Patrimonialismo



1. Introdução

A formação, ou surgimento, deste modelo patrimonialista que tem se desenvolvido juntamente com o Estado brasileiro, vem moldando este e sua classe dirigente desde o início de sua formação.

Este processo teve início a partir do período colonial, onde o Brasil se encontrava apenas em condição de patrimônio da coroa portuguesa. Como tal, este enviava seus funcionários que vinham para estas terras com objetivo de ocupar cargos administrativos. Através da posição que estes cargos lhes conferia, estes funcionários se mostravam corruptos e infiéis às ordens do rei. Devido a posição e status de nobreza que tais cargos conferiam, estes passaram a (inclusive) ser vendidos; demonstrando que não havia limites entre o público e o privado, pois quem possuía algum destes poderes, adentrava o outro. Os recursos advindos do patrimônio pessoal ou públicos (tributação) eram gastos de maneira indistinta.

Estas práticas patrimonialistas criaram raízes em nosso território, determinando a formação, desenvolvimento e o modo de funcionamento de nosso Estado e burocracia.

As características que moldaram estes aspectos, no caso brasileiro, prosseguiram seu desenvolvimento e foram objeto de estudos sobre seu processo ao longo dos séculos. Estas características, que deram início à formação do patrimonialismo brasileiro, podem ser observadas através de diversas obras que serão analisadas, tais como de Raymundo Faoro, Maria Sylvia, Sérgio Buarque e outros materiais que se mostrarem úteis e/ou necessários.

2. A institucionalização do patrimonialismo Brasileiro

Podemos observar, através da descrição realizada por Faoro, que os funcionários do rei eram o "outro eu do rei" . Seguindo conforme este aspecto observado pelo autor, os funcionários reais que ocupavam os cargos públicos se utilizavam de suas posições, como representantes do rei, para proveitos pessoais, ou seja: se utilizavam dos cargos públicos, que lhes eram conferidos conforme suas ligações pessoais, para proveito próprio. "O funcionário é o outro eu do rei, um outro eu muitas vezes extraviado da fonte de seu poder." (FAORO, 2001, p. 199). As funções públicas eram instituídas apenas em cumprimento às ordens reais. Contudo, resultou na formação de uma classe dominante contemplada com diversas regalias.

Os cargos públicos, neste período, eram atribuídos aos letrados e aos homens armados. O controle do Estado era exercido por uma estamento burocrático criado, a partir de nobiliações, para esta finalidade. Desta maneira, devendo os súditos obediência às ordens reais, deviam também obedecer os funcionários do rei.
"A luz do absolutismo infundia ao mando caráter despótico, seja na área dos funcionários de carreira, oriundos da corte, não raro filhos de suas intrigas, ou nos delegados locais, investidos de funções públicas, num momento em que o súdito deveria, como obrigação primeira, obedecer às ordens e incumbências do rei." (FAORO, 2001, p. 199)

Os funcionários do rei, por sua vez, não possuíam funções delimitadas ou hierarquias definidas; excedendo às ordens reais e assumindo, desta maneira, um caráter de puro mando e desmando a partir da posição que estes assumiam no controle do Estado. Os funcionários eram corruptos e infiéis às ordens do rei. Contudo, também eram patrimonialistas como o rei. "Agora, o sistema é o de manda quem pode e obedece quem tem juízo, aberto o acesso ao apelo retificador do rei somente aos poderosos." (FAORO, 2001, p. 200)

Neste período, outra característica a ser observada é mistura entre o poderes, ou seja: as áreas de administração, legislativo e o judiciário eram confundidos e exercidos pelas mesmas pessoas. Quem ocupava um cargo público se revestia de poderes e regalias que só esta condição lhes permitia. "...a inquieta, ardente, apaixonada caça ao emprego público. Só ele oferece o poder e a glória, só ele eleva, branqueia e decora o nome" (FAORO, 2001, p. 440)

Portanto, podemos observar que no sistema patrimonialista em que a colônia estava submetida, esta era moldada através de uma burocracia que assegurava o controle das formas de obtenção de recursos, intervindo diretamente no comércio e nas exportações, que eram as principais fontes geradoras de renda. Através desta intervenção do Estado português na colônia, aquela garante a sustentação das camadas superiores vinculadas à nobreza, permitindo à elas participação dos setores de exportação e comércio.

No entanto, devemos realizar outra observação: estes cargos eram instituídos com objetivo de organizar a sociedade e o sistema de produção, que era baseado em grandes latifúndios. Esta organização, baseada neste tipo de sistema produtivo, manteve estas características por longo período e, mesmo deixando de ser colônia, já era tarde. Os costumes e práticas importados de Portugal já estavam enraizados no Brasil, tendo adquirido outros valores e conotações.

