Fenomenologia e Metafísica da Esperança em Gabriel Marcel



O presente estudo, embasado, sobretudo, no capítulo Esbozo a una fenomenologia y metafísica de la esperanza da obra Homo Viator do filósofo existencialista francês Gabriel Marcel, apresenta, a partir de uma perspectiva fenomenológico-metafísica, o tema da esperança. A existência humana, segundo Marcel, é essencialmente itinerância. Um movimento; um peregrinar orientado por um propósito. Ao nascer, o homem dá início a sua jornada neste mundo, no qual não tem morada definitiva. Existir é caminhar e não deixar nunca de caminhar. O peregrino não é uma mônada, ou, um eu transcendental, mas sim um ser encarnado, concreto e singular. Sempre situado no mundo, e, por ele constantemente influenciado, o peregrino se engaja para transformá-lo, para dar-lhe sentido. É alguém que caminha sempre em busca de ser mais do que é. O peregrino, ao contrário do andarilho solitário, caminha engajado, com os outros. Assim, o peregrinar é a condição de possibilidade para encontrar respostas àquelas interrogações mais profundas e decisivas que surgem na vida ao longo do caminho. O amor e a fidelidade é o fundamento da verdadeira comunhão intersubjetiva. Esta é o pressuposto básico para o surgimento autêntico da esperança. Sempre como exigência ontológica do homem, a esperança se constitui num apelo que nasce do mais profundo do ser no momento do sofrimento, da mais sofrida provação; ali onde intervém a tentação de desesperar. A esperança, como disponibilidade do eu espero, consiste no ato que transcende o querer e o conhecer, e afirma a perenidade vivente do ser no horizonte aberto e fecundo da comunhão intersubjetiva.

1 INTRODUÇÃO

No presente trabalho aborda-se, a partir de uma perspectiva fenomenológico-metafísica, o tema da esperança no pensamento do filósofo existencialista francês Gabriel Marcel. Fundamenta-se a pesquisa, sobretudo, no artigo "Esbozo a una fenomenologia y metafísica de la esperanza" da obra Homo Viator. Obra, esta, que reúne inúmeros artigos e conferências de Marcel e cujo propósito primeiro consiste em situar o ser humano sempre em itinerância, onde o peregrinar se revela como o único modo de responder às mais diversas interrogações existenciais.

Apresenta-se no capítulo primeiro o contexto histórico e filosófico de Marcel, sua conversão à filosofia concreta e a sua conversão ao catolicismo, bem como seu envolvimento na Primeira Guerra Mundial e a implicância desses acontecimentos em sua vida e em seus escritos. Ademais, aborda-se, de forma breve, o pensamento de quatro importantes filósofos existencialistas, enfatizando as aproximações e as oposições ao pensamento de Marcel.

No capítulo segundo, busca-se abordar a existência como itinerância. Apresenta-se a metodologia marceliana de uma filosofia concreta, a crítica ao conhecimento objetivista, aos sistemas filosóficos e à pretensão de encapsular o ser humano dentro de conceitos abstratos e reducionistas. A seguir, faz-se a capital distinção entre mistério e problema, sustenta-se que há âmbitos da existência humana que não pertencem aos domínios da ciência, pois dizem respeito a nossa própria singularidade. Enquanto o problema é algo que traz consigo a possibilidade de ser solucionado a partir da técnica, da ciência, o mistério compreende o todo de nossa existência, vista por Marcel como uma presença inobjetivável, e, que, portanto, não é um problema a ser resolvido, mas um mistério a ser celebrado, experimentado e vivido na mais profunda comunhão. Por último, aborda-se a existência humana como itinerância a partir da compreensão de que o homem é um homo viator, um ser encarnado, peregrino, itinerante e que não caminha na solidão, mas sim na comunhão e na participação engajada.

Por fim, no capítulo terceiro, a partir de uma perspectiva fenomenológico-metafísica, aborda-se a compreensão marceliana de esperança. De início, faz-se as distinções entre esperança, desejo e otimismo, com isso sustenta-se que a esperança apresenta-se como uma exigência ontológica do ser humano face a situação de prova, de sofrimento, da vida como catividade. O desespero, em sua essência, consiste numa autofagia espiritual, isto é, num suicidar-se dia após dia a partir do momento que se está envolvido pelas trevas do sofrimento e não se vislumbra nenhuma saída. Identificado por Marcel com a solidão, o desespero resulta do fechamento, do orgulho, da auto-suficiência e do isolamento; da convicção de que outro não tem nada a acrescentar à situação na qual estou vivendo. Nesse sentido, oposta ao desespero, a esperança é uma experiência ontológica que nasce, em meio ao sofrimento, como uma certeza que se funda na intersubjetividade, na comunhão amorosa que se estabelece com o outro. È conseqüência da convicção de que o tempo é aberto, que a realidade não é fechada e que o outro tem algo a oferecer, de modo que a situação desoladora na qual se está vivendo não é eterna, que há uma solução, uma saída.

Peregrinos pelos caminhos muitas vezes tortuosos deste mundo, constantemente envolvidos nas mais diversas situações de prova, fortemente ameaçados pelas trevas do individualismo, da dor, do nihilismo, da falta de sentido e da morte, como encontrar razões sólidas para não desistir?

2 GABRIEL MARCEL E O EXISTENCIALISMO

O pensamento filosófico de Gabriel Marcel constitui-se estreitamente ligado aos mais profundos e decisivos acontecimentos de sua vida. Propõe-se a compreender o homem em toda a sua totalidade, considerando substancialmente sua singularidade, intersubjetividade, interioridade, concretude e transcendência. "Su investigación se orientó, desde el primer momento, hacia la elucidación de la trascendencia y la inmortalidad del alma, partiendo de la radical problematización del existir concreto"(CARMONA, 1988, p. 16). Por isso, Marcel compreende que o lugar de onde se deve partir não é outro senão a experiência existencial vivida. Daí que, não se trata de compreender o homem e a existência em geral, senão que há que se compreender o homem que existe de fato, individual, singular, situado no mundo. O filosofar de Marcel se constitui, então, principalmente, a partir de sua própria existência e dos mais diversos acontecimentos que viveu, sobretudo, aqueles acontecimentos trágicos e angustiantes da infância e da juventude.

Gabriel Marcel nasceu em Paris no dia 7 de Dezembro de 1889 e morreu em Paris no dia 8 de Outubro de 1973.Aos quatro anos de idade passou pelo doloroso processo de perda com o falecimento de sua mãe. A orfandade[1] e o fato de ser filho único influenciaram substancialmente seu futuro como indivíduo e como Filósofo. Foi certamente o motor da sua busca pela compreensão da existência humana, da morte e da vida após a morte. A ausência de irmãos foi também uma das causas da sua fascinação pelo teatro, pelo drama, através dos quais criava personagens imaginários e com os quais conversava assim como se conversa entre irmãos.

Para Marcel, a dramaturgia[2] se constitui num espaço privilegiado para expressar as mais diversas experiências humanas, quer de sofrimento, quer de esperança, pois permite o diálogo vivo entre pessoas concretas, que abrem o coração e revelam suas situações existenciais. Além do drama, a experiência musical (influenciado por sua mulher) contribuiu substancialmente para o aprofundamento e desenvolvimento da sua reflexão no âmbito filosófico. Pois a música permite adentrar em "regiões" do humano que o pensamento objetivista não consegue chegar, e proporcionar experiências supra-racionais de ordem semelhante ao do encontro interpessoal. Daí que, a música é uma porta-aberta que dá acesso ao supra-sensível e, consequentemente, é um exercício que contribui para o contato com as próprias experiências existenciais.

Mais tarde outros acontecimentos marcaram também profundamente a vida de Marcel, e que se refletem visivelmente em todas as suas obras. No período de 1914 a 1918, durante a primeira guerra Mundial, Marcel dirigiu um grupo de serviço na Cruz Vermelha, cuja tarefa era procurar os soldados desaparecidos nos campos de batalhas e avisar aos seus familiares. Desse modo, experimentou concretamente o drama da existência humana, ainda mais ao presenciar o terrível sofrimento que assolava os pais dos soldados mortos ao receberem a triste notícia sobre a real situação de seus filhos. Foi precisamente nesta época e neste contexto que Marcel deu início a sua primeira obra filosófica, publicada em 1927 com o título de Jornal Metafísico.[3]

Posteriormente, Marcel passou por duas decisivas conversões que marcaram todo o decorrer de sua vida. A primeira conversão foi filosófica, afastou-se da filosofia idealista para se ater a uma filosofia concreta, existencial. O contato com a filosofia neo-kantiana e neo-idealista na Sorbona não preencheu seu anseio a respeito das questões que lhe inquietavam, como, por exemplo, a morte de sua mãe e dos soldados na guerra de 1914-1918. Foi uma feliz surpresa quando ouviu, pela primeira vez, as palestras de Henri Bérgson[4] o qual o influenciou fortemente para a valorização do concreto, do real.

A segunda conversão foi religiosa, aconteceu em 1929, por intermédio de François Mauriac, Charles Du Bos e de seus estudos acerca da existência do mistério. Assim Marcel passou do agnosticismo para o catolicismo romano. Nas palavras de Marcel: "Me propongo señalar aqui lo más claramente posible cómo las investigações filosóficas sobre la existencia, sobre la naturaleza misma del existir, se han articulado en mi caso con un conjunto de preocupaciones que desenbocaron en mi conversión al catolicismo"(Gabriel Marcel in CARMONA, 1988, p. 16).

A Conversão filosófica foi marcada por dois grandes fatos: a primeira guerra mundial e o confronto com o filósofo idealista Leon Bruschvicg. A Primeira Guerra Mundial fez Marcel viver uma experiência profundamente trágica e desoladora. Seu trabalho na cruz Vermelha servindo de ligação entre o exército francês e as famílias dos militares, lhe fez experimentar na carne o sofrimento humano. Esse contato com a morte de milhares de soldados e a lembrança sempre presente da morte de sua mãe lhe trouxe a tona uma questão de sua infância onde se perguntava "para onde vão os mortos"? Questão essa que, conforme Marcel afirmou mais tarde, o idealismo jamais conseguiria responder.

Assim, o drama da existência humana começou a fazer parte dos questionamentos de Marcel e ser aos poucos introduzido em seus diários filosóficos e peças teatrais. A existência de que fala Marcel é a existência concreta, encarnada. O existente não é uma idéia, mas um ser concreto, individual, que sofre, se angustia, se projeta no mundo, se constrói com o outro e que carrega dentro de si uma profunda esperança de vitória sobre a morte. Para Marcel a filosofiadeve partir do solo da experiência, das situações cotidianas da vida concreta do homem e, em sentido de perfuração, penetrar na sua existência de modo a iluminá-la. "Nosotros, - parafraseaba Kierkegaard -, con el saber hemos olvidado el existir. Y, sin embargo, lo que impera desde el princípio es la experiencia existencial" (CARMONA, 1988, p. 16).

O segundo fato decisivo para a conversão filosófica de Marcel foi o confronto com filósofo idealista Leon Bruschvicg. Confronto que ocorreu devido a uma forte afirmação de Leon de que "não há nada além deste mundo cognoscível: afirmar a existência de algo que estivesse além do conhecimento humano seria um absurdo". Essa afirmação objetivista e reducionista não agradou a Marcel, que trazia consigo a dura experiência da dor e da morte de milhares de seres humanos na Primeira Guerra Mundial. A partir daí rompeu definitivamente com o idealismo em nome de uma filosofia concreta, da experiência e da esperança. Uma filosofia na qual pudesse encontrar respostas para suas mais profundas inquietações existenciais. Assim deu início às suas reflexões existenciais impressas em inúmeras obras.

As principais obras filosóficas de Gabriel Marcel são: (Diários) Diário Metafísico (1927), no qual traz como apêndice um artigo intitulado como Existência e objetividade; Ser e Ter (1935) e Presença e imortalidade (1959). (Ensaios) Filosofia concreta (1940) e Homo viator (1944) são duas obras que agrupam diversas palestras e ensaios que se propõem em iluminarem a existência humana. Posição e aproximações concretas ao mistério ontológico (1933), O mistério do ser (1951), Os homens contra o humano (1951). O homem problemático (1955), A dignidade humana (1955), entre outras.

