Sobre A Ampla Defesa E O Exercício Da Advocacia





Sobre a Ampla Defesa e o Exercício da Advocacia
Warley Belo
Advogado Criminalista
Mestre em Ciências Penais / UFMG

Como são raros os processos cujos autos não possuam menos de cinqüenta folhas, o advogado, diligencioso, deve requerer permissão para fotocopiar os autos, quando não for o caso de carga. Não é raro, todavia, na práxis, a negação de saída dos autos de cartório para as fotocópias. Ilogicamente, permite-se, entretanto, que um serventuário saia de seu trabalho para levar os autos à sala de fotocópias, mas para fotocopiar – somente - até o número de dez fotocópias, nada mais...
Como expõe Gladston Mamede “examinar é o ato mais simples de folhear, verificar o que consta dos autos, ler algumas páginas e, como garantido pelo próprio Estatuto, tomar apontamentos e solicitar (ou tirar) cópias; é, portanto, um ato informal (...)”. Tal se deve para municiar o advogado de documentos a fim de argumentar, requisitar, impetrar ordens, pedir a liberdade provisória, enfim, tutelar os direitos de terceiros onde, sem os autos, o advogado, assim como o juiz e o representante do Ministério Público, não poderá efetivar seu trabalho, não passando de simples ornamento quimérico. Como aponta Frederico Marques : "Dentro das necessidades técnicas do processo deve a lei propi¬ciar ao autor e réu uma atuação processual em plano de igualdade no pro¬cesso, deve dar a ambas as partes análogas possibilidades de alegação e prova".
A lei é clara ao permitir, ao advogado, o acesso aos autos e estudá-lo. Isso é o mínimo. O advogado, aliás, indispensável à administração da justiça (art. 133, CF/88), com o exame dos autos é que postula direitos, defende interesses, combate injustiças. O exame e retirada dos autos trata-se de prerrogativa do advogado, do princípio da liberdade da profissão , ilimitado, inclusive, pelo imperativo do segredo de justiça. O interesse estatal de investigar não se sobrepõe a nenhum direito fundamental do homem ou do cidadão. A História está cheia de exemplos de perseguições e injustiças sob o manto cego da busca pela eqüidade. “Em Nome do Pai” muitos já foram sacrificados. Em nome da Justiça já se mataram inimigos particulares. Os direitos do homem e do cidadão são indisponíveis, é dizer que transcendem à própria pessoa para descansar em solo público. Sem o acesso aos autos não há defesa, sem defesa não há Justiça, sem Justiça não há Estado Democrático de Direito. De outro modo, esvaziar-se-ia a garantia constitucional do acusado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, a assistência técnica do advogado. É evidente que este não lhe poderá prestar tal mister se lhe é sonegado o acesso aos autos.
Em plano infraconstitucional, a rara, mas existente, prática despótica também constitui uma grave violação ilegal contra o jurisdicionado e o advogado. Na verdade, nos incisos XIII a XVI do artigo 7º. do EAOAB (Lei 8.906/94) estão discriminadas garantias processuais, de caráter especial, releve-se, para o exercício da advocacia ligadas às faculdades de examinar, ter vista e retirar autos de inquéritos, processos administrativos ou judiciais. Ex vi:

“examinar, em qualquer órgão dos poderes Judiciário (...), autos de processo findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos.”

Ressalte-se que não há dispositivo a excetuar a vista dos autos quando os mesmos estiverem conclusos à autoridade e a referência ao segredo de Justiça deve ser interpretado restritivamente. Quando se tratar de processo penal, tem o advogado, o direito de ter até mesmo "vista" dos autos fora do cartório, derrogada que está a disposição restritiva do art. 501 do CPP conforme reiteradas decisões do Pretório Excelso.
Vale ainda lembrar as disposições contidas na Lei 3.836, de 14/12/60, artigos 2° e 3°, que dispõem sobre a retirada dos autos pelo advogado na forma e nos prazos legais, cuja inobservância, igualmente, poderá facultar à parte interessado a utilização do mandado de segurança como instrumento eficaz para eliminar a ilegalidade ou abuso de poder da autoridade constituída .
A jurisprudência mais abalizada também já se deparou com procedimentos inquisitivos, garantindo ao advogado o direito de exercer sua atividade:

"ADVOGADO - Pedido de vista de autos – Indeferimento pelo Juiz-Violação de direito líquido e certo - Segurança concedida. Ementa oficial: É atentatória ao direito do advogado a decisão que o proíbe de ter vista dos autos fora do cartório, notadamente quando instado a se pronunciar nos mesmos. Violação a direito líquido e certo caracteriza¬da. Segurança concedida."

