O Prazo Razoavelmente Excedido



O prazo razoavelmente excedido
Warley Belo
Advogado Criminalista
Mestre em Ciências Penais / UFMG

“...mata a esperança, que é o último remédio
que deixou a natureza a todos os males.”
Vieira
(Sermões, 1959, t. III, p. 278)

O processo criminal não pode eternizar-se como a espada de Dámocles, pairando indefinidamente sobre a cabeça do preso provisório. Há um limite que não se pode depender da idiossincrasia de cada juiz, ou Tribunal, sobre os limites do termo prazo razoavelmente excedido.
Graves são os malefícios da prisão cautelar ou provisória, mormente para o primário e de vida pregressa íntegra. Um só dia basta para marcar, indelevelmente, a vida de um cidadão. Evandro Lins e Silva aponta que “a prisão, ao contrário do que se sonhou e desejou, não regenera: avilta, despersonaliza, degrada, vicia, perverte, corrompe, brutaliza” .
Há réus que já se encontram na iminência de cumprir a integralidade da sanção, mas presos cautelarmente. Outros tantos poderiam já ter alcançado benefícios da Lei de Execução Penal, como o regime aberto ou o livramento condicional, se na fase de execução. Quiçá, não duvidamos, haja quem tenha saldo de prisão por ter ficado preso provisoriamente mais tempo do que a sentença lhe impôs, ou pior, ter-se descoberto, ao final do procedimento, que se tratava de um inocente.
Conseqüência desses graves problemas vigora, hoje, a Emenda Constitucional nº 45, a chamada Emenda de Reforma do Poder Judiciário.
A emenda seria teoricamente prescindível no que tange ao excesso de prazo para o término do processo. Esse excesso, desde sempre, infringe três princípios constitucionais, pacificamente: o da dignidade humana , o do devido processo legal e o da proibição de prévia consideração da culpabilidade . Entretanto, a emenda se fez necessária tamanha a despreocupação dos Tribunais inferiores que mantêm réus definitivamente presos, sob o manto cego da provisoriedade.
Traz, agora, a Constituição Federal, um princípio universal, democrático, não obstante já esposado na Carta, existente em pactos internacionais e declarado, aos quatro ventos, pelos maiores juristas pátrios. Trata-se do princípio da razoabilidade, elencado no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, onde garante, a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Além disso, o § 3º, do mesmo artigo, diz que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional (...) serão equivalente às emendas constitucionais.
Talvez, agora, possamos interpretar o Código de Processo Penal com olhos na Constituição. Fortuitamente, passaremos a entender a prisão, e não a liberdade, como provisória.
Os tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil são, no caso, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, também, a Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto de São José da Costa Rica que, nos termos do Decreto n° 678/92, está em vigor no Direito Interno brasileiro, desde 9 de novembro de 1992.
Ratificados pelo Brasil, esses tratados incorporam os enunciados direitos individuais, com o mesmo status constitucional. É dizer: liberdade provisória não é favor, é direito do indivíduo.
Tem-se, ainda, em sede infraconstitucional, no Código de Processo Penal, o artigo 648, inciso II, que configura a prisão cautelar como coação ilegal, se há excesso de prazo.
A doutrina mais abalizada é uníssona.
Veja-se, v. g., Ro¬gério Lauria Tucci: "Afigura-se, com efeito, de todo inaceitável a delonga na finalização do processo de conhecimento (especialmente o de caráter condenatório), com a ultrapassagem do tempo necessário à consecução de sua finalidade...”
Também Alberto Silva Franco: "Nada justifica o prolongamento do processo, com a submissão do acusado a uma medida de coerção pessoal que o despoja, por tempo indefinido de sua liberdade. A duração temporal do processo tem de ser devidamente demarcada, não só em respeito aos princípios constitucionais já enunciados, mas também em consideração ao princípio de inocência, que não suporta que um acusado fique preso, a título provisório, no aguardo, sem limitação temporal, do encerramento do processo penal. No direito processual penal brasileiro, o critério da 'razoabilidade', sem a fixação do número de dias ou meses, em relação à duração da prisão cautelar, foi substituído por um critério pretoriano, que resultou da adição acumulada dos prazos estabelecidos para diferentes procedimentos.”
A lei constitucional, os tratados ratificados, o Código de Processo Penal, as conclusões dos grandes processualistas, de tudo emana tão solar clareza que deve estar ofuscando olhos. Vige um certo temor nas cortes em aplicar plena e imediatamente a Constituição ou as convenções assinaladas. Aplicam, ao revés, uma aritmética jurídica sem nenhum fundamento legal, mas com acolhida certa pelos detratores da Carta cidadã.