2.1 O EXISTENCIALISMO

O existencialismo, de modo geral, consiste num conjunto de filosofias que centram suas análises sobre a existência humana, essa entendida como modo de ser próprio do homem no mundo. Mas as filosofias da existência não são plenamente uniformes, possuem tendências e compreensões diferentes. O que as unifica e as caracteriza como existenciais é o fato de buscarem, a partir de um mesmo ponto de partida, respostas relativas às mais profundas inquietações inerentes a condição humana e sua relação com o mundo. Pode-se afirmar, sem qualquer risco de erro, que cada filosofia é uma expressão original da experiência existencial do seu respectivo filósofo; como afirma Foulquié "há com efeito quase tantos existencialismos quantos filósofos existencialistas" (FOULQUIÉ, 1955, p. 36).

A centralidade do existencialismo consiste em problematizar as questões reais do homem. É um modo de fazer filosofia voltado para o concreto, para o humano, em oposição ao idealismo de Hegel, ao objetivismo cientificista e ao materialismo histórico. A oposição dos existencialistas contra esses sistemas se dá pelo fato de que esses reduzem o homem a um simples aspecto do geral absoluto, ou, desconsideram a sua individualidade e irredutibilidade em nome de um sistema político-econômico.

Para o existencialismo, o ser humano, particular e concreto, é um ser em construção, inacabado, aberto às possibilidades da realidade, vinculado ao mundo real e, de maneira especial, aos demais seres humanos. Devido a essa sua condição, mencionada através das características acima, o homem encontra-se sempre em uma determinada situação, o que os filósofos entendem ser a gênese de inúmeras limitações, sofrimentos, angústia, desespero, suicídio, mas também de inúmeras superações, engajamentos, solidariedades, esperanças e valorização de si mesmo e do outro.

A existência humana, segundo o existencialismo, para ser verdadeira e autêntica, precisa erguer-se a partir do desconserto, da dor, do sofrimento. Inclusive em Gabriel Marcel, a esperança não floresce se não for sobre a terra árida do desespero e da angústia.

La verdad es que sólo puede haber, propiamente hablando, esperanza donde interviene la tentación de desesperar; la esperanza es el acto por el cual esta tentación es activa o victoriamente superada(MARCEL, 2005, p.48).

O existencialismo contemporâneo, oriundo das reflexões de Kierkegaard, nasceu na Europa quando esta estava vivendo a experiência traumática da Primeira Guerra Mundial. Isso nos faz compreender o fato de os existencialistas terem surgido a partir do desconcerto do contexto repugnante que viviam, suas metas não eram outras senão a tentativa de esclarecer a situação do humano, a condição existencial do homem e de suas circunstâncias.Por isso que, praticamente, quase todos os filósofos desta corrente são unânimes em afirmar que a vida autêntica, a vida vivida com esperança, o engajamento com o outro e a busca pela transcendência, somente são possíveis passando pelo vale tenebroso da angústia, do sofrimento e do desespero.

2.2 SÖREN KIERKEGAARD: PRECURSOR DO EXISTENCIALISMO

O existencialismo contemporâneo que floresceu, sobretudo, na França e na Alemanha, depois da Primeira Guerra Mundial é fruto precisamente das obras de Kierkegaard, as quais se constituem numa expressão original da sua profunda experiência religiosa e existencial. Sören Kierkegaard, filósofo, teólogo e pastor dinamarquês viveu apenas quarenta e dois anos (1813-1855), o suficiente para desenvolver um novo modo de fazer filosofia, que no século XX seria chamado de Existencialismo.

A Filosofia de Kierkegaard não chega a ser uma teoria, muito menos um sistema. O que Ele combateu sistematicamente. Mas uma expressão original de sua dramática e conflituosa existência. Esta, marcada profundamente pelo contexto familiar e religioso, pelo pecado e pela fé, pela angústia e pela esperança, pelo humano e pelo divino.

A existência, segundo Kierkegaard, é essencialmente confronto com as possibilidades. É constante provocação à transcendência, desafio a ultrapassar aquilo que se é em vista de ser aquilo que ainda não se é. Conforme Charles Le Blanc:

A vida do homem é existência, é relação com o mundo e com os outros; é preocupação com a sobrevivência, é antecipação e projeto, desenvolvimento de um programa que está se escrevendo, saída si, da vida, é essa continuidade contrariada por descontinuidades, as das escolhas que é preciso efetuar o tempo todo. O existir é contingência absoluta: existir não conhece outra necessidade a não ser a das escolhas exigidas por um existir livre sem determinação (BLANC, 2003, p. 48).

É a partir dessas compreensões a cerca da existência humana, que, segundo Kierkegaard, é possível entender o fenômeno da angústia como vertigem diante da possibilidade.Dito de outro modo, a angústia se dá diante da possibilidade de se realizar ou não a possibilidade. Entretanto, a angústia é capital para o indivíduo despertar para a existência autêntica. Ela é a grande educadora que o ensina na difícil tarefa de fazer escolhas edificadoras, de modo que chegue um dia a ser aquilo que projetou ser. Por isso que, para Kierkegaard, a experiência da angústia, se bem vivida, é benéfica para o indivíduo, pois o desinstala e, conforme Jolivet: "provoca a ruptura e o salto, graças aos quais o homem, como temos visto, escapa de seus limites, abunda em sua verdade e existe verdadeira e plenamente" (JOLIVET, 1950, p. 54).

O desespero, doença mortal, é o fogo inextinguível que é impossível vencer, pois é de fato a doença até a morte do eu. Porém, essa impossibilidade de vitória sobre o desespero só é impossibilidade para quem não acredita em Deus, para quem não tem fé. Assim, de acordo com Blanc: "o único remédio para o desespero é a fé, porque ter fé é acreditar que para Deus tudo é possível" (BLANC, 2003, p. 88).

2.3 KARL JASPERS: FILÓSOFO DA TRANSCENDÊNCIA

Karl Jaspers (1883-1969) é o Filósofo da existência que mais se aproxima de Gabriel Marcel. Segundo Paul Ricouer, ambos estão centrados no concreto e intimamente penetrados no mistério que nos envolve. Mas Jaspers é menos ensaísta e mais sistemático.

Conforme Karl Jaspers, a existência concreta possui três esferas: o mundo que constitui objeto da ciência, o eu considerado na sua subjetividade e a quem se aplica a categoria de existência e por fim a transcendência. A existência para Jaspers, assim como é entendida por todos os existencialistas, é confronto direto com as possibilidades. Existir implica em fazer escolhas o tempo todo, em deliberar livremente sobre as mais variadas possibilidades que as situações apresentam. A existência assim consiste no descobrimento do ser humano individual e de suas possibilidades. A partir dessa caracterização "não podemos conceber a existência como objetividade: guardemo-nos, entretanto, de concebê-la como subjetividade" (GIORDANI, 1997, p.56).

Segundo Jaspers, a esfera da transcendência só é possível no confronto da existência com as situações-limites. Estas são situações profundas como angústia diante da eminente possibilidade da morte, o sofrimento agudo, a doença, entre outros, que impulsionam o individuo a transcender os limites do mundo concreto. Conforme Giordani:

Nessas situações-limites o homem é levado à própria fronteira de seu ser intramundano e colocado diante do nada. O homem experimenta que, em uma ordem puramente imanente, lhe é impossível realizar-se em plenitude. Aquele que quer fundamentar-se na imanência acaba em um total naufrágio. O naufrágio é o ultimo. Porém esse naufrágio da imanência e superado mediante o salto para outra margem (GIORDANI, 1997, p. 57).

O termo transcendência é utilizado por Jaspers para caracterizar dois movimentos. O primeiro, é o movimento de transcender, como vimos acima, os limites do mundo. É uma experiência que se dá quando há um confronto da existência individual com as situações-limites ou fracassos. Assim, "se está no mistério de uma transcendência que não pode ser conhecida nem pensada, que carece em absoluto de determinação alguma, e da qual unicamente se pode saber que é, sem saber nunca o que é" (GIORDANI, 1997,p. 58). O outro significado do termo transcendência diz respeito ao movimento constante de ultrapassar aquilo que somos, é resultado do fato de projetarmos o que desejamos ser. Esse movimento se dá pelo fato da existência ser aberta às possibilidades, dinâmica e em processo ininterrupto de construção. É, portanto, substancialmente uma transcendência na imanência.

A transcendência provocada pelas situações-limites se revela, embora através de uma linguagem cifrada, na história e no mundo. Mas, é, sobretudo, nos fracassos da existência humana que melhor se percebe, e onde melhor se pode ler, as cifras (sinais) mais profundas da transcendência. A comunicação, questão fundamental em Marcel, ocupa na Filosofia de Jaspers um lugar de destaque. Ambos afirmam que a comunicação propicia uma espécie de criação mútua entre o eu e o tu. Mas essa criação mútua para acontecer de fato precisa se dar no plano do amor, um amor que não busca interesses, que não é egoísta, mas que é doação e união:

A comunicação existencial está ligada ao amor. O amor ainda não é comunicação, mas é sua fonte mais profunda. É o amor, com efeito, o que une, o que faz do eu e do tu, separados na existência empírica, uma só e mesma coisa na transcendência; e a maravilha do amor é que,ao realizar essa união, leva a cada um dos amigos a realizar-se no que tem de mais pessoal e de mais inimitável (JOLIVET, 1950, p. 245).

Para Jaspers, o homem não se torna humano sozinho. O outro, assim como em Marcel, é uma presença que se revela ao eu, que faz o eu ser mais do que é. O que o eu é verdadeiramente não pode chegar a ser mais que na companhia amorosa do outro, quer dizer, do tu.

2.4 MARTIN HEIDEGGER: FILÓSOFO DA BUSCA DO SENTIDO DO SER[5]

Martin Heidegger (1889-1976) está entre aqueles filósofos existencialistas que não professam abertamente uma fé em Deus. Porém, afirmou a Gabriel Marcel que não admitia ser considerado um filósofo ateu Heidegger é por vezes criticado por Marcel por utilizar uma linguagem obscura, que dificulta o entendimento, e por apresentar uma compreensão de homem como sendo um ser inevitavelmente para-a-morte, onde é totalmente desconsiderada a questão da transcendência.

Na Filosofia de Heidegger duas categorias são indispensáveis: a existência (inautêntica/autêntica) e a angústia. A existência inautêntica, vivida na cotidianidade, é constituída por três aspectos fundamentais: a facticidade, a transcendência e a dejeção. O aspecto fáctico da existência consiste no fato do ser estar jogado no mundo sem seu consentimento (ser-no-mundo).

O aspecto da transcendência caracteriza a existência por projetar-se no mundo em vista-de-si-mesmo. É um projetar que não desvaloriza o presente nem mesmo o passado, pois esse faz com que o ser delibere no tempo presente com maior cuidado. Assim, vemos que para Heidegger, o termo transcendência diz respeito ao movimento da existência que ocorre tão somente no plano da imanência, sem ultrapassar os limites do mundo. Existir é um constante ato de ultrapassar as situações a fim de tornar-se o que se projeta ser: "O homem lança ante si suas possibilidades para realizá-las e construir-se a si mesmo e o seu mundo. E dado que esse projetar se realiza no seio da derelicção, o homem se compreende como uma possibilidade lançada ao mundo, como um projeto" (GIORDANI, 1997, p.81).

O aspecto da queda consiste no desvio do projeto essencial em vista da ocupação demasiada com as preocupações do cotidiano, a consequência é a distração e perturbação no interior da existência. É o que Heidegger chama de dejeção, ou seja, a queda do homem ao nível das coisas do mundo, onde a existência fica reduzida apenas ao existir em meio aos outros e para os outros.

Em Heidegger, a existência autêntica está intimamente ligada à angústia e ao ser-para-a-morte. A angústia, como em Kierkegaard, é a única capaz de reconduzir o ser ao encontro de sua plenitude como ser, e isso se dá a partir da reconstrução da existência decaída na inautenticidade da cotidianidade. Para Heidegger, o que difere a angústia do medo é o fato que esse último possui a causa num objeto determinado, já a angústia nasce da experiência da possibilidade do nada, da aniquilação. Como aponta Heidegger: da impossibilidade possível da existência. Em outras palavras, o que origina a angústia é o fato do ser-aí estar jogado, ser um ser-no-mundo, vivendo a difícil experiência de ser-para-a-morte. [6]

Nesta experiência de angústia o ser encontra-se frente a duas possibilidades: permanecer na existência inautêntica, vivendo no plano das coisas e na banalidade do cotidiano, ou, superar sua própria situação transcendendo sobre o que é em vista de ser aquilo que não é. O que permite o ser atribuir um sentido à sua própria existência.