No período colonial, como descrito por Faoro, as terras do território brasileiro eram pertencentes ao rei. Após esse período, as terras já estavam em posse de brasileiros, descendentes de portugueses ou não (os Senhores, em algumas gerações futuras). No entanto, estes mantiveram as mesmas práticas que eram utilizadas no período anterior. Em seu território, os senhores criavam e executavam as leis. Em seu território, os senhores possuíam todos sob seu comando e favoreciam à seus próximos. Em seu território, os poderes dos senhores eram ilimitados.

Sérgio Buarque (1986, p. 73-75) afirma que nossas bases coloniais foram formadas fora do meio urbano e que as cidades eram apenas dependências daquelas. As profissões liberais e a política eram exercidas por filhos de fazendeiros, que acabaram por ser responsáveis pelo desenvolvimento urbano e que, futuramente, terminaria por arruinar o modelo anterior de funcionamento do Estado e suas bases econômicas, devido à ideais de cunho liberal. Junto à essas medidas, foi instituída a lei Eusébio de Queirós, que seria determinante para o fim da escravidão, demonstrando os preceitos liberais que faziam parte do mundo urbano naquele período. Apenas em Pernambuco as bases coloniais tiveram o início de sua formação em meios urbanos em detrimento do rural.

A preferência dos senhores de engenho pelo mundo rural em detrimento do urbano se dava pelo fato de que, em suas terras, os senhores possuíam total domínio, todos lhe obedeciam, tiravam seu sustento e, também, lá possuíam pessoas que exerciam todos os tipos de atividades; ou seja: um pequeno Estado independente dentro de outro, onde prevalecia somente sua autoridade e vontade. Esta é uma cópia do modelo antigo de propriedade, onde desde os escravos até os filhos dos senhores representam uma família, o prolongamento de um corpo que é, por sua vez, subordinado ao patriarca. Devido ao fato dessas fazendas possuírem todos os tipos de atividades que eram necessárias à sobrevivências das pessoas, as áreas urbanas eram pouco freqüentadas (HOLLANDA, 1986, p. 81). Contudo, na formação dos centros urbanos e criação dos cargos para administração das funções públicas estavam eles novamente; os letrados e mais instruídos do período: os senhores e/ou seus próximos. No entanto, qual seria a referência para estes que, desde o período colonial, conheciam as mesmas práticas e que, para eles, se faziam de maneira tão natural? As mesmas práticas importadas de Portugal e que se adaptaram tão bem em novas terras.

Dentro do modelo antigo de propriedade (rural), o poder destes senhores não possuía limites, sendo por esse motivo que eles tinham preferência por esse sistema, baseado na grande propriedade. Por outro lado, com a ascensão das profissões liberais e do mundo urbano, os personagens com maior capacidade para assumirem essas funções eram os próprios senhores e seus descendentes; e foi o que ocorreu (HOLLANDA, 1986, p. 80). Segundo Nunes Leal (1976, p. 22-23), esta condição que a propriedade lhes confere é fundamental para habilitar estes Senhores de terras à liderança regional. E, se isso não ocorre de maneira direta (lideranças regionais), ocorre de modo indireto, através da realização deste exercício por indivíduos que possuíam estreita relação com estes senhores. O modelo de funcionamento dos engenhos, onde o senhor possui poder ilimitado dentro de suas possessões perante seus escravos, família e todos que residiam em suas posses, será utilizado como parâmetro para a formação das instituições urbanas, onde as relações pessoais e seus valores familiares possuem primazia em detrimentos das impessoais. E dessa forma podemos observar a formação de novas estruturas urbanas, inclusive políticas, mas com modelos de funcionamento arcaicos devido à seus ocupantes (HOLLANDA, 1986, p. 82).

Desta maneira podemos verificar, através das palavras de Sérgio Buarque, a formação de um Estado invadido por valores familiares e que, devido à seu enorme e indiscutível poder, deixou marcas que formam uma das principais características deste país. Segundo este autor:
"O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades. Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família." (HOLLANDA, 1986, p. 82)

As primeiras idéias republicanas, expressadas em forma de vários movimentos realizados no século XIX, foram difundidas por aristocratas que possuíam propriedades que funcionavam de acordo com este mesmo modelo arcaíco o qual estes próprios revolucionários criticavam (HOLLANDA, 1986, p. 87). Segundo Sérgio Buarque (1986, p. 88), pelo fato de não haver uma burguesia urbana , esta (cidade) passou a ser dominada pelos senhores que, por sua vez, mantendo suas bases e mentalidade agrárias e, estando a frente de instituições que lhes conferiam maiores poderes, passaram a concentradas terras nas mãos desta mesma classe, mantendo o sistema senhorial do mundo rural tanto nas fazendas como nas cidades. Na obra de Maria Sylvia (1969, p. 139), é retratado o fato do poder público subsidiar a infra-estrutura do sistema produtivo para que, desta maneira, ocorresse melhoramentos na produção, transporte e aumentos na arrecadação de tributos. Contudo, também devemos observar que, segundo Nunes Leal (1976, p. 23), os ocupantes dos cargos públicos eram os mesmos senhores de terras (ou seus próximos). Consequentemente, podemos constatar que os senhores que, ao mesmo tempo eram os líderes políticos regionais e ocupantes dos cargos públicos, realizavam bem-feitorias a si próprios; com a finalidade de gerar aumento de produção em suas propriedades.