Para alguns Tribunais, deve, o prazo, ser contado de maneira global atingindo a marca de 81 dias, acrescentado de mais 20 dias se arroladas testemunhas pela defesa... Todavia, pela inteligência dos arts. 535 do Código de Processo Penal e 2º da Lei n. 1.508, de 1951, os autos da prisão em flagrante devem ser remetidos a Juízo nas 48 horas seguintes. Também o Código de Processo Penal determina o prazo de dez dias para o término do inquérito e sua remessa ao Juízo, em se tratando de réu preso. Igualmente, a denúncia deve obedecer ao prazo do art. 46 do Código de Processo Penal. É imperativo. Ultrapassado o lapso fatal previsto nesses artigos, é de se reconhecer o constrangimento ilegal causado pelo excesso de prazo .
A justificação que se permite, no art. 401 do Código de Processo Penal, é quanto à demora da instrução. Admite-se a justificação, mas há quem apenas a admita para o efeito de não responsabilizar o Juiz.
José Barcelos de Souza, Espínola Filho, Hélio Tornaghi, Basileu Garcia são alguns processualistas que apontam como acertada a contagem individual dos prazos. O próprio Supremo Tribunal Federal conta separadamente os prazos. Não considera possível surgir constrangimento ilegal apenas quando se fizer excedido o total dos prazos: “O excesso de uns não pode ser compensado pela economia de outros” . Portanto, v. g., o prazo de dez dias para remessa a juízo do inquérito, no caso de prisão em flagrante, é peremptório e fatal, dando ensejo a habeas corpus a sua violação.
Desculpas múltiplas, para o excesso de prazo, existem: necessidade de chamamento por edital de co-réu, intenso volume de serviço das Varas Criminais, réu perigoso, crime grave, repercussão na mídia etc, mas o Estado, porque expresso na Constituição, não pode conservar ninguém em prolongado cárcere provisório a pretexto de excesso de serviço, de desorganização dos mesmos, pela má remuneração dos seus funcionários, porque se trata de perigoso assaltante...
Nem mesmo a acusação penal por crime hediondo justifica a privação arbitrária da liberdade do réu. A liberdade não pode ser ofendida por atos ilegais do próprio Poder Público, mesmo que se trate de pessoa acusada de suposta prática de crime hediondo. A súmula n° 697, do Excelso Supremo Tribunal Federal, aponta que todo acusado tem o direito de ser julgado em prazo razoável ou ser posto em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo, até mesmo os acusados de crimes hediondos.
Até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível, não se revela possível presumir a culpabilidade de ninguém. Todavia, trata-se de um princípio constitucional viciado pela “prisão dos suspeitos de sempre”.
Nem se pode eleger o clamor público - precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão processual (CPP, art. 312) - como fator de legitimação da provação cautelar da liberdade. É um desserviço jurídico inigualável a aplicação analógica, no caso, do que se contém no artigo 323, V, do CPP, que concerne, exclusivamente, ao tema da fiança criminal.
Por fim, processos com indiciados ou réus presos deveriam ser, em última análise, sempre prioritários. Entretanto, temos assistido trâmites alongados para que se julgue um simples habeas corpus de réu preso. Alguns se arrastam por mais de sessenta dias... Há parecer que demora quinze dias para ficar pronto em processo de habeas corpus de réu preso . Vê-se logo que o excesso de prazo não é só o da prisão em si. Por isso, somos firmes na convicção de que prazo razoavelmente excedido é Justiça demasiadamente atrasada.
A velha-nova garantia constitucional se reveste de beleza homérica, digna de ser laureada em lâmina de ouro. Mas, a sua eficácia corre o risco de reduzir-se a pérfida norma programática. Na “mansão do desespero e da fome” , a dor continua perene, apesar da emenda no. 45.
“É aí que se percebe como os direitos humanos e sociais, apesar de cantados em prosa e verso pelos defensores dos paradigmas jurídicos de natureza normativista e formalista, nem sempre são tornados efetivos por uma Justiça burocraticamente inepta, administrativa e processualmente superada.”
O respeito aos prazos e, acima de tudo, o respeito às garantias da liberdade individual são fundamentos do próprio Estado Democrático de Direito. Já o seu desrespeito é causa freqüente de ódios implacáveis e cruenta convulsão político-social só observada pelos advogados criminalistas que “sofrem a privação da liberdade, como se o próprio filho estivesse por entre as grades” .

Autor: Warley Belo


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