Nao irei corrigir ninguém



Há tempos que o gerundismo se estabeleceu como erro comum entre aqueles que pretendem falar bonito, apesar de vir sendo combatido. Assim como a mania de falar “a nível de” ou incorrecoes gramaticais semelhantes. Mas o que me irrita a ponto de escrever este texto é o total controle que as construcoes com “irá + verbo” tomaram da escrita. Principalmente na imprensa, que é composta de gente que cursa, no mínimo, quatro semestres de português na faculdade.

Diferentemente dos erros chamados grotescos, do estilo “nós vai” ou “menas gente”, que têm um caráter popular e sao, geralmente, atribuídos a baixa instrucao, os erros cometidos quando alguém viola a língua portuguesa de maneira que nao faria na fala cotidiana, no intuito de escrever ou falar de forma rebuscada, parece-me muito pior.

O hábito irritante de muitos atendentes de telemarketing, batizado “gerundismo”, de “estar fazendo” algo no futuro é um problema de semântica. Nao que nao esteja correta a forma “estarei transferindo a ligacao”, mas porque “estar fazendo” algo é uma acao de duracao limitada. Entao, alguém só “está transferindo” uma ligacao naquele exato momento em que está apertando as teclas do telefone para fazer a transferência. Ou seja, ele “tranferirá” ou “vai transferir” a ligacao.

Mas o grande vilao que parece ter tomado refém a imprensa e a escrita comercial é um fenômeno que ainda nao tem nome, mas que ocorre quando alguém, almejando uma construcao de futuro simples, comeca a mesma com “irei, irás, irá”. Por exemplo: “ele irá ler o relatório”. Outro caso de erro semântico.

No português, o futuro simples é formado por meio de uma desinência. Lerei, lerás, lerá. Na língua coloquial, o verbo “ir” no presente – e tao somente no presente – cumpre o papel de auxiliar na formacao do futuro. Algo como o “will” do inglês. Ou seja, “eu lerei” e “eu vou ler” significam praticamente a mesma coisa.

Já quando o verbo “ir” é conjugado em outro tempo que nao o presente, é um verbo normal com a acepcao de “deslocar-se de um lugar ao outro”. Como em “eu irei ao trabalho”. “Eu irei trabalhar” significa “eu me deslocarei de onde estou para outro lugar onde trabalharei”. Assim, alguém só “irá ler um relatório”, se pegar o relatório e for a outro lugar. Deste modo, frases como “irá se deslocar” e “irá ficar” sao um absurdo semântico, pois “deslocar-se” e “ir” denotam movimento e ninguém pode “ir ficar parado”.

Como viram, nao irei corrigir ninguém. Corrigirei ou vou corrigir sentado nesta mesma cadeira, sem precisar ir a lugar nenhum para isso. Ficarei sentado e vigilante e enviarei este texto a toda a imprensa, para que nos vejamos livres de uma vez por todas desse vício terrível. O crack da língua portuguesa. E que eu nunca mais leia que um deputado “irá ausentar-se” sem que ele saia da sala.
Autor: Felipe Simões Pires


Artigos Relacionados


Domínio De Vocabulário: Troque Os Verbos Curingas

Uma História

Um Estudo LÉxico - SemÂntico Do I Canto De Os LusÍadas

Preconceito Linguistico

Para Uma Pessoa Muito Querida.

Estrangeirismo: Substituição Ou Acréscimo Da Língua Nacional?

Porque Você Se Foi