Inexistência de hierarquia entre interesses coletivos e individuais



Flávia Muniz Felix
Graduada no curso de direito do Centro Universitário Curitiba
Pós-graduanda em direito empresarial e civil pela Abdconst – Academia Brasileira de Direito Constitucional

Atualmente o Brasil adota o governo do Estado Democrático, o qual privilegia o bem estar social e os direitos fundamentais. Estes nada mais são do que o conjunto de direitos e garantias de proteção dos seres humanos, que limitam o poder estatal sobre a sociedade.
Entretanto, há a herança de um princípio antigo, do qual ainda se trata muito, qual seja, o da supremacia dos direitos públicos em face aos direitos privados, o que se encontra em confronto com aqueles. Isso porque num conflito no qual há embate entre um interesse coletivo e um individual, muitas vezes aquele ainda predomina sobre esse sob o fundamento do princípio da supremacia. Essa prevalência acaba por ferir os direitos fundamentais, na medida em que os limita sob a justificativa de que se deve dar preferência aos interesses coletivos.
Ocorre que, nos dias de hoje a linha entre o direito coletivo e o individual se encontra tênue, misturando-os por vezes, haja vista que ambos pressupõem um mesmo objetivo, qual seja a proteção dos seres humanos.
A Carta Magna de 88 é uma constituição cidadã, que privilegia os direitos individuais e fundamentais sobre os públicos, quando protege a igualdade, a cidadania, a segurança, a propriedade privada e a dignidade da pessoa humana.
Por meio da leitura de nossa Carta Magna, verifica-se que ela tende à proteção do homem, sem apresentar regra geral de limitações aos direitos, liberdades e garantias fundamentais. Não há na Constituição uma escala hierárquica de valores ou de princípios, ao contrário, ela equipara interesses coletivos e individuais. Nem mesmo há previsão sobre o princípio da supremacia do interesse público.
O que se observa na Carta Magna de 88 é a idéia de unicidade entre direitos, interesses e valores, sem a prevalência de um ou de outro. Portanto, verifica-se que inexiste hierarquia entre eles.
Cumpre ressaltar, como suscita Daniel Sarmento, ao citar Canotilho, há somente três possibilidades de restrição aos direitos fundamentais:
“é preciso primeiramente recordar que os limites aos direitos fundamentais podem apresentar-se, basicamente, sob três formas diferentes: a) podem estar estabelecidos diretamente na própria Constituição; b) podem estar autorizados pela Constituição, quando esta prevê a edição de lei restritiva; e c) podem, finalmente, decorrer de restrições não expressamente referidas no texto constitucional”
Destarte, não há como simplesmente resolver um conflito de interesses com a aplicação do princípio da supremacia do interesse público.
Os princípios têm como pressuposto a harmonização e adequação das normas, o que não se observa com a aplicação do princípio da supremacia do interesse público. Este lembra o Estado Absoluto, em que o poder do governo era ilimitado. Isso porque tal princípio trata-se de uma regra de prevalência que impede o sopesamento de interesses.
Conforme já mencionado, os interesses coeltivos e individuais possuem o mesmo objetivo, o que os torna inseparáveis. De tal modo, a prevalência de um sobre o outro resta prejudicada, já que ambos trabalham juntos.
Não se pretende aqui negar a existência de situações em que há conflito entre os interesses coletivos e individuais, mas sim, demonstrar que em tais casos deve haver um juízo de ponderação e não a aplicação da resposta mais fácil, que é o princípio da supremacia do interesse público, o qual não mais supre as necessidades atuais.
A idéia do Estado Democrático descrita na Constituição Federal de 88 é a de que não deve haver prevalência entre interesses, mas sim uma unidade entre eles. Neste sentido, o princípio da proporcionalidade vem de encontro às disposições constitucionais, visto que tenta harmonizar os interesses em confronto, sem prejuízo de um ou de outro.
Sendo assim, na situação de conflito entre um interesse coletivo e um individual, deve ser realizada análise das normas e princípios em questão, com a utilização da ponderação a fim de se alcançar uma solução que não ofenda os direitos fundamentais.
Como exemplo, pode-se citar o conflito recorrente entre a liberdade de imprensa com o direito de imagem de um indivíduo. É muito comum a publicação de informações sobre pessoas públicas, que por diversas vezes são inclusive falaciosas.
A fim de tornar a presente discussão mais prática, pode-se citar a decisão da Nona Câmara Cível do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo quanto ao recurso de apelação n° 398.145-4/5-00.
No caso em tela, um político ajuizou ação de indenização por danos morais em face de uma sociedade empresária de jornal, a qual publicou uma notícia ofensiva sobre ele. Alega o autor que o conteúdo da notícia é mentiroso.
A decisão do Tribunal de Justiça foi no sentido de manter a sentença de primeiro grau, que julgou procedente a ação, com a condenação da ré ao pagamento de danos morais ao autor, sob o fundamento de que o direito individual à honra deste foi ferido.
A discussão da referida decisão irou em torno do conflito entre o direito à honra e o direito à informação, o qual é um interesse público. Alega-se que muitas vezes o direito de informar ultrapassa os limites, ferindo a honra e imagem de alguém, o que é um interesse individual. Ambos são direitos constitucionais, que quando se encontram em confronto, deve-se aplicar o princípio da proporcionalidade a fim de solucionar o embate.
Na decisão supra mencionada entendeu-se que a ré ultrapassou os limites do direito de informar, o que feriu direitos fundamentais do autor.
De tal modo, não se deve suscitar o princípio da supremacia do interesse público, sob a alegação de que a informação é direito de todos em face à honra de um indivíduo, pois se estaria ferindo o próprio princípio basilar da Carta Magna, o da dignidade da pessoa humana. Deve sim haver a análise do caso concreto para se avaliar até que ponto o direito à informação se sobrepõe aos direitos da personalidade.
Os segredos de uma pessoa, jurídica ou física, não podem estar à mercê da população em qualquer caso. Portanto, na inexistência de hierarquia entre direitos e interesses, deve-se fazer um juízo de ponderação quando os referidos interesses se chocam.
Autor: Tedeschi & Padilha Advogados Associados


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