Ainda na obra de Maria Sylvia (1969, p. 140-141), podemos realizar outra observação: devido a necessidade de arrecadação de tributos, o poder público consentia a ocupação irregular de terras para que estas passassem a produzir. Contudo, conforme observação realizada acima, por Sérgio Buarque (1986, p. 88), verificamos que as terras estavam sendo concentradas nas mãos dos senhores . Desta maneira, também podemos constatar que os senhores de terras, que eram os representantes do poder público segundo Nunes Leal (1976, p. 21), ocupavam as terras de modo irregular e/ou consentiam estas ocupações a seus próximos.

Em seguida, podemos observar que a colonização portuguesa não tinha como objetivos a formação de cidades porque delas advinham instituições de poder local, o que poderia ser responsável pela perda de controle de Portugal sobre sua colônia, e esta mentalidade continuou vigente (HOLLANDA, 1986, p. 95). Desta maneira, enquanto o país possuísse bases agrárias, os senhores continuariam tendo total controle e poder sobre essas propriedades, estando livres do meio de dominação que representavam as cidades. Por outro lado, aqui no Brasil, os responsáveis por assumirem as funções do mundo urbano e político foram os mesmos senhores de engenhos, seus descendentes ou próximos à estes, ou seja: os meios de dominação permaneceram nas mãos dos mesmos personagens que já os possuíam, não alterando a situação vigente, baseada no patriarcalismo.

"A família patriarcal fornece, assim, o grande modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as relações entre governantes e governados, entre monarcas e súditos. Uma lei moral e inflexível, superior a todos os cálculos e vontades dos homens, pode regular a boa harmonia do corpo social, e portanto deve ser rigorosamente respeitada e cumprida." (HOLLANDA, 1986, p. 85)

Este modelo de Estado, formado por este patriarcalismo, estava em desacordo com o que deveria ser. Segundo Sérgio Buarque, o Estado nasce para impor limites aos excessos praticados pelas famílias; fato não verificado aqui.

"O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo." (HOLLANDA, 1986, p. 141)

No Brasil ocorre esta dificuldade em desvincular os valores familiares das funções públicas. Segundo Sérgio Buarque (1986, p. 144), os homens públicos de sucesso eram aqueles que haviam sido enviados para outros lugares para se capacitarem e que acabaram perdendo esses valores. Este autor ainda cita que Joaquim Nabuco compartilha desta mesma idéia. Ainda para este autor, nossas instituições públicas são tomadas pelos governantes como algo de interesse próprio, com finalidades pessoais e particulares, diferentemente do ideal de burocracia expressado por Weber (HOLLANDA, 1986, p. 147).

E finalizando, o modelo de governantes que se moldou a partir de tais costumes ficou caracterizado pela cordialidade, que tratam de situações que deveriam ser de interesse geral e caráter impessoal da mesma maneira como tratariam de seus problemas pessoais, mas sempre mantendo as relações de poder intacta, na qual os mesmos grupos sempre se encontram acima dos demais. Uma cordialidade que, segundo este autor, serve de disfarce para suas verdadeiras intenções, que consistem em abranger todos em seu círculo familiar de maneira a mantê-los sob seu controle e, por conseguinte, manter sua supremacia social sob os demais (HOLLANDA, 1986, p. 147). Este tipo de relação pessoal se encontra até na religiosidade da população, que trata de maneira muito íntima até mesmo os Santos de sua devoção. Assim, como observações realizadas por estrangeiros, nas quais se atentam para a necessidade de fazerem amizades antes de fazerem negócios, este tipo de atitudes são comuns em outras esféras, como nas estatais. Desta maneira, o homem cordial abrange, em seu círculo familiar, tanto as relações de cunho particular como as de finalidade pública, não permitindo que o Estado exerça sua função que é, segundo Sérgio Buarque, "a superação dessa ordem doméstica e familiar e que faz do indivíduo um cidadão portador de direitos e deveres perante o Estado." (HOLLANDA, 1986, p. 141)

3. Bibliografia

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder-F ormação do patronato brasileiro, 3° ed. Revista, 2001

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. José Oçympio. ed. 1986.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1976. 3°. ed.


Autor: Rogério Reis


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