Um Olhar Interdisciplinar: Percorrendo A Temática Da Seca



A importância da formação interdisciplinar é bastante evidente na atualidade. Se voltarmos nossos pensamentos para a Estética da Recepção, teoria da escola de Constança tratada por Hans Robert Jauss, notaremos que a interdisciplinaridaridade pode ser bastante valiosa neste sentido. Isso se deve ao fato de que os horizontes de expectativas dos alunos na contemporâneidade, inseridos em um mundo onde a rapidez e a tecnologia são tão patentes,podem estar bastante ligados à música e às outras artes além da Literatura.

Dessa maneira, trabalhar em sala de aula com o cinema, músicas, fotografias, quadros, notícias de jornais e o teatro pode ser uma arma poderosa para que, paulatinamente, o professor de Literatura se aprofunde nos estudos dos textos literários. Assim, o profissional de Letras vê-se acrescido de novas funções, como nos afirma Diniz (2002, p. 179)

O intelectual que um dia trabalhou com literatura enquanto discurso específico, transformado por forças de grandes mudanças epistemológicas e também por exigência do mercado das idéias e suas vaidades e estratégias, vê-se, não subtraído, e sim acrescido de novas funções. Repensar-se criticamente implica firmeza, tolerância e capacidade de propor novos olhares, atributos típicos de uma vida cultural democratizada e plural.

Dois pontos cruciais podem ser observados na citação acima. Primeiramente, pode-se falar da vida pluralizada do mundo contemporâneo. Em um país como o Brasil não se pode falar sobre uma identidade cultural como um ente fechado, mas sim em identificações que dentro de uma sala de aula podem ser as mais diversas. Temos aqueles alunos que preferem músicas à poesias, dentro disso os que preferem o rock à música popular brasileira, os que preferem as poesias românticas às parnasianas, ainda temos aqueles alunos que preferirão fotografias, quadros e assim sucessivamente.

Em segundo lugar o repensar-se criticamente, tendo em vista que as novas funções dos professores podem ser as mais variadas e, dentre elas, conseguir atender a esse público tão miscigenado com o qual se depararão em sala de aula.

Uma proposta bastante inovadora e talvez eficaz é o Método Recepcional, proposto por Bordini e Aguiar a partir da Estética da Recepção. Tal método se divide em cinco etapas, sendo elas: 1) Levantamento do horizonte de expectativas; 2) Atendimento do horizonte de expectativas; 3) Ruptura do horizonte de expectativas; 4) Questionamento do horizonte de expectativas); e 5) Ampliação do horizonte de expectativas.

A importância desse método verifica-se na medida em que se partiria do horizonte de expectativas dos alunos, ou seja, o professor conheceria o universo de expectativas de seus alunos para, então, passo a passo, ampliá-lo. Unindo esse método a idéia de aulas interdisciplinares, poder-se-ia partir da música, do cinema, de fotografias, de quadros e do teatro, para então chegar ao texto literário e a um aprofundamento do mesmo.

A partir desses pressupostos, e enfatizando a importância das outras artes para o ensino de literatura, esse trabalho tem o intuito de evidenciar quais materiais poderiam ser usados para um trabalho interdisciplinar em sala de aula. Para isso, teremos como tema central a seca e as diversas formas artísticas de representá-la. Em uma segunda etapa, pretende-se fazer uma comparação entre o romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e o filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos.

Tendo em vista que estas obras clássicas foram produzidas em dois momentos importantes da cultura brasileira, as décadas de 30 e 60 do século XX, concomitantemente ao modernismo social e ao cinema novo respectivamente, verifica-se que a seca vem sendo retratada em momentos diversos por artistas distintos, comprovando que esta é uma questão recorrente, presente em diferentes manifestações artísticas.

Tanto a linguagem verbal, do romancista, quanto a visual, do cineasta, , possuem uma estética realista, sendo o filme a verdadeira releitura crítica da realidade social retratada no romance.

Embora uma e outra obra apresente pontos divergentes, devido aos recursos que cada uma delas utiliza, ao passo que o romance se dispõe da onisciência multi-seletiva do narrador e dos monólogos interiores, demarcados pelo discurso indireto livre, para que o leitor conheça o interior psicológico das personagens, enquantoa película optou por evidenciar os fatos narrados através da focalização da câmerano olhar das personagens, ambas apresentam em comum a mesma temática da seca nordestina e a decorrência desse fenômeno para a vida da população pobre daquela região.

