O Direito Do Estigmatizado Sob A égide Da Constituição Federal Brasileira: Prerrogativa Do Estado?



1. INTRODUÇÃO

O termo estigma é de origem grega e era empregado para designar indivíduos que possuíam algum sinal corporal que de alguma forma, para tal povo, determinava o mal alojado naqueles que os apresentava (GOFFMAN[1], 1988).

Presentemente, o vocábulo é utilizado de maneira equivalente ao passado, todavia relaciona-se, sobretudo, com os aspectos psicológicos que essa "marca" traz aos estigmatizados, do que com os aspectos físicos evidentes no corpo.

Uma vez visualizado tais aspectos num indivíduo ou grupo social, inevitavelmente origina-se o preconceito, fruto da desinformação, que desapropria o outro de seu eu, excluindo-o da vida deixando-o alienado da sociedade.

Desta forma, o presente artigo, através de pesquisa bibliográfica, buscará evidenciar que a construção de uma sociedade inclusiva deve transcender a legalidade constitucional, bem como explanar acerca do estigma e o estigmatizado, com o objetivo de contribuir para uma nova postura atitudinal frente ao diferente.

2. ESTIGMA, IDENTIDADE E INCLUSÃO

"O principal efeito da força do hábito reside em que se apodera de nós a tal ponto que já quase não está em nós recuperarmo-nos e refletirmos sobre os atos a que nos impele. Em verdade, como ingerimos com o primeiro leite hábitos e costumes, e o mundo nos aparece sob certo aspecto quando o percebemos pela primeira vez, parece-nos não termos nascido senão com a condição de submetermo-nos também aos costumes; e imaginamos que as idéias aceitas em torno de nós por nossos pais são absolutas e ditadas pela natureza. Dai pensarmos que o que está fora dos costumes está igualmente fora da razão".

MONTAIGNE (1533 -1592)

Conforme Cimpa[2](1987) apud Bulgacov et al (2001), a identidade é um processo de construção contínuo, um fenômeno social que está arraigado fortemente ao contexto social e histórico onde os indivíduos estão inseridos.

Por conseguinte, a identidade é um processo que se inicia com o nascer de um indivíduo e se perpetua ao longo de sua existência, sendo sempre objeto de expectativas do grupo no qual este indivíduo se encontra.

Neste sentido, segundo Bulgacov[3] et al (2001) a identidade abarca a igualdade correspondente ao grupo social, todavia ela também é diferenciada por singularidades do indivíduo frente ao grupo.

No caso dos estigmatizados, essas singularidades de acordo com Goffman[4] (1988, p. 116) é denominado de "Identidade Pessoal" que se caracteriza por ser uma imagem construída pelos outros. Entretanto, o indivíduo com o estigma também constrói sua auto-imagem a qual Goffman[5] (1988, p. 114) conceitua como "Identidade do Eu".

Quando a "Identidade do Eu" é carregada pelo senso comum o indivíduo começa trazer para si os mesmos preconceitos e discriminações que a sociedade tem em relação a ele, portanto, remete a este, estados perenes de insegurança e angustia.

Todavia, este estigma que o indivíduo carrega possui duas denominações segundo Goffman[6] (1988): a de desacreditado, quando seu atributo é imediatamente perceptível aos olhos dos outros, e a de desacreditável quando essa peculiaridade não é muito perceptível.

Concomitante ao pensamento de Goffman[7] (1988) o indivíduo desacreditado se sente deveras contrariado com o modo pelo qual é tratado pela sociedade e tende a achar que sempre será tratado com desigualdade, logo tende a se auto-defender dos outros indivíduos, dando início a um processo cíclico de constrangimento naqueles que não o vêem de modo diferente.

Em contrapartida, o indivíduo desacreditável esconde seu estigma o quanto puder, pois acredita que é melhor ser "normal" a estigmatizado.

Deste modo, camufla suas aparências com mentiras ou encobrimentos para diminuir a tensão causada por sua presença.

Outrossim, diante do discorrido até o momento, pode-se salientar que para inibirmos tais tensões provocadas pelos indivíduos estigmatizados é imperioso revermos além da posição da sociedade ante o estigmatizado, revermos ainda a postura do Estado com os mesmos. Neste intuito, primeiramente podemos analisar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil fixados pela Constituição Federal de 1988 em seu art. 3º: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A partir dessa análise, conforme lição de Rocha[8] (2001) percebe-se que o legislador utilizou-se de verbos que exprimem caráter dinâmico ao texto constitucional: promover, erradicar, construir, reduzir.

