concreto, buscando sempre um sacrifício mínimo dos direitos envolvidos, já que não há qualquer hierarquia entre os mesmos.
Quanto ao direito personalíssimo à identidade genética, torna-se essencial a distinção deste em relação ao direto ao estado de filiação. Primeiramente, cabe frisar que o primeiro tem natureza de direito da personalidade, enquanto que o segundo de direito de família.
O estado de filiação tem, necessariamente, natureza cultural, socioafetiva, decorrendo de laços afetivos estáveis criados cotidianamente entre pais e filho. A atribuição de paternidade e maternidade exige como fundamento essencial esses laços afetivos. Portanto, o estado de filiação pode ser biológico ou não biológico (adoção, posse de estado de filiação ou inseminação artificial heteróloga).
Já o direito ao conhecimento da origem genética, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, é o direito fundamental, personalíssimo, irrenunciável e imprescritível de o ser concebido conhecer sua ascendência biológica, como implicação da inviolabilidade de sua integridade moral, visando, assim, o perfeito desenvolvimento de sua personalidade.
No entanto, é de fundamental relevância destacar que uma coisa é reivindicar a origem genética, outra coisa é a investigação de paternidade. De forma alguma, o filho pode requerer os dados genéticos e pessoais do doador anônimo com fim único e exclusivo de atribuição de paternidade, eis que há um estado de filiação pré-constituído, decorrente de relações afetivas construídas no âmbito familiar, sendo inadmissível a constituição de um novo estado de filiação.
Diante disso, extrai-se que a Ação de Investigação de Paternidade não se configura instrumento processual idôneo para se obter informações a respeito da identidade do doador de material genético, principalmente por transmitir a idéia errônea de que paternidade e estado de filiação se confundem com origem genética, bem como por impossibilitar a propositura para investigação da doadora de óvulos. Porém, não existe no ordenamento jurídico brasileiro uma ação própria para este fim, isto é, para concretizar o direito de conhecer a identidade genética.
O que deve ficar claro é que a origem biológica não mais constitui dado essencial para instituição de vínculo familiar, sendo assim, é perfeitamente possível admitir que o direito ao conhecimento da origem genética não permite atingir estado de filiação anteriormente constituído.
Ademais, convém ressaltar que, como a Ação de Conhecimento da Origem Biológica não tem escopo de estabelecimento de paternidade entre doador e o ser concebido, tampouco de desconstituição de estado de filiação (vínculo familiar) anteriormente estabelecido, não há que se falar em direito a alimentos, reciprocamente falando, nem mesmo na existência de direitos sucessórios.
Entretanto, a concretização do direito à identidade biológica deve ter uma justificativa que possibilite a primazia deste direito em detrimento ao direito de anonimato do doador. Dentre os principais motivos justificadores, podemos citar: a preservação da saúde e da vida em caso de doenças genéticas, o impedimento de uniões incestuosas (ou biológicas ou eugênicas) e a necessidade psicológica da pessoa em conhecer a origem genética, seus ancestrais.
Nesse ponto, chama a atenção um caso verídico, citado pelo mestre José Renato Nalini, que confirma a probabilidade do tema. Referido autor menciona o caso, noticiado pelo jornal La Nazione, de 18 de janeiro de 1959, de “noventa rapazes, nascidos do mesmo pai-doador”, que “viviam em um só quarteirão de Joanesburgo, em uma área relativamente pequena, sem saber que os times de futebol formados para jogos podiam ser constituídos apenas de irmãos sanguíneos”.
Enfim, é evidente a natureza categórica da análise do caso concreto para se concluir qual direito terá maior peso. No entanto, é indubitável que, na maioria dos casos, a violação da intimidade do doador de material genético pode suscitar apenas pequenos embaraços, já que não haverá a constituição de vínculo de paternidade, enquanto o desconhecimento quanto à identidade biológica pode acarretar graves sequelas físicas ou morais.
Portanto, ao menos sendo comprovadas umas das três justificativas plausíveis acima mencionadas, e havendo a ponderação entre os direitos em conflito, não há que se falar em não observância das normas éticas e jurídicas pelos laboratórios ao informá-los à criança os dados pessoais de seu ascendente biológico, desde que o intuito único e exclusivo não seja o reconhecimento de paternidade ou maternidade.
Autor: Daniele Silva Lamblém


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