A seguir, teremos dois tópicos que ilustrarão possíveis análises relacionadas ao romance Vidas Secas e outras manifestações artísticas, comprovando, assim, a possibilidade de um trabalho interdisciplinar pautado no horizonte de expectativas de alunos do Ensino Médio.

As diferentes manifestações artísticas obre a temática da Seca

(Uma proposta de leitura)

O trabalho com a interdisciplinaridade aqui proposto contempla um número significativo de obras artísticas e de textos jornalísticos que tematizam a seca, permitindo aos alunos a ampliação de seus horizontes culturais e exigindo deles constantes associações entre elas, pois de alguma forma essas obras dialogam entre si e representam a diversidade cultural de nossa sociedade. Tal diversidade cultural ajuda-nos a compreender melhor as "identidades flutuantes" ou "identificações" (Júlio Diniz) com as quais nos deparamos em nossa sociedade, justificando assim a importância de uma formação interdisciplinar. Temos a seguir elencadas as obras que tematizam a seca:

·Romance: Vidas Secas, de Graciliano Ramos.

·Filme: Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos.

·Fotos: livro Terra, de Sebastião Salgado.

·Quadros: série Os Retirantes, de Cândido Portinari.

·Músicas: Segue o Seco, de Carlinhos Brown; Assentamento, Levantados do Chão, Fantasia e Brejo da Cruz, de Chico Buarque de Holanda; Lamento Sertanejo, de Gilberto Gil e Dominguinhos; Canção Nordestina, de Geraldo Vandré; Asa Branca e A Volta de Asa Branca, de Luiz Gonzaga e A Triste Partida, de Patativa do Assaré.

·Clip da música Segue o Seco, com interpretação de Marisa Monte.

·Artigos de jornais revistas sobre a seca nordestina.

·Leitura da peça teatral Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.

O objetivo desse trabalho intertextual não se restringe apenas à comparação de diferentes linguagens em torno da temática da seca e à transmissão de um saber especializado sobre o romance Vidas Secas, mas busca também levar os alunos a perceberem que a literatura, como todas as outras formas de expressão artística, enraíza-se na dinâmica da vida de uma cultura, em um processo dialógico ininterrupto devendo ser sempre vista enquanto uma arte em processo de desenvolvimento sócio-cultural e estético.

Além disso, com um material tão rico seria fácil partir do que é mais próximo aos alunos, por exemplo as músicas ou o cinema, para então, gradativamente, questionar, romper e ampliar o "horizonte de expectativas" destes alunos.

A seguir, será exposta uma análise comparativa da música Lamento Sertanejo com excertos do romance Vidas Secas para ilustrar como este trabalho interdisciplinar poderia ser posto em prática:

Lamento Sertanejo

(Gilberto Gil e Dominguinhos)

Por ser de lá do sertão

Lá do serrado

Lá do interior, do mato

Da caatinga, do roçado

Eu quase não saio

Eu quase não tenho amigo

Eu quase não consigo

Ficar na cidade sem viver contrariado

Por ser de lá

Na certa, por isso mesmo

Não gosto de cama mole

Não sei comer sem torresmo

Eu quase não falo

Eu quase não sei de nada

Sou como rês desgarrada

Nessa multidão boiada

Caminhando a esmo.

Pelos limites deste trabalho e por falta de conhecimentos mais aprofundados em teorias musicais, a análise aqui exposta se restringirá a letra da música de Gil e Dominguinhos. Outro ponto a ser ressaltado é o fato de que a comparação poderia ser feita entre todas as manifestações artísticas e não apenas com o romance como aqui será feito.

Na primeira estrofe da música constatamos um sujeito-lírico sem amigos, que não gosta da vida na cidade, assim como a personagem Fabiano, como se pode constatar nos fragmentos seguintes:

Como poderia haver tantas casas e tanta gente? Com certeza os homens iriam brigar. (Ramos 1980:74)

Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava com os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. (Ramos 1980: 76)

Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. (Ramos 1980: 19)

Estava convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins. (Ramos 1980: 76)

Notamos nitidamente o diálogo que há entre a música e o romance, já que ambos descrevem o homem sertanejo da mesma forma. Sempre homens que não confiam nos outros homens, sem amigos e que preferem o sertão à cidade.