2.5 JEAN PAUL SARTRE: FILÓSOFO DO SER E DO NADA[7]

Jean Paul Sartre (1905-1980), Filósofo Francês, foi um dos principais representantes do existencialismo contemporâneo. Professou expressamente em suas obras e discursos a posição ateísta, sua náusea perante o mundo. Conforme Giordani:

As obras de Sartre respiram uma atmosfera de náusea e estão repletas de frases demolidoras, negativas, tais como: "o homem é uma paixão inútil, uma criança é uma coisa vomitada, o inferno são os outros". A ausência de um olhar de amor para com o mundo e para com a humanidade denota uma existência vazia, da qual parece ter estado ausente um autêntico amor (GIORDANI, 1997, p. 95-96).

Para Sartre, a angústia é a mais radical de todas as experiências. Resulta do fato do homem estar lançado no mundo por acaso e ser obrigado a ter que escolher. No entanto, no fundo, a angústia é benéfica, pois provoca o homem à ação e à construção de sua própria existência e a da humanidade. O ser-em-sí, primeira dimensão do ser, é próprio das coisas materiais. Essas apenas são sem nenhuma consciência do que são. Não são livres, não possuem projetos, muito menos responsabilidade.

O ser-para-si, segunda dimensão do ser, é próprio do ser humano, que é consciência, liberdade, intencionalidade e responsabilidade. É um ser em relação, está necessariamente em função do que está fora de si: o mundo e os outros. Sendo um ser de consciência, liberdade e relação é alguém que se projeta, cria expectativas sobre si e sobre os outros, por isso que na medida que tais aspirações não se concretizam se confronta com o nada. Nesta experiência com a impossibilidade do possível é invadido pela angústia do não ser aquilo que projetou ser. A angústia é, portanto, inerente a consciência da própria liberdade.

Conforme Carmona:

Mientras que Sartre reconocía únicamente la "yoidad" como fundamento del existir, Gabriel Marcel encontro en la realidad del tú, de la comunión, la absolutez creadora, que culmina en el concepto simbólico de fidelidad, como lugar del ser. Sólo en la experiencia del tú se abre mi proprio ser personal, vivenciable como presencia  no como objeto-; por eso, es menester sobreelevarse por encima de la objetivación para llegar al serefectivo: metaproblemático, misterio ontológico. (CARMONA, 1988, p. 16-17).

Para Sartre, o ser com o outro é uma relação de conflito. Ao relacionar-se com os outros, o homem tem a sua liberdade condicionada pela liberdade alheia. O olhar do outro me coisifica, de sujeito passo a ser um mero objeto diante do outro. Assim, a consciência experimenta a náusea de existir como coisa para o outro, experimentando a sensação incômoda de ser uma parte de seu universo exterior. Sartre ilustra isso através da análise da vergonha. "O olhar do outro, ao fazer com que eu me julgue objeto, propicia que a vergonha se manifeste em mim". (PENHA, 1990, p. 90). A vergonha só existe, portanto, porque o outro existe e se relaciona comigo. Nesse sentido, o outro se constitui numa espécie de inferno para minha liberdade, para a minha existência.

3A EXISTÊNCIA HUMANA COMO ITINERÂNCIA

Etimologicamente existir é manifestar-se, abrir-se ao mundo, construir-se, caminhar num determinado sentido. "A existência é um peregrinar. Um movimento orientado por um propósito, de tal modo que a todo o momento, há uma comunhão entre movimento e propósito" (GOMES, 2007, p.14). O sentido do movimento está função da concretização do propósito buscado.

A existência é o modo de ser próprio do homem. Ao contrário, por exemplo,de uma pedra que apenas está aí, o homem existe, é manifesto, é inquieto existencialmente, um ser que busca, que deseja, que anseia, que projeta-se para ser o que ainda não é, com o propósito de ser mais do que é. Ao perceber em si mesmo e nos outros, essas características particulares da condição humana, Marcel compreende que o homem se manifesta no mundo como um Homo Viator, isto é, como um homem viajante. No dizer do próprio Marcel: "he llegado a ver cada vez con mayor claridad a mi condición de ser no solamente encarnado, sino itinerante,Homo Viator". (MARCEL, 1951, p. 220). Homo Viator é sinônimo também de ser em marcha, ser itinerante, peregrino. A existência humana como itinerância é a existência do homem enquanto Homo Viator.

3.1 FILOSOFIA CONCRETA

Ao abordar a existência humana como itinerância, Marcel se propõe ao máximo ser fiel ao homem e ao mundo concreto. Suas compreensões conquistadas acerca do homem são substancialmente resultado da sua própria experiência pessoal e do contato direto com a vida concreta das pessoas com as quais conviveu.

O fato de ater-se permanentemente às situações concretas, reais, bem como o rechaçar as deduções, as generalizações e as objetivações, fazem da filosofia marceliana uma filosofia concreta[8], não empírica ou materialista, mas sim existencial. Para Marcel, uma filosofia é autêntica quando permite deixar-se penetrar pelas experiências existenciais concretas, por aquelas realidades pessoais profundas, e, compreendendo-as, as iluminar. Nas palavras do autor: "entiendo por filosofia auténtica uma filosofia que es la experiência trasmutada en pensamiento". (MARCEL, 1959, p. 37). Ou seja, uma filosofia que é as experiências existenciais transformadas em reflexão.

O homem que de fato existe, já dizia Kierkegaard, é o homem singular, individual. O homem geral é abstração. Em consideração a isso, Marcel adota como "método", rechaçando as abstrações e as conceituações fechadas, "remontar de la vida al pensamiento para luego descer del pensamiento a la vida tratando de iluminarla". (MARCEL, 1953, p. 49). Ou seja, parte da situação concreta do homem singular e de suas circunstâncias, pois entende que somente assim é possível lançar alguma luz sobre a existência humana. Agora, portanto, convém aprofundar melhor o significado do termo experiência, que é a base da filosofia para o nosso autor.

A experiência, da qual discorre Marcel, distinta da experiência entendida pelos idealistas, pelos racionalistas, pelos empiristas e pelos materialistas, é "...la experiencia de onde se parte, la que no se cesa de invocar y consultar, una experiencia individual y concreta, y no la experiencia ya generalizada, esquematizada y banalizada com que se han contentado tantas filosofias". (JOLIVET, 1950, p.294-295). Nesse sentido, a existência, a vida, o peregrinar, as relações e os encontros pessoais, o sofrimento, a esperança, são realidades que constituem a experiência da qual fala Marcel: "una experiencia que nosotros [diz Jolivet] llamaremos existencial para señalar que está enteramente comprometida en lo real más auténtico y como caliente aún por la palpitación de la vida" (JOLIVET, 1950, p. 295). Em outras palavras, a experiência é o próprio itinerar do homem, a sua existencialidade, "existencialidad...en tanto que ésta misma es inobjetivable". (MARCEL, 1959, p. 34-35).Por isso, a experiência permanece experiênciaenquanto é pura, caliente, como diz Jolivet; ao ser objetivada, deixa de ser uma autêntica experiência e passa a ser apenas um conjunto de dados e informações parciais obtidas pela investigação. A pretensão de Marcel é justamente fazeruma mudança de "método", uma nova revolução copernicana, de modo que se acolha a experiência como ela é, com toda a sua riqueza e não apenas uma parte.

Para Marcel o pensamento e a vida devem andar juntos, pois do contrário, o pensamento, ao desligar-se do concreto, decolaria para uma abstração sem fim, enquanto a vida continuaria na penumbra da falta de rumo, de propósito e de sentido. A filosofia concreta, antes de qualquer coisa, pretende ser uma "ponte entre nossa vida concretae o pensamento reflexivo, procurando o sentido último da existência humana" (ZILLES, 1988, p.39).

A orientação de Marcel, semelhante a Kierkegaard e Jaspers, sobretudo, a saber, em ater-se a experiência vivida do homem singular e de suas circunstâncias concretas, constitui-se num rechaço às filosofias idealistas que, em vez de remontar das experiências concretas da existência humana ao pensamento, buscam descer do pensamento à vida; se é que de fato conseguem.

Disso tudo resulta que: para compreender a experiência existencial de um homem singular é indispensável partir da sua própria experiência, isto é, da sua própria existência; acolhendo-a em sua pureza, em sua profundidade, do contrário, isto é, partindo com pensamento objetivista, tal experiência seria deturpada, encapsulada dentro de conceitos abstratos e fechados e não se chegaria a compreensão alguma.

A experiência, sobretudo, pessoal e a experiência oriunda do contato direto com o sofrimento e com as mortes dos soldados da Primeira Guerra Mundial, fizeram com que Marcel percebesse que as experiências existenciais do homem individual não permitem ser abarcadas por filosofias que não descem ao concreto, afinal "a situação do humano é mais ampla e aberta que o fechamento dos sistemas filosóficos e científicos" (GOMES, 2007, p. 14). O sistema trabalha com conceitos e com generalizações, o humano é singular, concreto. Portanto, o sistema é insuficiente para abarcar o mais profundo do homem, lá onde o conceito não consegue entrar, a saber, a existência íntima, pessoal.

Essas compreensões todas levaram Marcel a se desligar do idealismo:

A medida que mi reflexión se concentraba sobre este problema, me aparecía más claro que esta integración no podia ser ni realizada, ni incluso seriamente intentada; y a partir de aquí debía yo ser llevado, por una parte, a abrir en el fondo de mí mismo un verdadero proceso, en el que el valor de la idea de sistema inteligible, se encontrabapuesta en tela de juicio; por otra parte a interrogarme cada vez más sobre la estructura intima de la experiencia. Por tanto, toda orientación de mi investigación filosófica se encontraba profundamente modificada (MARCEL, 1959, p. 24).

A constatação de que a experiência pessoal, a situação real do humano, a morte como o mistério mais profundo da existência humana, não tem vez no sistema filosófico, fizeram Marcel abandonar, à beira do caminho, não só o idealismo, mas também a pretensão de quando jovem de construir um sistema filosófico. "Cuanto más intentava profundizar mi experiencia tanto más la idéia de cierto cuerpo de pensamiento que seria mi sistema, que yo llamaria mi sistema, me parecía inacptable". (MARCEL, 1959, p. 25). A experiência existencial escapa a qualquer forma de apreensão puramente intelectual; A existência é inobjetivável, por isso, afirma Marcel: "la pretensión de encapsular el universo en un conjunto de fórmulas, más o menos rigurosamente ligadas unas a otras, es irrisória" (MARCEL, 1959, P. 25).

Marcel, ao contrário de Descartes, não parte de um princípio lógico, nem de deduções, mas sim da existência, do existencial indubitável. "Este existencial indubitable no puede ser otro que yo en tanto que estoy seguro de existir" (MARCEL, 1951, p. 92). A minha existência, a existência do outro, é a base, o ponto de partida, ou se quiser, o fundamento da filosofia concreta, isto é, da filosofia existencial.

Todos os filósofos ao longo da tradição elegeram um ponto de partida a partir do qual desenvolveram suas reflexões. Sem poder escapar disso, Marcel coloca como ponto de partida um "indubitable, no lógico o racional, sino existencial; si la existencia no está en el origen no estará en ninguna parte." (MARCEL, 1959, p. 26). Nosso filósofo, juntamente com os demais existencialistas, parte da existência em suas reflexões. Ela é o manancial de onde bebe sua filosofia. Aqui vemos com maior solidez a razão pela qual Marcel, em sua filosofia concreta, adota como "método" remontar da vida ao pensamento para logo descer do pensamento a vida.

Quando tenho consciência de que "existo" contemplo, mesmo que obscuramente, o fato de que sou algo, porém não apenas para mim, pois me manifesto. "El prefijo "ex" en existir traduce un movimiento hacia el exterior. Existo: quiere decir que tengo de hacerme conocer o reconocer; y todo esto no es separable del hecho de que "hay mi cuerpo". (MARCEL,1959, p. 27). A certeza de que existo ganha consistência na medida que reconheço que eu não sou uma mônada, mas que há em mim uma presença de meu corpo em mim mesmo. "Esta presencia es el punto respecto del cual se ordena la multiplicidad infinitade lo que puede ser pensado por mi mismo como existente" ( MARCEL, 1959, p. 28).O indubitável existencial é a "primeira certeza", sou eu mesmo, existente inseparável do meu corpo; ponto de partida que não pode ser negado sem incorrer em contradição. Existo, sou um ser manifesto e, isso, graças ao corpo. Quanto ao corpo e a encarnação no mundo, abordaremos mais adiante.

O homem não nasce pronto, frente às possibilidades dadas e construídas por ele mesmo ao longo do caminho é que realiza a nobre e interminável tarefa de fazer-se mais do que és. Cada passo que é dado, é dado na direção do que deseja ser mais, na direção do que projeta ser mais. O homem sempre busca ser mais, anseia por completude. Ao longo da existência, o homem vai constituindo experiências profundas a nível ontológico como sofrimento, esperança, amizade, angústia, fé, amor, que "detrás de ellas queda siempre uma realidad irreductible a objeto, una espécie de yo puro, que escapa a la objetivación del pensamiento". (CARMONA, 1988, p. 131).

