Pedrinalvo



Mal o dia amanhece ele se levanta, se apronta e desce a pequena ladeira que o leva rumo á padaria onde toma seu café. Depois volta e se entrega ao trabalho, sempre na mesma rotina. Á noite ele toma seu banho e repete o mesmo ritual da manhã descendo rua abaixo, sempre andando á pé, atravessando pela praça principal e se dirigindo á padaria para um lanche noturno antes do fechamento da mesma, pois embora ele não jante por sua própria escolha, por pura opção seu corpo exige algum tipo de alimento. Porém mal sabia ele que desta vez sua rotina seria quebrada. Pepê ( apelido que carrega consigo desde criança , pois Pedrinalvo seu nome de batismo soa um tanto estranho) sempre foi um sujeito reservado, de pouca fala e no momento com poucos amigos também, pois era recém chegado na cidade para onde tinha vindo movido pelo trabalho. Acontece que em meio a sua travessia pela praça ele foi abordado por uma menina que circulava a esmo pelo local e que veio em sua direção lhe pedindo um cigarro. Mesmo um rapaz tímido e acanhado como ele, um homem de pouca conversa não poderia deixar de admirar a beleza daquela jovem sorridente que vinha em sua direção, então ele deteve seus passos e lhe deu atenção. Começaram uma conversa despretensiosa onde só ela falava e ele apenas se limitava a mexer a cabeça, concordando ou discordando do que ela dizia. Sentaram no banco em frente ao chafariz e foi assim que ele ficou sabendo que apesar de seu rostinho de criança ela já passava dos vinte, que tinha uma filhinha pequena, que sua vida era marcada pelas dificuldades e justamente por este fato ela estava ali agora, pois precisava de dinheiro para o leite da filha e sem isso ela não poderia ir embora. Soube também que ela já fora vitima de abuso sexual, coisa do próprio irmão usuário de drogas que hoje esta na prisão. Ela lhe jurou de pés juntos que jamais fora uma mulher de programas, mas diante da situação em que se encontrava no momento estava disposta a tudo, pois não podia nem imaginar o rostinho triste de sua filhinha nem seu choro doído devido à fome pela falta do leite. Enquanto a ouvia Pepê colocou sua mão suavemente sobre a dela fazendo leve pressão. Ela não recuou aceitando isso como uma forma de carinho e seus lábios deixaram escapar um leve sorriso. Enquanto ele observava aquele rosto jovial retornou no tempo relembrando seu passado, de todas as agruras que o destino lhe impôs e de cada espinho que teve que retirar do seu caminho. Nem sempre ele fora sozinho como agora, nem sempre ele foi assim tão calado, tão quieto, tão serio. Ele já teve alegria na vida, já teve uma família, já teve esposa, teve filha, mas como ele mesmo dizia, nunca foi um sujeito de sorte, pois viera ao mundo só para cumprir sua sina, só para pagar um castigo e foi assim que a morte os separou levando sua esposa e também sua menina. Aos poucos ele se recompõe e volta ao presente se recriminando por seu egoísmo, por sua falta de humildade, pois ele que por tantos anos se considerava uma vitima do mundo, o ser humano mais castigado da terra precisou mudar de cidade para descobrir que a vida trata a todos com a mesma igualdade, que qualquer pessoa esta sujeita a viver uma vida cheia de alegrias, mas nenhuma delas vai deixar hora ou outra de esbarrar nas dificuldades que a mesma nos impõe. Cabisbaixo com vergonha de si mesmo ele não pode evitar que as lagrimas escorram dos seus olhos, fato notado pela jovem que o interpela usando uma das mãos para secá-las enquanto afaga seus cabelos com a outra. Por que esta chorando ela lhe pergunta quase num sussurro, eu lhe fiz alguma coisa errada. Não pelo contrario, nos últimos dez anos eu nunca estive tão bem como agora, como neste momento lhe responde Pedrinalvo. Então por que, ela volta a indagar. Sem responder ele a puxa para mais perto de si e segurando seu rosto entre as mãos ele a beija calorosamente. Ela se deixa levar e seus lábios se espremem contra os dele, suas línguas se procuram se entrelaçam com frenesi numa volúpia total sem se importar com as pessoas que passam por ali e observam a cena, curiosas que são. Finalmente ele se recompõe, recupera o fôlego e começa a falar. Ele que por longos dez anos quase não abria a boca, que só o fazia por pura obrigação, por pura necessidade contou a ela toda a sua vida detalhe por detalhe, cada pedaço do seu passado, cada fato ocorrido. Falou da sua infância, do seu tempo de escola no primário, da adolescência no ginásio onde por mais de três anos ele observou e admirou as pernas bem torneadas de uma morena que freqüentava as aulas com uma mini saia tão curta que o fazia ficar parado embaixo da escadaria toda vez que ela subia para a sala de aulas, uma morena que alias ele achava esnobe, metida, petulante demais, pois nestes três anos de aula que tiveram juntos ela não olhou para ele uma vez se quer, o ignorava completamente. Contou para ela que conheceu sua primeira namorada, o grande amor de sua vida através de uma brincadeira entre amigos, uma brincadeira chamada de vaca amarela, onde todos os participantes tinham que ficar mudos e o primeiro que quebrasse o silencio falando alguma coisa teria que pagar um castigo. Aconteceu que ela participava desta brincadeira com sua irmã e mais dois amigos na varanda de sua casa e o castigo para o perdedor seria pedir um cigarro para a primeira pessoa que estivesse passando na rua no momento. Foi ai que entrou a mão do destino, pois só quem estava passando pela rua no momento era Pedrinalvo e quem perdeu a brincadeira e teve que pagar o castigo foi a morena, aquela mesma morena que por três anos consecutivos o desprezara na sala de aulas do ginásio onde ambos estudaram. Como tinha que pagar o castigo ela o abordou pedindo-lhe um cigarro. Bastaram seis meses depois deste fato para eles estarem casados. Uma união perfeita segundo ele e que só foi desfeita depois de vinte e quatro anos porque Deus assim o quis, pois a morte a levou prematura e por isso mesmo ele jura que por dez anos foi um homem infeliz. Só então a jovem o interpela de novo perguntando com voz suave. É esse o motivo do choro? Não responde Pedrinalvo, não é. O choro de hoje não é pela esposa que perdi, não é pela minha filhinha que também já se foi e que hoje deve ser mais um anjinho a serviço Deus lá no céu, o choro de hoje, as lagrimas que derrubei agora, algumas foram por você, por sua estória, por suas dificuldades, mas a maioria delas foi por mim mesmo, só que na verdade elas não foram lagrimas de tristeza, foram de alegria, pois você me trouxe de volta á luz, me tirou da escuridão onde eu estava enclausurado a dez longos anos, você me fez enxergar de novo, me fez renascer. Depois disso ele beijou novamente, um beijo demorado, molhado, ardente ate que de repente ele sussurrou ao seu ouvido; obrigado por me fazer enxergar que ainda estou vivo
Autor: Salvador Mario Camphora


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