O "sujeito-lírico" da música também pode ser comparado à personagem Fabiano no aspecto de quase não falar, uma vez que, em várias passagens do livro, verificamos quase não há comunicação entre a família do retirante e quando essa acontece é feita através de sons guturais:

E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio grande.(Ramos 1980: 10)

Ainda é válido ressaltar a comparação entre os versos musicais: Não gosto de cama mole e o desejo nunca satisfeito de Sinha Vitória em trocar a cama de varas por uma cama de lastro de couro, como se nota no fragmento abaixo:

Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás da Bolandeira. (Ramos 1980: 46)

Muitas outras comparações poderiam ser estabelecidas, no entanto o que se quer evidenciar aqui é a possibilidade de resultados positivos com um trabalho interdisciplinar. Também seria viável a cooperação de um profissional da área de música, para que esse pudesse analisar o ritmo, a melodia, enfim, uma análise mais aprofundada da música.

Ainda é pertinente destacar que as análises e comparações deveriam ser feitas, em sala de aula,entre todas as manifestações artísticas, onde os alunos expressariam seus pensamentos, debateriam o tema em questão e, após esta primeira etapa, teriam, através do professor e de leituras teóricas, uma visão mais crítica e reflexiva sobre a temática ressaltada.

Outro ponto bastante pertinente, seria uma análise comparativa mais detalhada entre o romance e o filme Vidas Secas, apontando quais as principais convergências e divergências existentes nessas obras. Pensando nisso, observaremos a seguir uma breve análise das divergências nos focos narrativos destas obras.

As divergências no foco narrativo de Vidas Secas: romance e filme

Essa parte dotrabalho caracteriza-se como um estudo comparativo do foco narrativo no romance de Graciliano Ramos, publicado em 1938, na segunda fasedo Modernismo, e de sua transposição homônima para o cinema, feita por Nelson Pereira dos Santos, em 1963, concomitante ao movimento do Cinema Novo. Tanto na narrativa literária quanto na narrativa cinematográfica, o foco narrativo assume papel central. Todavia, há diferenças significativas na perspectiva adotada em uma e em outra obra, uma vez que a linguagem faz uso de signos verbais e, o cinema, de signos visuais, o que leva ao uso de procedimentos específicos em uma e outra arte. No romance Vidas Secas, tem-se um narrador em terceira pessoa cuja onisciência multi-seletiva, que se efetiva por meio do discurso indireto livre, permite adentrar o interior das personagens. Diversamente, o filme não dispõe dos mesmos recursos de focalização, passando a utilizar o olhar das personagens, conforme se observa nas palavras de Rocha:

No livro, o narrador trabalha com o discurso indireto livre, sua consciência é solidária com a do sertanejo, e por isso eles não poderiam ter referência de qualquer calendário mais abrangente, a não ser aquele marcado pelas manifestações da natureza. O narrador só domina o que as personagens dominam e a ação só avança com a participação deles (sic). No filme, o recorte temporal define o distanciamento do narrador, isto é, o narrador domina a história que será mostrada, apesar de também não avançar a ação sem a participação das personagens. Nesse sentido, as seqüências são mostradas a partir do ponto de vista, ora de uma, ora de outra personagem. (ROCHA 1987: 410 - 1)

Desse modo, procedendo ao estudo comparativo das duas obras em questão, no que se refere ao foco narrativo, analisaremos os capítulos "Festa", "Inverno" e "Baleia" e as cenas do filme correspondentes a estes capítulos, no sentido de mostrar as divergências existentes. Em primeiro lugar, observa-se uma diferença entre os eventos narrados nas duas narrativas. No romance, trata-se da festa de Natal, sendo a focalização do narrador onisciente uma constante. No filme, por outro lado,há uma substituição da festa natalina pela festa do bumba-meu-boi. Embora os acontecimentos enfocados sejam diversos, os narradores do romance e do filme aproximam-se, na medida em que, nas cenas citadas, a onisciência é comum a ambos. No caso do romance, a onisciência manifesta-se do início ao fim da narrativa, sendo ela a técnica que permite adentrar o interior das personagens.