3.2 MISTÉRIO E PROBLEMA

O esquema tradicional sujeito-objeto é válido sempre quando o objeto analisado é algo dado fora do sujeito que o analisa. No que diz respeito às questões existenciais, ontológicas, o esquema sujeito-objeto é insuficiente para abarcar toda a realidade, porque o objeto analisado é o mesmo sujeito que analisa e, portanto, não pode ser observado e definido, pois não se encontra dado fora do sujeito. "Querer objetivar lo que yo soy es esquematizarme; yo estoy siempre más alla de todo esquema. El yo huye siempre a todo intento de aprehensión" (CARMONA, 1988, p. 131); é impossível concretamente "coisificar el sujeito". (MARCEL, 1951, p. 56).

As questões mais profundas e decisivas da vida, as quais o intelecto não consegue dar conta, só podem encontrar respostas ao longo do caminho. "Se espera erróneamente del intelecto la certeza en todo aquello que es decisivo para la vida" ( CARMONA, 1988, P. 140). Para Marcel, o engajamento, a intersubjetividade, a esperança, o caminhar com os outros são os meios possíveis para encontrar soluções à determinadas questões existenciais. A ciência, as tecnologias, os sistemas filosóficos, dão conta de determinadas respostas para um determinado âmbito da existência humana, porém " existen  dice Marcel - determinadas realidades metaempiricas que superan esa condición rígida y rigurosa de la objetividad". (CARMONA, 1988, p. 144). Além do âmbito explorado pela ciência encontra-se o âmbito da nossa existencialidade, ao qual só se tem acesso pela via da experiência interior, do recolhimento e da intersubjetividade.

O âmbito da ciência, da técnica, é o âmbito do problemático. Neste, o esquema sujeito-objeto é suficiente para dar conta de resolver os problemas, pois estes são sempre exteriores ao sujeito. O problema, assim como o objeto, é algo que se encontra diante do sujeito, sempre fora, separado, a frente do sujeito, o qual o retira informações, coleta dados, testa, verifica, analisa, define. No dizer de Marcel: "un problema es algo con lo que me enfrento, algo que halla por entero ante mí, y que por lo mismo puedo cercar y reducir". (MARCEL, 1969, p. 145). Um exemplo para ilustrar: há ou não água na lua? Essa pergunta está no âmbito do problemático, pois a lua está fora mim, é um objeto passível de ser analisado por completo, deinquirir e de fazer verificações quantas vezes for preciso para encontrar a resposta ao problema. O que objetivamente define um problema é que este, por ser problema, traz consigo a possibilidade de ser solucionado totalmente.

O âmbito da existência humana, distinto doproblemático, é o âmbito do mistério. Pois "hay realidades tan ligadas a mi existencia que no puedo considerarlashaciendo abstración de mi mismo, porque estoy comprometido en ellas. Estas realidades son mistérios". (CARMONA, 1988, p. 160). Se há ou não água na lua é um problema a ser resolvido pela ciência, pois traz consigo a possibilidade de ser solucionado, basta encontrar-se meios eficazes para coletar os dados concretos capazes de provar. Agora, o desespero de uma mãe sabendo que seu filho está sequestrado e, que, a todo o momento não cessa de receber ligações sendo avisada que em breve matarão seu filho se o valor do resgate não for pago, e ao mesmo tempo não morre dentro de si a esperança de que algo aconteça e seu filho seja liberto, são realidades que a transpassam profundamente que, de modo algum, pode calculá-las objetivamente. O sequestro pode ser desmantelado, o filho pode ser liberto, porém a experiência do desespero e da esperança é algo que está além do âmbito do problema, encontra-se no âmbito do mistério. Assim como:

El mal, el amor, la fidelidad, la fe, la muerte, la esperanza, el misterio familiar, mi cuerpo en cuanto mio, el mundo, el yo, la justicia, la libertad, el ser...que soy yo no me es transparente, es un misterio que rebasael plano del sujeto-objeto; ...son realidades transobjetivas, que no pueden alcanzarse por via de conocimiento racional, puesto que no son problemáticas, sino misteriosas. (CARMONA, 1988, P. 159).

O mistério propriamente dito supera a dicotomia sujeito-objeto, pois é uma realidade na qual estou envolvido, implicado, de tal modo que não me é possível tomar distância para analisá-lo e objetivá-lo. No dizer de Marcel: "El misterio es algo en lo que me hallo comprometido, a cuya esencia pertenece, por conseguinte, el no estar enteramente ante mi. Es como si en esta zona la distinción entre en mi y ante mi perdiera su significación". (MARCEL, 1969, P. 124). O mistério é aquela experiência, aquela realidade que transpassa minha existência, não posso colocar em dúvida sua existência, pois a constato, a experimento em mim, de modo que, negar sua existência seria incorrer em contradição.

O mistério é uma realidade que não é possível conhecer por completo, apenas parcialmente e pela via da comunhão, da participação nele. "El misterio, - afirma Marcel -, es una certeza no-racional; al menos, no-racional en sentido cartesiano de racionalidad. Es realidad transobjetiva, nos sobrepasa, escapa al control experimental, no es deducible discursivamente, sino que nos es dada". (CARMONA, 1988, p.162). O mistério não é objeto de demonstração, pode apenas serreconhecido, porém não apreendido totalmente; o caminho do reconhecimento é pela via da comunhão, ou ainda, "por una profundización de nuestra propria experiencia". (CARMONA, 1988, p. 167).

O mistério no âmbito bíblico, o mistério no âmbito existencial e o incognoscível são realidades distintas. O primeiro diz respeito, sobretudo, a Deus e às realidades divinas. O segundo compreende as realidades existenciais humanas e, o terceiro, compreende um âmbito do qual nada se pode dizer ou experimentar, portanto não faz parte da categoria de mistério. Segundo Marcel, o incognoscível pertence, de certo modo, ao âmbito do problemático.A questão, por exemplo, até pouco tempo incognoscível, a saber, se há ou não água na lua, não estava no âmbito do mistério, nem bíblico, nem existencial, mas sim no âmbito do problemático, pois trazia consigo a possibilidade de ser solucionado; bastava a ciência aprimorar seus instrumentos de exploração e, o, até então incognoscível, passaria a ser mais um problema resolvido.

O incognoscível, longe de ser um mistério, é apenas um problema a ser solucionado, porque "el hecho de no conocer la respuesta a uma pregunta no la convierte en misterio filosófico, en sentido marceliano. ¿Es un misterio no conocer la realidad del câncer, o de la electricidad, o del magnetismo? no. Serían, a lo más, problemas no resueltos". (CARMONA, 1988, p. 169).

Em suma, o mistério é aquela realidade no âmbito existencial que transpassa minha existência, que me envolve, me compromete. Pode apenas ser aclarada, reconhecida, sem, contudo, poder ser detalhada, apreendida totalmente. Afinal "além do problema que compreendemos, há um mistério que nos compreende". (REALE, 2006, p. 234). E mais "sin el misterio la vida seria irrespirable". (Gabriel Marcel in CARMONA, 1988, p. 160).

3.3 A EXISTÊNCIA HUMANA COMO ITINERÂNCIA E AS DIMENSÕES DO HOMO VIATOR

A existência humana é um mistério do qual participamos e, peregrinar é uma forma de penetrar neste mistério, compreendê-lo melhor pouco a pouco e, assim, experimentar uma parte de sua inesgotável riqueza. O homem que rejeita caminhar, que opta pelo suicídio, rejeita viver esse mistério maior que é o existir, o aperfeiçoar-se, o fazer-se mais do que é, o conviver. A existência é um mistério porque não está fora do homem, mas pelo contrário, é o modo de ser no mundo e com os outros, próprio do ser humano.

O homem, ao longo da tradição, foi "objeto" de estudo de inúmeros filósofos, à Marcel "no le preocupa el hombreespécie, universal y comum, "animal racional", objetivo y abstrato, sino el hombre en desamparo, singular y concreto, a la intemperie, envuelto en las múltiples peripecieshumanas, solidário, también, las aspiraciones próprias del hombre". (CARMONA, 1988, p. 145). A existência humana do homem concreto pode ser abordada em quatro dimensões, a saber, a dimensão da encarnação (estar-no-mundo), a dimensão da itinerância (homo viator), a dimensão da participação (estar-com-os-outros) e, por fim, a dimensão metafísica da esperança que abordaremos no terceiro capítulo.

A crítica marceliana à pretensão do conhecimento objetivo de querer conhecer o homem e sua existencialidade, não significa que Marcel sustente a incognoscibilidade da existência, senão que antes, manifesta-se contrário a aceitar um tipo de conhecimento insuficiente para abarcar toda a realidade existencial e que, além do mais a deturpa. Para Marcel, o "conhecimento" da existência é sempre reconhecimento, aclaramento, desvelamento, cuja via de acesso é o recolhimento interior, o encontro, a comunhão, a intersubjetividade.

Essas experiências ontológicas concretas são impossíveis de serem experiências de um eu transcendental, de uma mônada ou de um cogito cartesiano. A intersubjetividade, por exemplo, é uma comunhão de homens concretos, não de idéias ou conceitos. O homem, agente dessas experiências ontológicas profundas, é um ser que se manifesta, que se apresenta, numa misteriosa comunhão com "seu corpo". Assim sendo, podemos dizer que sua condição primordial é de ser encarnado, e mais, encarnado no mundo.

A encarnação, tendo presente a distinção realizada entre problema e mistério, situa-se no âmbito do mistério, pois não é algo separado de mim. Eu sou um ser encarnado, e, portanto, não posso separar meu ser do meu ser encarnado. Todavia, o fato da encarnação ser um mistério não significa que é totalmente velada. Afinal, somos seres encarnados, participamos diretamente da encarnação e, portanto, temos condições de aos poucos desvelá-la, mesmo que de modo parcial.

A encarnação é o modo de ser do homem, é a comunhão inseparável entre "eu e meu corpo". A encarnação significa "la situación de um ser ligado esencialmente y no accidentalmente a su cuerpo". (MARCEL, 1951, p.102). O ser não é prisioneiro do corpo, nem este, cárcere do ser, antes, formam uma unidade tão sólida que é impossível de ser degradada, destituída, dissolvida. Para Marcel não há dualismo, mas uma unidade chamada ser encarnado.

Ser encarnado é manifestar-se ao mundo, é lançar-se em itinerancia, através do corpo. Porém, este "no es solamente un instrumento, presenta un tipo de realidad totalmente diferente em tanto que es mi manera de ser-en-el-mundo". (MARCEL, 1951, p. 189). Para mim, enquanto ser encarnado, o corpo não é uma peça, uma máquina, ou, um objeto de uso, mas sim o "meu corpo", formando comigo uma unidade indissolúvel, de modo que, me é impossível reconhecer-me sem o corpo.

Para suprimir todas estas cuestiones por esencia insolubles, ¿no deberé proceder a una especie de golpe de mano lógico y declarar que la supuesta dualidad entre yo y mi cuerpo no existe, y que em verdad yo soy mi cuerpo? Pero andémonos con cuidado: yo soy mi cuerpo ¿significa yo soy idêntico a mi cuerpo? También esta identidad deberá ser situada bajo la mirada implacable de la reflexión; ¿puede ser mantida? Está claro que no. Esta supuesta identidad es un sinsentido; no puede ser afirmada más que gracias a un acto implícito de anulación del yo: se transforma entonces en una afirmación materialista: mi cuerpo soy yo, solo mi cuerpo existe. (MARCEL, 1959, p. 29-30).

A dualidade entre eu e meu corpo, segundo Marcel, é insustentável, mas não por isso devo, para evitar complicações, afirmar que eu sou meu corpo, o meu corpo é o que existe. Não tem sentido, diz nosso autor, identificar eu com meu corpo, do mesmo modo que não tem sentido concebê-los separados totalmente. O homem é um ser encarnado, não é só corpo, se fosse, seria um bloco material jogado no mundo com outros corpos, o que seria uma afirmação completamente materialista, e, diga-se de passagem, absurda; Absurda porque "lo proprio de mi cuerpo es no existir solo, no poder existir solo" (MARCEL, 1959, p. 30).