Por evidente, não se compreende que, afora as hipóteses limitativas legais, claramente alinhadas no § 1° do art. 7°, do Estatuto da Advocacia, já citado, se possa, arbitrária ou ilegalmente, impor condições ou limitações ao livre exercício do profissional do direito. É possível indeferir a vista e retirada dos autos fora de cartório quando, por decisão fundamentada, alegar existência de documento original de difícil restauração ou quando ocorrer circunstância relevante. Mas, no primeiro caso, a secretaria deve retirar cópias do documento e fazer juntar o original em cofre excluindo-se, assim, o óbice apontado. No segundo caso, deve-se encontrar caminho a permitir a mais ampla defesa, princípio preponderante de cunho público.
Nem mesmo a famigerada Resolução do CJF no. 507/06, promulgada recentemente, é capaz de limitar o direito fundamental, pois, ao que consta, o respeitável Conselho da Justiça Federal não é órgão legislativo de matéria processual (art. 22, I, CF), devendo ser desconsiderado o “conselho” de dificultar o acesso dos autos aos patronos (artigo 5º. da referida Resolução) . Trata-se de pensamento equivocado, vencido há dezenas de anos, apoiado na ideologia da defesa social. Essa pseudo-dicotomia entre defesa social e direitos fundamentais permanece nos discursos do movimento “lei e ordem” sustentando a ilusão do referido conflito de interesses. Aí o equívoco. A idéia de segurança no Estado Democrático de Direito não exclui a liberdade individual, senão complementa-a (Canotilho). A Resolução, dessa forma, é simbólica porque visa fundar um conflito só existente na vencida ideologia da defesa social e que tem por conseqüência última o esvaziamento do sistema processual em favor do autoritarismo estatal. Queremos apontar que não é possível, no Estado de Direito, democrático, contrapor dois pilares: a busca da Justiça e a defesa do indivíduo. Colocar o processo penal nesse patamar é desvincular a finalidade do Estado dos direitos fundamentais e isso é conceitualmente paradoxal (John Rawls). Desde o século passado, não é possível entender mais o processo penal como mecanismo kafkiano de punir culpados.
O direito em jogo no processo penal é a própria liberdade, só restringível quando o juiz adquira pleno convencimento de que ficou inteiramente evidenciada a prática do crime e a sua autoria. Por isso, a Carta Magna não se limitou a assegurar ao réu o exercício de sua defe¬sa, mas no art. 5.°, LV, garantiu-lhe a mais ampla defesa, ou seja, de¬fesa sem restrições, não sujeita a eventuais limitações impostas ao órgão acusatório . Mas, mesmo nesse último caso, como expõe Jader Marques , “o sigilo não pode, jamais vencer a prerrogativa do defensor”.
Na esteira desses pronunciamentos, não se vislumbra, data venia, na espécie, razão para manter a prática inquisitorial, vedando a extração de cópias e / ou saída de cartório dos autos, seja na fase pré-processual ou processual. Tal procedimento constitui verdadeiro constrangimento ao exercício profissional, pois se é permitido compulsar e até mesmo fotografar a peça investigatória, qual a razão para vedar a cópia integral dos autos?
Dir-se-á, talvez, que ao advogado do indiciado não pode ser concedido o direito de vista dos autos do inquérito policial. Vige a idéia nada garantista da inaplicabilidade dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo. Afirmam que o inquérito policial não é destinado a decidir litígio algum e que estaria na esfera administrativa. Todavia, há direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio. “Ademais,” conclui Felipe Martins Pinto, “é sabido que todo o manejo de poder envolve o risco de ocorrência de abusos, e é por esta razão, que um Estado deve submeter-se ao domínio das normas, prevenindo-se de arbitrariedades.” Esse entendimento é endossado pelo Ministro Sepúlveda Pertence : “Concluo, pois, que o advogado do indiciado em inquérito policial, titular do direito de acesso aos autos respectivos – que, na verdade, é prerrogativa de seu mister profissional em favor das garantias do constituinte – não é oponível o sigilo que se imponha ao procedimento.”
Desta maneira, a proibição ou vedação por ato verbal ou escrito da retirada de autos por parte da autoridade judiciária ou adminis¬trativa, constitui gravame indevido e abusivo, passível de correção, via mandado de segurança, pela parte diretamente interessada ou pelo patrono que vier a ser constituído. Desrespeitado o princípio, tratar-se-á de cerceamento de defesa e configurado estará o abuso de autoridade .
Do complexo de direitos do indiciado é corolário primeiro e prerrogativa universal ter, o advogado, acesso aos autos respectivos. Tal direito não se exclui o inquérito ou o processo que corre em sigilo. O preceito legal é irrestrito resolvendo-se, em favor da defesa, eventual conflito com os interesses do sigilo das investigações. Dessa maneira, configurado está o direito líqüido e certo que têm os advogados para copiar os autos quantas vezes forem necessárias: segredo e Justiça jamais andaram de mãos dadas.

Autor: Warley Belo


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