Todavia, o que parece problemático, no caso do filme, é a mudança brusca, e mesmo incoerente, da focalização na cena referente ao bumba-meu-boi. Como dissemos anteriormente, o filme utiliza-se do olhar das personagens – Fabiano, Sinhá Vitória, Baleia e outros – para mostrar a realidade. Assim, a cena do bumba-meu-boi, ao optar pela focalização onisciente, destoa marcadamente da perspectiva adotada no restante do filme, conforme afirma Caccese:

Em nenhum momento até então, e posteriormente, o narrador é onisciente, pois os fatos são apresentados segundo a perspectiva das personagens. Contudo Nelson Pereira dos Santos nos mostra uma cena de que não poderíamos ter conhecimento já que nenhum dos protagonistas estava presente. (CACCESE 1977: 162)

Se nas duas cenas em questão, a festa de Natal e a do bumba-meu-boi, encontramo-nos diante da focalização onisciente não podemos dizer que o efeito produzido por tal perspectiva seja semelhante no romance e no filme. Na narrativa de Graciliano Ramos, a manutenção de determinada focalização revela coerência e a eficácia do ponto de vista adotado. Já no filme de Nelson Pereira dos Santos, a focalização destoante do todo presente na cena do bumba-meu-boi rompe a harmonia existente até então.

Vejamos, contrapondo as cenas do Natal e do bumba-meu-boi, como o trabalho com a onisciência difere nas duas narrativas.

Noromance de Graciliano Ramos o narrador, embora onisciente, não se coloca em uma posição demiúrdica, mostrando os fatos e as personagens de um ponto de vista distanciado. Ao contrário, a onisciência em Vidas Secas permite que o narrador se aproxime das personagens através do discurso indireto livre e misture sua voz a delas, fazendo com que as situações possam ser visualizadas da perspectiva da personagem, como se observa na cena da festa de Natal:

Sinhá Vitória achava-se em dificuldade: torcia-se para satisfazer uma precisão e não sabia como se desembaraçar. Podia esconder-se no fundo do quadro, por detrás das barracas, para lá dos tambores das doceiras. Ergueu-se meio decidida, tornou a acocorar-se. Abandonar os meninos, o marido naquele estado? Apertou-se e observou os quatro cantos com desespero, que a precisão era grande. Escapuliu-se disfarçadamente, chegou à esquina da loja, onde havia um magote de mulheres agachadas. E, olhando as frontarias das casas e as lanterna de papel, molhou o chão e os pés das outras matutas. (RAMOS 1980: 82)

O fragmento acima mostra que, por meio do discurso indireto livre, a voz do narrador se mescla à da personagem, não sendo, portanto, a onisciência total do narrador que se manifesta, pois, a fusão de vozes permite que "enxerguemos" a situação através do olhar de Sinhá Vitória.

A cena do bumba-meu-boi, correspondente à cena da festa de Natal do romance, não utiliza os mesmos procedimentos. Quando, de acordo com o que mostramos, Nelson Pereira dos Santos opta por, nesta cena, adotar uma perspectiva onisciente, até então não existente no filme, torna-se confessa a presença do cineasta, do olhar de fora e distante, o que jamais ocorre no romance de Graciliano Ramos, ainda que nele tenhamos a presença de um narrador onisciente durante toda a narrativa, conforme podemos inferir no comentário de Caccese:

Se a primeira vista considerei a cena "uma concessão ao folclore", sentindo que destoava do próprio filme, analisando as possíveis causas dessa impressão, encontrei-as nesta falha do tratamento cinematográfico da obra. É como se o Diretor abandonasse por alguns momentos o roteiro, para "dar uma voltinha" pela cidade, quando era preciso considerar que o importante para Graciliano não é nunca o acontecimento em si, mas as reações das personagens diante dos fatos e situações. (CACCESE 1977: 162)

De igual maneira, a diferença entre osprocedimentos fílmicos e os romanescos se faz presente em outros aspectos. No romance, há escassez de diálogo entre as personagens, que se comunicam verbalmente, quando muito, por meio de monossílabos e sons rudimentares. Diante de tal fato, a transposição fílmica dos monólogos, cujo papel é fundamental na narrativa de Graciliano Ramos, encontra-se frente a uma situação difícil de ser resolvida e a opção pelo diálogo, no filme, faz com que este se afaste um pouco do romance, de acordo com o comentário de Caccese:

É curioso observar que, dada a incapacidade de comunicação oral dos protagonistas, o romance só excepcionalmente nos apresenta diálogo (sic) rudimentares. É como se fosse um filme mudo. No entanto, o filme, realizado quase como tal, violenta essa realidade fundamental, pois a ausência dos monólogos interiores essenciais no livro, ou de recursos cinematográficos correspondentes, acentua o fato social, em detrimento da repercussão dele no âmago dos protagonistas. E quando procura registrar a tentativa de comunicação entre Sinhá Vitória e Fabiano – nos monólogos paralelos já mencionados -, a película falha completamente. ( CACCESE 1977: 162)

A transposição dos monólogos interiores do romance para a forma de diálogo, no filme, não consegue, ainda, manter o objetivo alcançado por Graciliano Ramos com o uso do monólogo, ou seja, aproximar o leitor do interior de suas personagens, como se observa nos exemplos abaixo:

Seu Tomás tinha uma cama de verdade, feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a enxó, com juntas abertas a formão, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem esticado e bem pregado. Ali podia um cristão esticar os ossos. (RAMOS 1980: 45)

Pobre de seu Tomás. Um homem tão direito sumir-se como cambembe, andar por este mundo de trouxa nas costas. Seu Tomás era pessoa de consideração e votava. Quem diria? (RAMOS 1980: 27)

Os trechos acima referem-se, respectivamente, aos monólogos de Sinhá Vitória e Fabiano. Através deles, podemos observar como Graciliano Ramos conduziu seu romance ao criar um narrador que conhece a consciência das personagens, mas que, ao mesmo tempo, cede a voz às mesmas através do discurso indireto livre, fazendo com que seu interior seja revelado não apenas por uma instância de fora e distante, o narrador, mas por elas mesmas, fato que não se constata no filme. Na transposição cinematográfica vale ressaltar, ainda, que foi necessária a união de monólogos de capítulos distintos, "Sinhá Vitória" e "Cadeia", para que o diálogo fosse possível numa única cena, que equivale ao capítulo "Inverno" do romance.

Assim, fica evidente que a tentativa de Nelson Pereira dos Santos de transpor os monólogos do romance para diálogo tornou-se complicada, já que tanto Sinhá Vitória quanto Fabiano estavam presos às suas reminiscências, não podendo essas lembranças, que são distintas, formarem um diálogo. Podemos perceber essas distinções quando Sinhá Vitória pensa na cama de lastro de couro, ao passo que Fabiano pensa na contingência humana ao constatar que seu Tomás, embora culto, não podia fugir das misérias causadas pela seca.

Se, até o momento, observarmos a presença de divergências notórias no que se refere à configuração do foco narrativo no romance e no filme Vidas Secas, é possível verificar, por outro lado, semelhanças entre as duas narrativas, o que ocorre, por exemplo, com a cena da morte da cachorra Baleia. Como sabemos, a cachorra Baleia sofre um processo de antropomorfização, o que a eleva à condição de membro integrante da família de Fabiano em ambas as obras. O próprio nome dado a cachorra é uma forma de demonstrar o carinho, dispensado ao animal, pela família de retirantes. A condição assumida por Baleia, por outro lado, contrapõe-se a dos filhos dos sertanejos, uma vez que estes passam por um processo inverso, o de zoomorfização, não possuindo nem mesmo nomes.

O capítulo que se refere a morte de Baleia revela-nos a grande dor sofrida pela família com a doença do animal, pois até mesmo um "bruto" como Fabiano hesita na hora de matá-la. O processo de antropomorfização de Baleia é evidente, ainda, em seus monólogos interiores, os quais revelam a sua dor e seu sofrimento:

De fronte ao carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. (RAMOS 1980: 88)

Olhou-se de novo, aflita. Que estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se .

Senti o cheiro bom dos preás que desciam do morro mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. (RAMOS 1980: 88-9)

Os fragmentos citados evidenciam o sofrimento de Baleia, que, prestes a morrer, tem um delírio, vendo preás. Para o animal os preás são sinônimos de felicidade, na medida em que serviam de alimento para ela e para a família de retirantes, afastando-os da fome causada pela seca.