O homo viator é uma unidade afirmada, indissolúvel, um ser encarnado, que, pensá-lo como um agregado de duas partes, a saber, sujeito + corpo, ou, ainda, identificá-lo como corpo ou sujeito simplesmente, é tratar como objeto o que é essencialmente um mistério. Pois "no hay em rigor un reducto inteligible, en el que yo pudiera establecerme fuerao más acá de mi cuerpo". (MARCEL, 1959, p. 30). Assim sendo, "ya no puede hablarse ni del primado de la res ni del primado de la ideia, puesto que el yo encarnado supera dialéticamente la vieja oposición sujeto-objeto" (CARMONA, 1988, p. 134). E, portanto, "la desencarnación es impracticable, está excluída por mi estructura misma"(MARCEL, 1959, p. 30).

Sou um ser encarnado, logo sou um ser-no-mundo, pois a encarnação é o modo, como já dissemos, do homem estar no mundo. A encarnação nos "lança" no mundo; desde o momento que somos concebidos, que somos encarnados, passamos a estar no mundo. "Creo que esta última expresión, que no es admitida en filosofia, o al menos no la era antes de Heidegger, traduce adecuadamente algo que, se ha comprendido, debe ser entendido como una participación, no como una comunicación" (MARCEL, 1959, p. 32).

O reconhecimento da condição de itinerância e temporalidade do homem fizeram com que Marcel substituísse o termo heideggeriano ser-no-mundo pelo termo estar-no-mundo. Afinal, o verbo estar em relação ao verbo ser caracteriza melhor a condição transitória do homem, a sua "passagem-pelo-mundo".

O fato de o peregrino estar-no-mundo não significa que ele se comunica com o mundo, pois só há comunicação verdadeira quando há comunhão e esta, por sua vez, só é possível no âmbito da subjetividade e não no dos objetos do mundo. O peregrino, através de sua encarnação, é uma presença concreta que participa do mundo e da vida dos outros. Não é uma pedra imóvel à beira do caminho, mas sim uma presença viva, aberta, em movimento. "Si el objeto es algo, una cosa que no cuenta para mi, el existir es una participación inmediata de lo que solemos denominar sujeto". (CARMONA, 1988, p. 144). O peregrino não é uma presença que marcha solitário pelo caminho, mas sim uma presença presente e participante com outras presenças, portanto, uma co-presença.

Encarnado, co-presente e situado no mundo, o peregrino está exposto direta ou indiretamente à influencias oriundas das circunstâncias nas quais participa.

Desde el momento en que se está en el orden de lo viviente, estar situado es estar expuesto a...Por mi parte me inclinaría, en este contexto, a rehabilitar hasta un determinado punto el desacreditado término de influencia ... Si el viviente, por estar en situación, está expuesto a las influencias, esto quiere decir en realidad que les es permeable en algún grado... Comprendemos tanto mejor qué es la permeabilidad cuanto más exactamente la identificamos con la porosidad ... Acaso progresariamos un poco si observásemos que la permeabilidad, en el más amplio sentido, está sin duda ligada a un determinado defecto de cohesión, o si se quiere de consistencia ... el hecho de estar en situación, es decir, de estar expuesto a, no es separáble de una determinada incohesión (MARCEL, 1959, p.102-103).

O peregrino não existe fora do mundo, numa outra galáxia, muito pelo contrário, está como que "misturado" no mundo, o tempo todo sendo afetado e formado pelo contexto que o cerca, irrevogavelmente condenado a ser um "peregrino-mundano". Nesse sentido Marcel não teria nenhuma objeção a conhecida frase de Ortega y Gasset:eu sou eu e minhas circunstancias. Afinal, como escreve o próprio Marcel "mí condición de viviente hace de mí un ser no solamente somemetido a determinismos objetivamente reconocibles, sino también expuesto, o si se quiere, abierto a una realidad distinta, com la cual de alguna manera entro em relación" (MARCEL, 1959, p. 103).

O peregrino participa no mundo semelhantemente a um ator que participa de uma peça teatral. Não está alheio ao que está acontecendo, pelo contrário, participa, se insere nas relações. À medida que caminha, que se deixa penetrar pelas experiências distintas, que se relaciona com os outros, o peregrino vai se constituindo existencialmente, sempre agregando a si novas realidades. A porosidade, a incoesão, a permeabilidade, expressões usadas por Marcel, significam a disponibilidade e a abertura do peregrino diante do mundo e dos outros.

O homem, ao nascer, está "condenado" a existir, a caminhar. Isso não significa que para Marcel a existência precede a essência, mas que existir é um "processo" contínuo de descobrimentos de mim mesmo, dos outros e do mundo; no qual vou agregando experiências ao meu ser, de tal modo que, a cada passo que dou, sou mais do que era antes. Para Marcel existência e essência são inseparáveis, pois não há como dissociar o existente de sua existência.Nesse sentido Marcel, Jaspers e Heidegger são bastante próximos. Para Heidegger "é inexato dizer que não há uma essência de mim próprio, há uma essência de mim próprio, mas que é a minha existência, quer dizer, o fato de eu ser-no-mundo". (WAHL, 1962, p. 51).

O homem é um ser que busca o tempo todo completar-se, fazer-se mais do que é. Para Kierkegaard "ser existente não é considerar-se como dado, mas como devendo ser criado o tempo todo por si próprio". (WAHL, 1962, p. 43). À essa compreensão kierkegaardiana, Marcel acrescentaria que o homem, além de dever ser criado por si próprio, é um ser disposto à ser "criado" pelos outros. Afinal, sua condição é de estar exposto à influências de suas circunstâncias e ser por elas afetado, influenciado.

O mérito de Kierkegaard, pai do existencialismo, foi o de gritar ao mundo que não existe o homem abstrato, mas sim o homem singular e que este possui a intrínseca tarefa de constituir-se como individual, sem nunca deixar de fazer-se a si mesmo. Conforme Sartre "não há uma essência de nós próprios... Que é a existência? Fazer e, ao fazer, fazer-se. Cada um é segundo o que faz. O homem define-se pelos seus atos". (WAHL, 1962, p.51).Sartre é o único dentre os grandes existencialistas que afirma a existência precede a essência. Nessa compreensão "o homem é tal qual se projeta, o homem só será depois e será tal qual se fizer. O homem é primeiramente um projeto... será o que projetou ser". (WAHL, 1962, p. 51).

Marcel não comunga com Sartre da afirmação de que a existência precede a essência[9], todavia acredita que é no caminhar, no itinerar, que o homem vai se constituindo, se completando. O homo viator não é um andarilho, de modo que qualquer caminho serve, mas sim um peregrino. "O homem peregrino de Marcel é, assim, a pessoa que percorre um caminho para se transformar, para ser. O sentido da peregrinação é que, ao seu término, algo se acrescentou ao ser ao longo do caminho, essa é a esperança e a fé do peregrino". (GOMES, 2007, p. 14). O andarilho divaga o peregrino caminha com propósitos. O andarilho caminha sozinho, o peregrino caminha engajado. O andarilho caminha com medo, o peregrino caminha com esperança.

Não obstante o propósito do peregrino de caminhar na direção da construção da autenticidade, da busca por ser mais, se transformar num andarilho, se degradar numa existência inautêntica, funcionalizada, é uma ameaça permanente. À semelhança de Kierkegaard, Marcel evidencia duas grandes causas, no mundo contemporâneo, que podem levar o homem a alienar-se de si mesmo, a saber, a sociedade tecnocrata, funcionalizada, e a sociedade de massa.

La creciente socialización de la viday el poder cada vez mayor del estado invadem la esfera privada de la persona y destruyen la hermandadde los hombres y el único fértil suelo en que pueden prosperar la reflexión y la fuerza creadora. Es un mundo en el cual los seres humanos tiendem a convertirse en funcionarios; es decir, en seres que agotan en una determinada función en la sociedad humana, convertidos en cifrasestadísticas, dejando ya de ser seres con derechos proprios que actúan libremente. (HEINEMANN, 1956, p.162-163).

Ser encarnado e estar-no-mundo implica em estar sujeito a alienação de si mesmo. Peregrinar não é garantia de imunidade diante das forças degradadoras que existem no mundo. O peregrino, itinerante neste mundo funcionalizado, tecnificado, pode converter-se num andarilho vagante. O peregrino[10] que, fascinado pelo mundo do ter e exposto às influências alienantes, pode perder de vista o propósito de o seu caminhar, transformar-se num escravo, numa máquina que cumpre uma determinada função e, assim, cair na impessoalidade da multidão.

No plano do ter, em oposição ao do ser, "cada cual tiene una ocupación, tiene posesión, y tiene determinadas funciones que cumplir...[assim sendo]...el tener es una fuente de enajenamiento"[11]. (HEINEMANN, 1956, p.163). O homem transfere o centro que é seu ser para o mundo do ter. Vive em função do que possui, minimiza o valor de sua existência e maximiza o valor da existência de suas posses. Daí que o ter passa a ter maior importância do que o ser. Assim, aliena-se de si mesmo, se confunde com os bens e com as funções que possui.

Para Jaspers, o homem aliena-se de si mesmo quando perde o "controle" do direcionamento de sua existência, pois: "ou sou eu quem decide e então tenho minha existência; ou se decide acerca de mim e então, reduzido a simples material nas mãos de outrem, eu careço de existência  aqui aparece o fenômeno da alienação". (BATALHA, 1968, p. 359).

A alienação, diferente em certo sentido do suicídio, não significa o fim do caminho ao peregrino. Antes, é um estado existencial no qual o peregrino precisa reencontrar forças em si mesmo e nos companheiros de peregrinação; reconstruírem juntos parte da liberdade degradada pelas forças alienantes do mundo funcionalizado e tecnificado.

O que é homem livre? O que é um peregrino livre? Existe A liberdade? Para Marcel:

Não se trata, pois, de averiguar o que é um homem livre em si, por essência, o que talvez não tenha significado; mas como, na situação histórica em que nos achamos e que temos de afrontar, hic et nunc, pode conceber-se e afirmar-se essa liberdade. A liberdade não é, pois, uma posse que se tenha, de uma vez para sempre, mas, antes, uma tarefa nunca acabada, que devemos realizar em situações concretas. Só se pode falar realmente de liberdade, onde houver engajamento (ZILLES, 1988, p. 93-94).

Participante no mundo, o peregrino está exposto o tempo todo a situações que ameaçam sua liberdade e a possibilidade de construí-la e reconstruí-la. O percurso da peregrinação, o mundo, é constituído também de problemas, guerras, seqüestros, extermínios, doenças. O peregrino não marcha no céu, mas no mundo e com tudo aquilo que o constitui de bom e de ruim. Isso significa que o peregrino não está "livre" de ter a construção de sua liberdade "roubada"ou degradada pela ação de seus "companheiros" de jornada. Essa constatação, um pouco parecida com a de Sartre sobre a relação do outro com minha liberdade, não é em Marcel tão aprofundada como foi em Sartre. Pois Marcel preferiu aprofundar a importância do outro na construção e não na desconstrução de minha liberdade.

"A visão de Sartre pensa o outro como ameaça à minha integridade, como limite a minha liberdade" (ZILLES, 1988, p. 102). A polêmica frase o inferno são os outros[12] expressa o quanto o outro é para a minha liberdade algo de negativo, de ameaçador para Sartre. "A presença do outro constitui uma ameaça para a liberdade e enseja o conflito. Um deseja dominar o outro, antes de ser por este dominado. O olhar faz-me sentir possuído pelo outro". (BATALHA, 1968, p. 389).

Para Marcel, a construção da liberdade acontece ao longo do caminho, nas relações interpessoais, na comunhão fraterna, no engajamento com o outro. "Uma das condições para a conquista da liberdade é a intersubjetividade. Eu não sou livre: nós somos livres. A liberdade não é uma conquista individual, mas de conjunto" (STEFANELLO, 1983, p. 156).

Se ao longo do caminho existem andarilhos que "roubam" nossa liberdade, de outro lado, não faltam peregrinos que "devolvem", que constroem, nossa liberdade; que conosco abremcaminho, que nos ajudam a sermos, a cada passo dado, pessoas mais autênticas e livres. "Enquanto Sartre diz que o olhar do outro nos rouba, Gabriel Marcel diz que há olhares que nos revelam nós próprios, ao mundo e aos outros"(WAHL, 1962, p. 110).

O homo viator é um coesse, isto é,um ser-com-os-outros. Sua situação característica não é semelhante a de um andarilho solitário, de um eremita ou de um anacoreta, mas fundamentalmente a de um peregrino, caminheiro com os outros. "O caminhar não se faz, de modo algum, na solidão". (GOMES, 2007, p.15). A participação amorosa e o engajamento com os demais companheiros permite ao peregrino enfrentar os obstáculos do caminho com mais esperança e coragem. Nesse sentido, escreve Marcel: "estou profundamente convencido de que nada está perdido para um homem que vive um grande amor ou uma grande amizade, mas tudo está perdido para quem vive isolado". (Gabriel Marcel in: NOGARE, 1985,p. 132).

