A crise da presunção de veracidade



Um dos maiores mitólogos do mundo, chamado Joseph Campbell, em sua obra o Poder dos Mitos, entrevistado por Bill Moyers, editora Palas Athena, 1990, p. 13, escreveu:
“Bem, como disse antes, tudo o que você tem a fazer é ler o jornal. É uma confusão! No tocante a este nível imediato de vida e estrutura, os mitos oferecem modelos de vida. Mas os modelos têm de ser adaptados ao tempo que você está vivendo; acontece que o nosso tempo mudou tão depressa que o que era aceitável há cinqüenta anos não o é mais, hoje. As virtudes do passado são os vícios de hoje. E muito do que se julgava serem os vícios do passado são as necessidades de hoje. A ordem moral tem de se harmonizar com as necessidades morais da vida real , no tempo, aqui e agora. Eis o que não estamos fazendo...”
A atribuição de veracidade a informações prestadas por certas pessoas, como tabeliães, oficiais de registro, oficiais de justiça, entre outros, lhes dão um privilégio enorme com relação àquelas pessoas que não gozam desta presunção.
Quando os atos praticados por eles não são questionados, existe a presunção de veracidade, o que não se constitui num problema. O problema está em sabermos até que ponto esta presunção de veracidade pode ser sustentada diante de um litígio? Até que ponto este privilégio predomina?
O princípio da presunção de veracidade foi importado da França, um país com uma cultura totalmente diferente da nossa. Lá se um tabelião, por exemplo, pratica uma ilegalidade, é duramente punido, tanto civil quanto criminalmente e aqui, como sabemos, não. Ou seja, o princípio é o mesmo, porém a sua colocação em prática quando se trata de responsabilizá-los é que muda.
Este privilégio concedido a certas pessoas está em crise, pois não é raro vermos justamente estas pessoas sendo responsabilizadas pelas ilegalidades que praticam. Estas punições exemplares ocorrem diante de toda a dificuldade que a parte mais fraca tem para provar suas alegações, pois, presume-se que a parte mais forte da relação jurídica esteja falando a verdade. Imagine então se colocarmos as partes em equilíbrio em matéria de prova?
Ocorre que para ser feita prova em contrário é desproporcional o ônus levado a quem não goza desta presunção. Esta situação facilita abre espaço para a prática de abusos já que estas pessoas têm a possibilidade de se esconder atrás da “máscara da verdade” para mentir, até que alguém tire a “máscara” para demonstrar a verdade.
O problema é que o detentor da “máscara” é muito mais forte do que àquele que não a detém. Logo, é difícil tirar a máscara, embora não seja impossível. Tem-se criado extrema dificuldade para a parte mais fraca provar o impossível, senão o quase impossível ou muito difícil de ser provado para quebrar esta presunção de veracidade.
Tal posicionamento é incorreto, já que é justamente quem pratica o ato questionado, aquele que tem seu know how, que deveria ter todas as informações para sua prática correta é que deveria prová-lo. Se formos traduzir esta situação para uma relação de consumo, podemos afirmar que até prova em contrário, o fornecedor é a parte mais fraca. Esta é a lógica do absurdo!
Quando estas pessoas são questionadas é lógico que elas vão defender seus interesses, certamente não protegerão interesses da parte contrária num litígio, sobretudo sabendo que poderão ser responsabilizadas. Neste caso, como sustentar que seu ato goza de presunção de veracidade? O que podemos presumir é que ambos os litigantes irão defender seus interesses. Não se pode presumir mais a veracidade diante do litígio, pois existe conflito de interesses.
Assim, deve ser buscado o equilíbrio entre os litigantes em matéria probatória. Vale aqui lembrarmos a lição de Aristóteles, a Justiça é o equilíbrio. E como será buscado este equilíbrio? Aqui vale destacarmos a lição de Eisman, citado por Jean Bellisent, in Contribution à l´analyse de la distinction des obligations de moyens et des obligations de résultat, LGDJ: Paris, p. 274 ao afirmar que não adianta querer ter uma regra única para atribuição do ônus da prova, é preciso que este ônus recaia aquele que tem melhores condições de realizá-la. Esta decisão ficará nas mãos dos magistrados.
O noticiário cotidiano não nos deixa esquecer que, em que pesem as belas disposições constitucionais em vigor, a “promessa não cumprida” do primado dos direitos individuais atinge de modo diverso as relações jurídicas havidas entre particulares e aquelas decorrentes da relação entre estes e o Poder Público. Quando em jogo interesses tutelados ou resistidos pelo Estado, a efetividade dos direitos e garantias fundamentais por razões de ordem jurídico-processuais, materiais e econômicas se torna uma realidade ainda mais distante. E esse distanciamento ainda se apresenta mais triste entre nós, que convivemos com um Estado inimigo, que a todo tempo se recusa a reconhecer direitos a não ser que estes tenham sido judicialmente afirmados, após o esgotamento de intermináveis instâncias.
A presunção de veracidade dos atos da Administração cessa diante de seu questionamento ou de sua impugnação. Segundo preconizam os que perfilham esse entendimento, não decorreria da presunção de veracidade a transferência do ônus da prova da ilegalidade para o particular interessado em ver anulado o ato administrativo, cabendo ao Poder Público o ônus de demonstrar os fatos que fundamentaram sua atuação.
A crise dessa presunção revela-nos e reflete-se como uma concepção autoritária do modelo de Estado, em que os atos de governo, ou neste caso, os atos administrativos são uma manifestação de soberania estatal, tal qual ocorria nas monarquias absolutistas e no Direito Canônico, uma vez que as ações emanadas do soberano eram provenientes de Deus e, por isso, eram sagradas, e por isso eram reais.
Resolver o problema que assumiu essa feição de gravidade é o marco inovador para a crise, qual seja, a responsabilização dos agentes que usando a presunção de veracidade dos atos que pratica, os realiza mal, ferindo de morte o direito do cidadão.
Assim, conforme pudemos demonstrar, a presunção de veracidade deve deixar de existir quando aquele que goza dela estiver em litígio, devendo haver equilíbrio na produção de provas e não ser imposto um ônus excessivo a parte mais fraca da relação jurídica ao se exigir que esta prove o contrário.
Robson Zanetti é Advogado. Doctorat Droit Privé pela Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Corso Singolo em Diritto Processuale Civile e Diritto Fallimentare pela Università degli Studi di Milano. Autor de mais de 150 artigos , das obras Manual da Sociedade Limitada: Prefácio da Ministra do Superior Tribunal de Justiça Fátima Nancy Andrighi ; A prevenção de Dificuldades e Recuperação de Empresas e Assédio Moral no Trabalho (E-book). É também juiz arbitral e palestrante. [email protected]
Autor: robson zanetti


Artigos Relacionados


Responsabilidade Tributária

As Implicações Patrimoniais Sobre A Meação Decorrente Do Aval Consentido Pelo Cônjuge Sócio De Uma Sociedade Limitada

Princípio Do Ônus Da Prova

Da Concorrência Desleal Pela Utilização Ilegal De Nomes De Domínio Público Como Nome De Domínio Particular Na Internet

A Volta Ao Mundo Contratual: De Aristóteles A Aristóteles

A Volta Ao Mundo Contratual: De Aristóteles A Aristóteles

A Prova Da Utilização Do Serviço Telefônico