A morte de Baleia é transposta para o filme fielmente. A cena cinematográfica oferece a impressão de um real sofrimento, analogamente aquilo que se encontra no romance. O diretor conseguiu, ao posicionar a câmera sob o ponto de vista de Baleia, mostrar o interior da personagem, enredando o espectador em sua morte. Nesta cena, tem-se um exemplo pertinente do poder de interpretação de sentimentos e sensações de Baleia antes de morrer, sendo que aí se verifica a possibilidade de transposição feliz dos monólogos interiores para cenas do filme.

Contrapondo a cena da morte de Baleia à cena referente ao capítulo "Inverno", podemos concluir que seria mais fácil passar para a linguagem visual os monólogos interiores de Sinhá Vitória e Fabiano do que os de Baleia. No entanto, quando Nelson Pereira dos Santos tentou transformar o pensamento de Sinhá Vitória e Fabiano em um diálogo, fugiu da intenção de Graciliano Ramos de explorar intrinsecamente cada personagem, o que o cineasta conseguiu fazer com o magistral capítulo "Baleia" ao transpô-lo, com absoluta fidelidade, para a linguagem cinematográfica.

Em síntese, pode-se afirmar que nem sempre Nelson Pereira dos Santos consegue transpor a linguagem verbal de Graciliano Ramos para a linguagem visual com eficácia em se tratando do foco narrativo. Enquanto o romancista podia se utilizar de recursos como a onisciência multi-seletiva e o discurso indireto livre, o diretor optou por mostrar toda a história a partir da visão das personagens, procedimento este que, nem sempre obteve bom êxito, conforme verificamos ao analisar a cena do bumba-meu-boi e a dos monólogos interiores de Sinhá Vitória e Fabiano. Provavelmente, se o cineasta não tivesse unido os monólogos interiores num único diálogo, mantendo-os na parte referente ao romance e os transposto realmente como monólogos interiores, como fez com a cena de Baleia, o resultadoteria sido mais eficaz. Na cena do bumba-meu-boi, o que faltou foi a presença de uma das personagens, pois assim a história continuaria sempre sendo contada pela perspectiva de uma das personagens, o que condiria com o foco narrativo do romance e com o foco narrativo utilizado até então, e, posteriormente, na película.

Com essa comparação poder-se-ia estar ampliando os "horizontes de expectativas" dos alunos, além de, é claro, estar ampliando seus conhecimentos em teoria literária e, concomitantemente, aprendendo um pouco mais sobre o cinema, em especial o Cinema Novo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todas essas observações, sobre a interdisciplinaridade, a Estética da Recepção, o horizonte de expectativas, a identidade de cada aluno e as análises feitas para ilustrar a proposta de leitura do romance Vidas Secas, são válidas em diversos sentidos. Um dos principais é evidenciar a importância de uma formação interdisciplinar. A qual pode ser verificada através da proposta de leitura com a temática da seca. Obviamente, essa proposta poderia ser bem mais esmiuçada, na medida em que todas as obras citadas anteriormente poderiam, em sala de aula, ser analisadas detalhadamente, dependendo do tempo que o professor tiver. No entanto, o próprio levantamento de materiais já nos comprova que tal proposta seria possível de ser aplicada no momento em que o docente fosse trabalhar com o Modernismo social de 30 ou na aplicação dos elementos da narrativa: tempo, espaço, narrador, foco narrativo, enredo e personagens.

Outro ponto pertinente é a relevância de partir do próprio horizonte de expectativas dos alunos, para que a leitura passe pelas etapas de prazer, fruição literária e, depois, prazer estético, aquela leitura que nos faz mais críticos e reflexivos. Mais uma vez, o trabalho interdisciplinar mostra suas vantagens, já que, com ele, tanto os alunos interessados em Literatura, Música, Fotografia, Pintura, ou seja, em qualquer uma das manifestações artísticas citadas no decorrer deste trabalho, estariam próximos de seu principal interesse, ao tempo que aprenderiam sobre as outras artes.

Ainda é válido ressaltar que uma proposta intertextual nos dá o direito de dizer que não somos um povo com uma identidade cultural restrita, mas, ao contrário disso, temos várias identificações que podem se modificar de acordo com a ampliação de nossos horizontes de expectativas. Assim, além da Literatura, a conhecimento geral dos alunos também seriam bastante ampliados.

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Autor: Ana Paula Miqueletti


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