Para Marcel[13], o isolamento, exceto nos momentos de recolhimento interior, revela um estado existencial de fechamento, de indisponibilidade para com o outro. Inviabiliza o processo de itinerância, e, consequentemente, geraangústia edesespero.

O peregrino que pára à beira do caminho, que se fecha para quem está passando, cessa seu caminhar não vê mais sentido em viver. Neste profundo estado de abatimento, de desespero, talvez seja levado ao suicídio. Pois, "el suicídio...[está] ...ligado a la indisponibilidad [ao isolamento] (MARCEL, 1969, p.154).Mas como sair do isolamento? Por si só, diria Marcel, é quase impossível. A salvação é ser agraciado com a presença de um "bom samaritano", que ao me ver "caído" à beira do caminho, me levante, cure minhas feridas e me recoloque a caminhar novamente. Assim sendo, podemos dizer: nada está perdido quando o outro me encontra com seu amor. Pois, o amor tem o poder de penetrar até mesmo um coração empedernido, que se endureceu à beira do caminho.

Poucos como Marcel: "sentiram a necessidade e exaltaram o valor da comunhão interpessoal. Ser, para Marcel, é ser-com, de forma que o outro se torne para mim um verdadeiro tu, uma presença: o que é possível somente no amor" (NOGARE, 1985, p. 132). Para Marcel, o amor é o que funda e sustenta viva a intersubjetividade, participação amorosa entre o eu e o tu. No entanto, assim como não há encontro sem amor, não há amor sem encontro. E este, por sua vez, não consiste no "entrecruzamiento fortuito de dos seres...sólo hay encuentro en el verdadero sentido de la palabra para seres dotados de interioridade" (MARCEL, 1951, p. 131).

O verdadeiro encontro vai além da simples proximidade corporal, acontece no âmbito amoroso da relação eu  tu. Pois, "alguen que está en la misma habitación muy cerca de nosotros-alguen a quien vemos, oimos y podemos tocar  no está, sin embargo, presente; está infinitamente más lejos de nosotros que un ser amado a millares de léguas o que inclusive no pertenece más a este mundo" (MARCEL, 1951, p. 185).Para Marcel, a presença física não é garantia absoluta de presença, no pleno sentido da palavra, ou seja, de comunhão interior, de encontro, enfim, de intersubjetividade. Pois, "hay una presencia que es tambien un modo de ausência". (MARCEL, 1959, p. 45).

A presença plena do outro, quando o sinto verdadeiramente presente comigo, deixa de ser um ele, alguém distante, para se converter em um tu para mim. A presença do tu, por sua vez, me renova interiormente e, portanto, consiste num modo de presença reveladora, isto é, que me faz ser plenamente o que eu não seria sem ela. O outro é um inferno? Se o outro for um tu, não.

A relação eu-tu é, fundamentalmente, encontro no qual se afirmam pessoas livres. O tu é alguém que me está presente, que responde ao meu apelo. O tu constitui-semediante um modo de presença que o introduz em minha existência...No amor, todavia, não desaparecem as individualidades do eu e do tu, porque, no amor, o outro é tratado como liberdade. A relação amorosa não é ação de um sobre o outro, mas um ato comum de dois sujeitos que se encontram numa atmosfera de intimidade, numa unidade... A relação eu-tu é fundamentalmente encontro que se define pelo ato de afirmar-se presenças livres(ZILLES, 1988, p.68-69-70).

O amor é o fundamento[14], o combustível, o que dá sentido à peregrinação. Unidos no amor, os peregrinos se afirmam peregrinos livres, buscando no caminhar respostas para as perguntas mais profundas e decisivas da existência, na esperança de que o amor os fará permanecerem eternamente unidos. Nesse sentido declara Marcel: "cualesquiera sean los câmbios que sobrevengan a lo que tendo ante mi ojos, tú y yo permaneceremos juntos, habiendo sobrevenido esse acontecimiento, que pertenece al orden del accidente, no puede tornar caduca la promesa de eternidad incluída em nuestro amor" (MARCEL, 1951, p. 330). É na experiência mais profunda do amor que nasce a esperança da vida eterna, da imortalidade. "Amar a um ser es decir: tu no morirás". (MARCEL, 1951, p. 329), custe o que custar eu e tu permaneceremos juntos.A fé, o amor e a esperança é o que impulsiona o peregrino a caminhar na direção da transcendência, do Tu absoluto.

A esperança é a luz que atravessa as trevas da nossa existência e ilumina nosso tortuoso caminho; é o combustível que impulsiona nosso caminhar, nossa peregrinação. A existência sem esperança deixaria de ser uma itinerância, naufragaria no desespero e, consequentemente, na aniquilação. Sem esperança, diz Marcel, a vida seria irrespirável.

4 FENOMENOLOGIA E METAFÍSICA DA ESPERANÇA

O tema da esperança[15] é tratado por Gabriel Marcel de modo mais estruturado no capítulo II da obra Homo Viator, intitulado "Esbozo a una fenomenologia y metafísica da esperanza". Neste esboço, Marcel:

Analiza la experiencia del acto de esperar, sus componentes, describe sus fases, investiga sus fuentes y la función que realiza la esperança en la consciencia del hombre. Descubre, em elinterior de la temporalidad de la existencia humana la apertura constitutiva a la transcendencia como presencia indefectible, aunque enefable (CARMONA, 1988, p. 221).

Consciente de que, por si só, a natureza da esperança é muito difícil de definir, Marcel parte de uma análise fenomenológica e metafísica das experiências existenciais do "eu espero", a fim de esclarecê-la gradativamente e rechaçar qualquer tentativa de confundi-la com o desejo e com o otimismo. Por isso, a preocupação de Marcel, num primeiro momento, consiste em esclarecer o que a esperança não é para assim reconhecer o que de fato ela é.

De início, observemos o seguinte exemplo proposto por Marcel: "Espero que Jacques llegue mañana para almorzar, y no después de mediodia". A pessoa que pronuncia essa frase, segundo Marcel, não manifesta outra coisa senão certo anseio, certa crença. E nisso, portanto, não há nada que lhe preocupe verdadeiramente, posto que é apenas um certo desejo, a saber, que "Jacques chegue em tempo para o almoço". O otimista, por sua vez, é quem "tiene la firme convicción, o en algunos casos simplemente el vago sentimiento de que las cosas se arreglarán". (MARCEL, 2005, p. 45). De que as coisas irão dar certo, que algo acontecerá, basta ter pensamento positivo. Ademais "El otimista es esencialmente disertador". (MARCEL, 2005, p. 46). Discorre o tempo todo sobre a realidade, porém, assim como quem deseja, manifesta certa indiferença com a situação em questão. Discorre sobre os fatos, porém não se compromete profundamente com eles, não é capaz de provocar uma transformação na sua situação existencial. Conforme Marcel, o otimista é apenas um espectador da realidade, dotado de uma visão aguda olha a vida simplesmente de fora e daí faz suas "previsões".

O otimista apóia-se em si mesmo, depositando em si uma confiança absoluta. Tem a firme convicção de que tudo terá um final feliz. Comporta-se como um observador. As razões para esperar, para ele, são exteriores ao ser. São mero cálculo de probabilidade. (ZILLES, 1988, p. 104).

Segundo Marcel, a esperança não pode confundir-se nem com o desejo, nem com o otimismo, porque "las razones para esperar aqui (desejo e otimismo) son totalmente exteriores a mi mesmo, exteriores a mi ser, muy lejos de estar arraigadas en el fondo de lo que soy".( MARCEL, 2005, p. 41-42).

A esperança, não sendo nem desejo nem otimismo, se situa numa outra ordem, a saber, a do ser que atravessa uma situação de prova, pessoal ou coletiva.[16] Como exemplos de situações de provas, Marcel cita o exílio, a separação, o seqüestro, a doença; situações essas que se caracterizam por atingir o mais profundo do que verdadeiramente sou. Por isso que, nessas realidades, o eu espero aspira sempre a uma determinada libertação que colocará fim a provação que está vivendo. Nas palavras de Marcel:

Suponhamos que paso por una prueba, bien privada bien común al grupo al que pertenezco: aspiro a una cierta liberación que ponga fin a esta prueba. El "yo espero", considerado con su fuerza, está orientado hacia una salvación. Para mi se trata verdaderamente de salir de las tinieblas en las que estoy actualmente sumergido, y que pueden ser la tinieblas de la enfermidad, de la separación, del exílio, de la esclavitud. (MARCEL, 2005, p. 42)

A experiência real da provação, seja ela qual for, é sempre a experiência da qual aspiro sair o mais depressa possível, é como que uma exigência inerente ao padecer a um sofrimento, a uma provação. A aspiração é de sair em busca de luz, algo que coloque fim às trevas nas quais se está submergido. A esperança se constitui assim, numa exigência que não é lógica, nem psicológica, mas sim ontológica, isto é, radica-se na essência do ser. Em suma, a esperança é uma exigência essencialmente ontológica do ser que é afetado por uma profunda provação que o impede de existir plenamente. Manifesta-se exclusivamente nas situações mais cruciais e desesperadoras, quando a existência está sobre profundo risco.

Os exemplos utilizados por Marcel na compreensão da esperança se caracterizam por apresentar situações de prisão[17], de trevas, onde "me veo privado durante un tiempo indeterminado de una cierta luz a la que aspiro" (MARCEL, 2005, p. 42). Pois não há esperança se não há uma verdadeira exigência ontológica em busca de uma determinada libertação de uma provação que se está vivendo. Aqui me encontro como que privado de certa luz na qual minha existência deveria ser iluminada.A respeito disso, o autor faz menção à situação do artista, ou do inventor, que atravessa uma fase de aridez na produção. Onde a luminosidade da criatividade é encoberta pela escuridão da aridez, da infertilidade artística. No fundo, a situação de limitação de aridez e de contingência revelam:

que la condición general del hombre, allí mismo donde su vida parece normal, sigue sendo siempre la de un cativo, en razón de las esclavitudes de todo orden que está destinado a padecer, aunque sólo fuera por el fato de su cuerpo, y más profundamente todavia, en razón de la nocheque envuelve su comienzo y su fin".(MARCEL, 2005, p. 69).

Conforme Marcel a situação de prova ou simplesmente a prova "es tal en aquello que me conmueve, en lo que se enfrenta a mi ser, en lo que estoy expuesto a sufrir, por su acción, una alteración permanente: así es cómo la enfermedad puede hacer de mí ese ser deforme, que se piensa a sí mismo como tal y adopta en todo el habitus del enfermo". (MARCEL, 2005, p. 53). Assim sendo, Marcel vê a esperança como uma das exigências ontológicas mais profundas do ser humano. Uma verdadeira manifestação de resposta do ser à situação de trevas a qual atravessa. Nesse sentido, aponta nosso autor: "cuanto menos se experimente la vida como cautividad, menos será capaz el alma de ver brillar esta luz velada, misteriosa, que está en el hogar mismo de la esperanza" (MARCEL, 2005, p.44). Ou seja, é no mais profundo do sofrimento, da angústia, que se gesta a esperança. Surge a partir da exigência ontológica de libertação do próprio ser.

A esperança somente surge no momento mais profundo da provação, quando as trevas parecem impedir de vez que qualquer raio de luz penetre na alma do homem, libertando-o, iluminando o caminho e impulsionando-o a caminhar. Daí que, o grande símbolo da esperança é a luz, pois esta representa o papel que a esperança exerce na existência humana, isto é, a tarefa de lançar luz sobre os caminhos que o homem percorre ao longo de sua existência.

4.1 A ESSÊNCIA DO DESESPERO

A experiência da Primeira Guerra Mundial esclareceu para Marcel alguns constitutivos básicos do caráter dramático da vida humana. Em especial o desespero. Esse contribuiu substancialmente para sua profunda análise fenomenológica e metafísica da esperança que elaborou em 1942. Uma prova disso está nas palavras do próprio Marcel: "la verdad es que sólo puede haber, propriamente hablando, esperanza donde interviene la tentación de desesperar" (MARCEL, 2005, p.48). Ou seja, não há esperança sem o confrontodireto como que me ameaça infringir o desespero. Dessa análise, na qual afirma que há uma estreita ligação entre a tentação de desesperar e esperança, Marcel conclui que "la esperanza es el acto por lo que esta tentación es activa o victoriosamente superada" (MARCEL, 2005, p.48).

Mas, o que é desesperar? Em que consiste a essência do desespero? Para resolver tais questões, Marcel analisa a situação de prova a qual passa o enfermo de uma doença crônica, e para o qual não se vislumbra nenhuma possibilidade de recuperação.