Destarte, para que esses objetivos sejam impetrados de modo concreto se faz necessário e até imperativo um comportamento ativo, que traduza-se em ações praticas na sociedade.

Todavia, tais ações devem pressupor que não é apenas o Estado que modifica a conduta de seu povo em relação aos estigmatizados, mas, sobretudo, é a sociedade a mola propulsora dessas ações; sociedade esta, que é composta em sua maioria por indivíduos que reprimem impetuosamente o diferente e anômalo.

Neste diapasão, ainda discorrendo sobre o ordenamento jurídico, o caput do art. 5º de nossa Carta Magna expressa in verbis: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...).

Para Rousseau apud Comparato[9] (1993, p. 71):

O fundamento legitimador da sociedade é o pacto de submissão de todos às deliberações que sejam do interesse comum, ou seja, a supremacia da vontade geral sobre as vontades particulares. A vontade geral manifesta-se por meio de leis e só pode exprimir-se dessa maneira. A lei não é, pois, uma deliberação coletiva qualquer, mas somente aquela que parte de todos para se aplicar a todos.

Deste modo, para que exista equiparação entre os direitos de uns e outros, é necessário que os textos jurídicos realmente emanem dos anseios da sociedade, pois somente esta pode legitimar seu escopo, haja vista que não se pode consentir regras que desnivelem para nivelar.

Igualmente, é cogente que o tais normalizações legais sejam aplicadas não como aconselhamentos ou sugestões, mas como uma disciplina que obriga determinadas condutas, pois a natureza peculiar do Direito é a imposição e não meros norteamentos.

Assim, ante ao exposto, pode-se afirmar que o maior repto para a implantação dessa mudança atitudinal na sociedade, não é apenas fazer cumprir o que determina nossa Constituição, mas sim, conseguir impulsionar e contribuir para o convencimento de que a heterogeneidade (e não o contrário) é um pressuposto da vida, e nós como protagonistas desse processo devemos refletir sobre a nossa responsabilidade com o futuro, que se concretiza beneficamente quando nos dispomos (apesar das contendas) a modificar o presente.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Amaral e Coelho[10] (2003, p. 06)acreditam que a sociedade fixa inúmeras classificações para as pessoas e salientam que "qualquer pessoa que não caiba nas qualificações previstas ou não esteja no lugar pré-determinado torna-se problemática e pode vir a ser socialmente marcada".

Desta forma, os indivíduos que fogem a essa "classificação" não geram nenhuma expectativa na sociedade à sua volta, de maneira que, a simples visão do diferente torna esse indivíduo estigmatizado.

Igualmente, o estigma é tão devastador que não abarca apenas o dono do estigma, ele também atinge as pessoas ao redor do indivíduo estigmatizado (esposa, filhos, amigos, pais, etc.) levando-os igualmente a deter as marcas do preconceito.

Infelizmente, o preconceito e a presente discriminação acerca dos estigmatizados, afloram da abstração e se materializam em julgamentos de indivíduos superiores e inferiores, desenvolvidos ou subdesenvolvidos, "normais ou anormais".

Somente uma nova postura atitudinal poderá viabilizar a inclusão destes indivíduos na sociedade, inserindo-os de modo completo e total, dando-lhes subsídios para atuarem como sujeitos e libertando-os das "marcas" ocasionadas pelo desrespeito.

Afinal, diante de tantas inovações, frente ao novo mundo, face à era da informação e conhecimento, será possível levar essa dicotomia adiante?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Rita e COELHO, Antonio Carlos V. Nem Santos Nem Demônios. Imagem Social E Auto-Imagem Dos Deficientes Físicos Em São Paulo.  In: Revista Digital Os Urbanitas, ano I, vol. 1, n.0. Disponível na Internet via World Wide Web, [1985]  2003.

BULGACOV, Andréa Ribeiro; et al. Identidade Profissional E Projeto De Vida: Leitura Da Construção Da Identidade Em Adolescentes. Artigo apresentado no XXVIII Congresso Interamericano de Psicologia. Santiago: Chile, 2001.

COMPARATO, Fábio Konder. Igualdade, Desigualdades. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, 1996.

GOFFMAN, Erving. Estigma – Notas Sobre A Manipulação Da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988.

ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. Ação Afirmativa – O Conteúdo Democrático Do Princípio Da Igualdade Jurídica, In: Revista Trimestral de Direito Público n. 15. 2001.

VADE MECUM. Obra Coletiva Da Editora Saraiva Com A Colaboração De Antonio Luiz De Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz Dos Santos Windt E Lívia Céspedes. São Paulo: Saraiva, 2006.




Autor: Carolina Canhette


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