Supongamos que padezco una enfermedad crônica, y que no se vislumbra ninguna mejoría de mi situación. Puede llegar el momento en que yo mismo declare: "Soy incurable". O que sean los médicos quienes me anuncien, con o sin ambages, que según todos los indícios no me curaré. (MARCEL, 2005, p. 49)

No primeiro caso, ao declarar que sou incurável, declaro a mim próprio que nada há na realidade que me permita dar-lhe crédito, nenhuma garantia; com isso me fecho para o futuro, paraliso o processo dinâmico da realidade e do tempo. Antecipo, de algum modo, a minha própria destruição, pois afirmo convictamente que minha doença é de fato incurável. E isso resulta em sérias consequências para mim, pois ocorre o que Marcel chama de "autofagia espiritual"(MARCEL, 2005, p. 55). Ou seja, consumo-me interiormente pelo fato de estar convencido da ideia de que sou incurável. Suicido-me antecipadamente.

No segundo caso, pode ocorrer o inverso. Ao ouvir o médico me comunicar que não há indícios de cura, pode ocorrer que "suscite en mí el poder no solo de rechazarlo, sino de desmentir-lo con los hechos[18]...(assim, neste segundo caso)... yo no apareceria, en princípio, como colaborando a mi propria destruición, a no ser que ratifique y con ello haga mia la sentencia que se me há comunicado" (MARCEL, 2005, p. 49).

Para Marcel, desesperar-se é enraizar-se em uma dada situação de prova e ali petrificar-se, "aprisionado como una barca en el hielo". (Marcel, 2005, p. 54). Consiste num capitular, isto é, num desprender-se na presença da situação de prova; aceitar a própria destruição sem fazer nada para impedí-la.

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El desesperado no contempla solamente, no tiene sólo ante él esta repetición sombría, esta eternización de una situación en la cual está aprisionado como una barca em el hielo; por una paradoja, antecipa esta repetición, la ve en el mismoinstante, y posee al mismo tiempo la certeza agria de que esta antecipación no le dispensará de continuar viviendo la prueba día trás día (MARCEL, 2005, p. 54).[19]

Desesperar consiste, sobretudo, em se consumir numa profunda amargura, em se suicidar aos poucos por antecipação, em se deteriorar interiormente. Em decretar a impossibilidade de que haja uma saída. "É uma ação maléfica que toca o sustento mesmo de minha vida" (MARCEL, 2005, p.54). Como dito anteriormente, "desesperar de si é suicidar-se por antecipação" (Gabriel Marcel in ZILLES, 1988, p.105). Assim sendo, o desespero é verdadeiramente uma "autofagia espiritual" (MARCEL, 2005, p.55). Uma verdadeira doença mortal na compreensão Kierkegaardiana.

4.2 RAZÕES PARA ESPERAR

Esperança e razões para esperar. É possível esperar quando as razões para esperar são insuficientes ou inexistem em absoluto?

Primeiro, diz Marcel, essa pergunta só pode ser estabelecida por quem concebe a esperança como um fenômeno exterior a si e se pergunta em que condições este fenômeno pode ocorrer. Quem pensa assim, diz Marcel, nada mais é do que um observador, alguém que julga de fora, analisa a situação sem participar dela.Por isso, "la reflexión no tardará en mostrarnos que pensar así la esperanza es precisamente suprimirla" (MARCEL, 2005, p. 75). Quem pensa assim não entendeu o que é a esperança. Pensa a partir de uma mentalidade que se situa no plano da razão especulativa, que calcula as probabilidades e mede os meios para ver se alcançará os fins.

Quem espera tem, necessariamente, suas razões para esperar. Porém ¿Puede de hecho ocurrir que alguien espere en una situación que para mí, que planteo la cuestión, no implica razones para esperar? Ou melhor ¿en una situación que para el sujeito mismo no las comporta? (MARCEL, 2005, p. 75). Quanto à primeira questão, diz Marcel, é preciso responder que sim, pois é bastante claro que "el otro puede conservar la esperanza allí donde el observador estima que las razones para esperar no existen, es decir, que a sus ojos están ausentes".[20] (MARCEL, 2005, p. 76).

Na segunda questão, se o próprio sujeito reconhece que as razões para esperar são insuficientes ou faltam em absoluto, o sujeito mesmo reconhecerá que não espera verdadeiramente. Assim, o emprego da palavra "suficiente" implica, diz Marcel, em "contradicción, pues si el sujeto espera, parece que las razones para esperar son suficientes para él, sea o que sea lo que el observador piense de ellas" (MARCEL, 2005, p. 76).

O observador tem razão calculadora, procede com os meios aproximativos que possui e empreende uma verdadeira contabilidade das possibilidades que existem para esperar. Ademais, "al hacer intervenir la idea de un derecho a esperar, sitúa el asunto precisamente sobre el terreno de la razón calculadora, es decir, en el fondo del cálculo de posibilidades" (MARCEL, 2005, p. 76). A essência do ato de esperar é justamente o não calcular, o não ter respostas prontas, o não ter certezas absolutas, mas sim estar aberto à realidade, e, ao mesmo tempo, disposto acriar condições para que ocorra a libertação da situação difícil na qual se encontra. Pois "la esperanza está comprometida en la trama de una experiencia en formación o, con otro lenguage, de una aventura en curso".[21](MARCEL, 2005, p. 63). Assim, quem espera se assemelha a um pesquisador ou, ainda, a um inventor. Vive a experiência do tempo aberto, concede crédito à realidade e se engaja inteiramente nela num verdadeiro processo criador. Vê razões para esperar lá onde, para o observador, inexistem em absoluto.

4.3 O TEMPO ABERTO E O TEMPO FECHADO

Certamente a situação trágica dos prisioneiros de Segunda Guerra Mundial levou Marcel a comparar a situação-de-prova a um cativeiro, e a encarar a esperança como uma luta ativa em resistência a esse modo angustiante de existir.O eu que espera uma libertação, por natureza, contribui de imediato na transformação da realidade que o afeta, já aquele que não espera, ou melhor, que duvida, diminui de algum modo as oportunidades de ser efetivada tal libertação.A respeito disso, afirma Marcel: "La verdad es más bien que soy consciente, al esperar, de reforzar y al desesperar o simplemente al dudar, de aflojar, de debilitar un cierto vínculo que me une a lo que está en cuestión" (MARCEL, 2005, p.60). Esse vínculo com o que está em questão, ou melhor, com a situação de prova, consiste num processo criador, cuja finalidade primeira é alcançar a libertação das amarras impostas pela provação. Com isso Marcel quer evitar qualquer associação que se possa fazer entre esperança e acomodação.

Na situação de prova, quem espera está plenamente envolvido e engajado, de modo a por um fim ao sofrimento, à angústia e à tentação de desesperar. Trata a provação antes de tudo como parte integrante de sua vida, é paciente consigo mesmo, usufrui o tempo da prova, aprende com ela, porém age de modo a superá-la, e isso se dá através do engajamento que resulta num frutuoso processo criador e transformador da realidade. Assim se dá a preparação do solo de onde brotará a autêntica esperança do ser humano.

A esperança, diz Marcel, "supone una relación original de la consciencia con el tiempo" (MARCEL, 2005, p.64). Requer consciência de que o tempo futuro se encontra, de algum modo, aberto, isto é, constituído de possibilidades as quais contribuirão para a libertação da situação desesperadora na qual me encontro. Já o desespero, sendo o oposto da esperança, implica consciência de que o tempo encontra-se fechado, isto é, destituído de possibilidades, de perspectivas. Neste caso o tempo me aprisiona, me escraviza, pois não me permite vislumbrar nenhuma saída, nenhuma solução para as provações nas quais estou envolvido.

Participa do tempo fechado, além do desesperado, aquele que se permite viver naquilo que Marcel chama de "rotina cegante" do cotidiano. E que Heidegger chama de dejeção à vida inautêntica. Segundo Marcel, esse indivíduo que atravessa tal situação, embora sem a consciência do desespero, se fecha numa infértil repetição de suas atividades diárias, de modo que se torna impossível constituir umprocesso criativo que dê sentido à sua existência.

Quem se desespera, quem se encontra no tempo fechado, é aquele que sentencia que a realidade é estática, infértil e que nada de novo irá acontecer, que a situação na qual se encontra continuará tal e qual. Entretanto, essas constatações do desesperado, revelam, no fundo, que não é a realidade em si que é fechada, mas sim ele próprio. A respeito disso podemos nos perguntar "si la desesperación y la soledad[22] no son, en el fondo, rigurosamente idênticas"(MARCEL, 2005, p. 70). O isolamento, o egocentrismo, a solidão, é a forma mais precisa da manifestação de um ser desesperado, fechado, sem perspectivas. Porém, quem espera, ao contrário, acredita que algo novo surgirá e que uma solução haverá para superar suas provações, que uma luz transpassará as trevas de seu cativeiro. Nesse sentido, escreve Marcel:

Todo nos prepara, pues, a reconocer que la desesperación es un cierto sentido la conciencia del tiempo cerrado, o más exactamente aún, del tiempo como prisión  mientras que la esperanza se presenta como captada a través del tiempo; todo ocurre como si el tiempo, en lugar de encerrar-se en la conciencia, dejara pasar algo a través de El. Desde punto de vista es desde donde antes pude destacar o carácter profético de la esperanza. Sin duda, no se puede decir que la esperanza vea lo que será; pero ella lo afirma como si lo viera; diríamos que saca su autoridad de una visión encubierta y que le es dado considerar sin disfrutar de ella (MARCEL, 2005, p. 65).

A vivência do tempo aberto implica a vivência da virtude da paciência. Esta é uma das características genuínas do ato de esperar. Quem espera, mesmo engajado ativamente na libertação da situação na qual se encontra, precisa dar tempo ao tempo. A paciência consigo mesmo é de fundamental importância, pois a vitória da esperança sobre a provação caracteriza-se mais como um processo de libertação do que uma rebelião instantánea. Por isso, a paciência é a virtude indispensável para o desenvolvimento da esperança. "Si introducimos el dato paciência nos acercamos infinitamente, de golpe, a la esperanza"(MARCEL, 2005, p. 51).

No processo ativo sobre a situação de prova, Marcel orienta que é preciso "tomarse su tiempo". (MARCEL, 2005, p. 51). Ou seja, aproveitar o tempo, o kairós da situação, diz ele "no altere el ritmo personal, la cadencia propria de su reflexión e incluso de su memoria". (MARCEL, 2005, p.51). Pois, "la esperanza consistirá en considerar la prueba primeramente como parte integrante de uno mismo, y al mismo tiempo como destinada a suprimirse y transformarse dentro de un cierto proceso creador" (MARCEL, 2005, p. 51). A esperança não é fuga da situação de prova, do desespero, mas sim vitória sobre ela, por isso que é preciso, nesse processo criador,a virtude da paciência, consigo mesmo e com o outro.

4.4 A ESPERANÇA, A FIDELIDADE E O AMOR

O homem, na concepção de Marcel, é um ser de engajamento. Situado entre outros existentes, o homem é tanto mais homem quanto mais caminha na direção do compromisso, da fidelidade. A vitória sobre as situações-de-provas, assim como a liberdade, não consiste numa conquista inteiramente individual, mas, sobretudo coletiva. Ou melhor, uma conquista intersubjetiva.

Segundo Marcel, a esperança possui laços estreitos com o amor. Ambos formam uma comunhão tão íntima que é impossível concebê-los agindo separados no interior da existência humana. A esperança se nos apresenta "imantada por el amor" (MARCEL, 2005, p. 56). A importância do amor para a esperança é tal que "nada está perdido para um homem que vive um grande amor ou uma grande amizade, mas tudo está perdido para quem vive isolado"(Gabriel Marcel in: NOGARE, 1985, p.132).Por isso Marcel estabelece uma relação profunda entre desespero, isolamento e solidão e entre esperança, amor e fidelidade. Afinal, "no se puede abrir el proceso de la esperanza sin estabelecer al mismo tiempo el del amor". (MARCEL, 2005, p.70).

A esperança supõe a segurança existencial na fidelidade e no amor do outro. Enquanto espero, estou convencido do comprometimento do outro para comigo, comprometimento que se concretiza na fidelidade e no amor. Ambos são a garantia de minha esperança; desde o fundo desta comunhão entre a fidelidade e o amor que estabeleço com o outro surge a esperança. Esta "implica fidelidad, porque esperar es permanecer fiel en médio de las tinieblas. La esperanza, que supone siempre un "faire crédit à la réalité"[23], pero que, asimismo, sólo es posible donde hay lugar para el milagro" (CARMONA, 1988, p. 226). O milagre visto como dom, como auxílio que vem do outro com o qual formo, no amor e na fidelidade, uma amizade, uma comunhão. Assim, a abertura para a realidade, para o que o outro pode me oferecer, implica uma atitude de humildade. Esta, diz Marcel, é uma das bases da esperança. Ao experimentar uma situação de prova, o orgulhoso está fadado ao desespero porque não possui a abertura, a disponibilidade, a humildade, para acreditar que a sua libertação pode vir por meio do auxílio do outro.

Quando duas pessoas se amam vivem um nós, se tornam disponíveis entre si, constituem uma relação amorosa, o que é indispensável para o desabrochar da autêntica esperança. Pois, "la esperanza siempre está vinculada a una comunión, tan interior como pueda ser" (MARCEL, 2005, p.70). A esperança supõe uma comunhão e uma confiança no outro:

La plenitudde la esperanza sólo puede darse donde existe el intercambio espiritual, la participación, es decir, el amor. Amor y esperança no pueden separarse; un ser sin amor no puede ter esperanza. El ser que espera, ha dicho, y que está interiormente activo, no espera para sí mismo, sino que difunde cierto fuego alrededor (...) Amor yesperanza aúnan sus esfuerzos para hacer que el hombre supere la tentación de cerrarse sobre si mismo". (CARMONA, 1988, p. 227).

Daí que "eu espero em ti para nós" é a expressão mais adequada, segundo Marcel, e mais elaborada do ato que o verbo esperar traduz de uma maneira confusa e velada.

Ao final do "Esbozo de una Fenomenología y metafísica de la esperanza", Marcel então propõe uma "definição" da natureza da esperança:

La esperanza es esencialmente la disponibilidad de un alma que es bastante íntimamente comprometida en una experiencia de comunión para cumplir o acto que supera la oposición entre el querer y el conocer por el que afirma la perennidad viva cuyas prendas e primicias son ofrecidas simultáneamente por esta experiencia(MARCEL, 2005, p. 79)..

A esperança é uma daquelas experiências existenciais profundas do ser humano. Surge justamente nos momentos mais difíceis, quando tudo parece estar perdido. Mais do que um simples desejo, a esperança é certeza de vitória, de libertação do sofrimento.

Filha da intersubjetividade, a esperança se alimenta no amor e na fidelidade do outro. Por isso, onde há solidão, egoísmo e fechamento não há esperança, pois não há em quem esperar. Assim, portanto, espero em ti por nós é de fato a melhor fórmula para apresentar a esperança.

Buscada por todos os homens, a esperança se constitui na grande luz que dissipa as sombras da existência. Não há como peregrinar sem ser impulsionado por ela. A esperança é a força motriz de todo engajamento interpessoal e de toda transformação que busca-se empreender . É, talvez, a experiência que melhor nos faz acreditar que a vida tem sentido, que a morte não o fim e que todos nós caminhamos na direção da luz eterna. Finalizamos nosso texto com a conclamação à esperança do nosso ilustre filósofo Gabriel Marcel.

Como caminantes, como peregrinos, en un camino difícil y sembrado de obstáculos, tenemos la esperanza de ver brillar un día esa luz eterna que no ha dejado de alumbrarnos desde que estamos en el mundo, esa luz sin la cual, podemos estar seguro, jamás nos hubiéramos puesto en caminho. (MARCEL, 1951, p. 358).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao finalizar-se este trabalho pensa-se ser de suma relevância extrair algumas reflexões do pensamento de Gabriel Marcel de modo a lançar luz sobre algumas questões pertinentes da atualidade. O contexto atual assemelha-se profundamente com contexto no qual viveu Marcel. Por isso, acredita-se que as luzes que lançou no seu tempo podem perfeitamente iluminar, com a mesma intensidade, o nosso tempo.

Tecida no seio da primeira guerra mundial, a filosofia de Gabriel Marcel sempre esteve orientada por um propósito muito nobre, a saber, o de dar à existência humana sua elevação devida e evitar que as experiências trágicas conduzam o homem ao desespero e à aniquilação.

A esperança, em nosso contexto, é uma chama que tem sido cada vez mais extinguida por aqueles que têm escolhido viver a partir do individualismo, da indiferença e da desumanidade; modos de ser que se traduzem concretamente nas mais diversas formas, como por exemplo: na violência, no suicídio, no homicídio, nas guerras, na destruição da natureza, entre outros.

Na análise fenomenológica e metafísica da esperança, bem como na análise das causas e da essência do desespero, Marcel frisa que a raiz de muitas situações trágicas é a ausência de um modo de ser tecido na comunhão amorosa com o outro. Ao identificar o desespero com a solidão, Marcel sustenta que a única saída para a construção de uma civilização mais humana e mais esperançosa só é possível a partir do horizonte da comunhão, da fidelidade e do amor mútuo. Cada um vivendo somente para si, trabalhando e se relacionando visando somente os próprios interesses é, segundo Marcel, a maneira mais fértil de preparar o terreno para o desespero e, consequentemente, para a aniquilação de si e, direta ou indiretamente, dos outros. Diante disso podemos nos questionar se o crescimento cada vez maior do suicídio não tem suas causas no isolamento, na solidão, no fechamento e na falta de abertura para o outro. Será que a depressão não é conseqüência do crescimento do individualismo e da impessoalidade em especial nos grandes centros urbanos? O nihilismo, a falta de sentido de vida e o descaso com o outro não é reflexo de uma vida árida, sem amor, sem fidelidade e sem esperança? Enfim, poderíamos elencar inúmeros outros questionamentos, no entanto bastam estes para vermos com maior clareza o quanto as compreensões de Marcel têm a contribuir para iluminar os caminhos do homem contemporâneo.

A vida esperançosa é consequência de quem vive, mesmo em meio às tragédias deste mundo, a experiência da humildade e da confiança no que o outro tem a oferecer de si. Marcel coloca a esperança, assim, como filha da intersubjetividade, da comunhão interior. Diante disso, o nosso questionamento inicial, a saber, "como encontrar razões sólidas para não desistir?" Encontra respostas nestas reflexões, ou melhor, alternativas. Assim como nosso filósofo, acreditamos que o engajamento numa comunhão entre pessoas dispostas a se doarem umas as outras gratuitamente seja a condição de possibilidade para se encontrar razões sólidas para lutar sempre, sem jamais desistir. Afinal, como afirma o próprio Marcel: nada está perdido para quem vive um grande amor, uma grande amizade, mas tudo está perdido para quem vive na solidão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Após a morte de sua mãe, Marcel foi criado por sua tia que veio a casar-se com seu pai.

[2] Marcel, assim como Sartre, foi um ilustre dramaturgo; autor de inúmeras peças teatrais, sempre com um fundo existencialista e cristão, buscou semear incansavelmente a esperança em meio aos sofrimentos do seu tempo e contrapor o pessimismo e o ateísmo de Sartre que imperavam na época.

[3] Esta obra, elaborada nos intervalos dos serviços que prestava a cruz vermelha, é toda escrita em forma de diário. Estilo que perpassa quase todos os escritos de Marcel. Conhecido por ser um filósofo assistemático e inimigo dos sistemas filosóficos.

[4] Henri Bérgson (francês) nasceuem 1859 e morreu em 1941.

[5] A obra principal de Heidegger foi publicada em 1927, intitulada Ser e Tempo.

[6] O fato de definir a morte como o fim do ser-aí, isto é, do ser-no-mundo não faz recair nenhuma decisão ôntica sobre a questão relativa a ser possível, depois da morte, outro ser, nem sobre a questão de saber se o ser-aí caminha para a imortalidade.A analítica do ser-aí se limita ao ser-no-mundo.

[7] Ser e Nada :principal obra filosófica de Sartre

[8] Obra de Gabriel Marcel escrita em 1940.

[9] Para Sartre a existência precede a essência como um modo configurativo de um ateísmo postulatório. Ou seja, a não existência de Deus, por exemplo, daria mais liberdade ao homem de escolher ser mais responsável por si mesmo e pelos outros; também os valores seriam construídos e significados a partir da própria existência e escolhas. Percebemos que Marcel é representante de um existencialismo cristão, enquanto o existencialismo, que o próprio Sartre denominou como Humanismo é eminentemente ateu.

[10] O peregrino no sentido lato "é aquele que caminha pelos campos". Diante do surgimento do incastellamento (cidades) na Europa, a noção de peregrino estava ligada a quem caminhava sem se sentir dono da verdade, consciente da sua finitude, da contingência da vida, do que é positivo e das mazelas da vida. A liberdade do peregrino está no seu caminhar, no fazer-se, como aquele que chega e não se sente dono, está num lugar que não é sua casa. Isso na medievalidade tinha uma conotação de liberdade ou de possibilidade dela. Hoje o homem passante é alguém que caminha ausente de si mesmo, não apenas alheio às sedimentações culturais, de verdades contingentes de todas as ordens. Mas um de si ausente, caminhando por caminhar, sem rumo, sem propósito.

[11] Alienação

[12] Embora no Existencialismo é um Humanismo, Sartre discorre sobre o fato de quando escolhemos a nossa liberdade e construir a nossa existência escolhemos o mundo, e que a autêntica liberdade do Eu implica na liberdade do outro, ele parece percorrer um caminho nietzschiano de que a heteronomia não é uma boa escolha. Dito de outra forma, embora Nietzsche tenha criticado também a noção de independência, por entender que a mesma leva à massificação, no seu modelo de pensamento o ponto de chegada e de partida é o übermensch, que em última instância funda o seu modo de ser e agir numa noção de glória, grandeza e honra pessoal, amor fati, não num adiamento dos prazeres. Para Nietzsche o modelo moral judaico-cristão produziu uma moral de escravos e fracos. Corrige-se isso partindo do eu e não do outro como fundamento ético e moral. O propósito de Sartre é bastante similar.

[13] Observemos que Marcel não abandona o sentido do silêncio, da meditação como pressuposto importante da Filosofia, mas entende que a abertura e a relação com os outros nos possibilitam uma saída do solipsismo e amenizam em ambos a dor do desespero e da angústia humana. Assim a relação com o outro é condição de possibilidade de uma vida mais significativa e fecunda.

[14] Para o peregrino no sentido em que Marcel apresenta, não há a sensação de abandono no caminhar, por que há a consciência plena de que os outros caminhantes estão unidos no mesmo propósito e esse abandonar-se a caminho é uma forma de se solidarizar no mais profundo do que somos com os outros passantes, que também não caminham apenas por caminhar, mas por que no caminho se fazem mutuamente, convictos no sentido daquilo que os une no existir, no ser e no caminhar: o amor.

[15] O tema da esperança é abordado por Marcel também na obra El mistério del ser com o título: "La muerte y la esperanza".

[16] O desejo de que algo aconteça não nasce necessariamente numa provação, porém a esperança se situa sempre no marco da prova, quando a situação na qual vivo ameaça destruir minha integridade, meu ser. Por isso, diz Marcel, esperança é uma verdadeira resposta do ser e não da satisfação de certo anseio, algo que satisfaça um gozo pessoal.

[17] O eu espero é sempre "cativo de".Não há verdadeiramente esperar se não for um esperar certa liberdade, a libertação de alguma situação de cativeiro, de aprisionamento.

[18] O fato de o médico anunciar que minha doença é incurável, posso não aceitar essa realidade e lutar para superá-la; aqui nasce a esperança. Uma resposta à sentença de catividade, de morte.

[19] É uma característica do desesperançado o fato de não conseguir vislumbrar nenhuma saída e, por isso, sofrer até mesmo pelo fato de saber que continuará a viver a provação. A ausência de perspectiva de libertação já é, antecipadamente, um sofrimento, uma forma de destruir-se paulatinamente.

[20] Para Marcel a esperança pertence ao âmbito do mistério, portanto só quem a vive pode compreendê-la e dar-lhe crédito. Isso significa, portanto, que uma outra pessoa pode não esperar numa situação na qual eu espero convictamente.As razões de esperar são sempre pessoais ou intersubjetivas; quem é estranho, quem não faz parte das minhas relações nem sempre concordará com as razões nas quais espero.

[21] Esperar é justamente esperar, não é vislumbrar de imediato as soluções prontas, mas antes dar crédito a realidade e ao outro, à comunidade intersubjetiva na qual participa. Esperar é estar aberto ao novo, ao inesperado.

[22] Esta identificação entre desespero e solidão é capital para a compreensão não só da essência do desespero como também da essência da esperança.

[23] Dar crédito à realidade


Autor: Diones Hohemberger


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