À Marcha Nupcial



Naquela cidade pacata ao sul de Minas Gerais, vista do alto recortada pelo Rio Verde, que a separa em três pequenas porções, os hábitos do seu povo eram práticas herdadas do tempo dos boiadeiros e tropeiros, uma gente destemida que conduzia sua tropa pelo interior do estado. Ao fim da viagem, e realizados com êxito todos os negócios, homens, mulheres, suas crianças, o padre, o prefeito e mais algumas figurinhas carimbadas, todos ao redor de uma enorme tenda, celebravam a missa de louvor. A música comia até altas horas enquanto a carne assava horas a fio e a boa cachaça dos alambiques mineiros era generosamente distribuída a todos, inclusive às crianças enfeitadas de chapéu e esporas.

É desse tempo a prática de agradecer, rir, beber e cantar. Também é desse tempo arranjarem-se os casamentos, de forma a assegurar que os dotes não fossem repousar nas mãos de gente estranha. Aliás, as moças do lugar, donas de esperteza incomum, esperavam ansiosas pelo momento em que coronéis e pretendentes, a um canto, acertavam osdetalhes e tratavam o derrubar das cercas das suas ricas fazendas. Tudo acertado, os mais velhos anunciavam as alianças, e a festa, para alegria das mães e avós, se arrastava até o raiar do dia. Se havia alguma moçoila na idade de casar, era nessa hora que fazia valer seu nome de família, o tamanho das terras do seu dote, títulos hereditários e a posição de prestígio dos seus antepassados.

O tempo dos boiadeiros se foi. Não há mais o barulho e o movimento das tropas que desciam pela estrada Real Passagem ou Passa Boi, como era mais conhecida. Mas é desse tempo a vontade de casar que ficou em Flausina. Também vem de lá o sentimento de injustiça praticada contra ela pelos seus queridos pais: na condição de filha caçula, precocemente escolhida como a guardiã das suas velhices e mazelas inevitáveis. Pouco ou nada fizeram para vê-la desposada por algum rapaz da vizinhança. Pelo contrário, tratavam de desestimular a ousadia de qualquer um que pretendesse se aproximar da moça.

Flausina aceitou o destino, mas a vontade de casar seguiu atormentando-a, tanto que jamais faltou a um só casamento do lugar. Fosse gente de bem ou gente do alto do morro, sentava-se na primeira fileira para, atenta a todos os detalhes, recitar todo o cerimonial proferido pelo padre e pelos noivos. Nesse momento, com o coração batendo na boca e a respiração ofegante, corriam-lhe lágrimas escondidas pelo tempo e pela obediência filial, torcia as mãos, revirava os olhos em profundo êxtase, mergulhada depois em acessos de alucinação, quando, num lindo vestido branco, com a cabeça enfeitada por grinalda e um véu ricamente bordado com pérolas delicadas, seguia pelo longo corredor da igreja ao som da marcha nupcial.

Como o tempo dos boiadeiros de Minas, também se foram os coronéis, os dotes, os nomes de família, os belos casarões, a fartura, os negros incansáveis que serviam sem tempo e hora a seus senhores. Foram-se os pais de Flausina e alguns dos seus irmãos mais velhos também. As crianças daquele tempo cresceram, casaram e tiveram outras crianças. Flausina continuou aqui por muito tempo ainda e aprendeu a fazer negóciospara sobreviver e cuidar da sua velhice solitária e desprotegida.

Certa tarde, enquanto repousava do calor do forno em que assava alguns quilos de pão-de-queijo encomendados por uma freguesa, ouviu o som estridente da compainha. Era o fornecedor de farinha que religiosamente passava às segundas-feiras para receber a fatura:

— Tarde, dona Flausina! A senhora me desculpe a hora, mas hoje vou largar mais cedo e não posso encerrar o expediente com contas a receber, pois seu Geraldo anda com muita fome de dinheiro. Sabe como é, vai casar a filha e tem um bocado de despesas até a festa. Agora, qualquer dinheirinho que entra, ele corre a entregar à mulher para que apresse os preparativos, pois não vê a hora de entrar com a filha caçula naquela igreja toda enfeitadinha de flor branca, como manda o figurino. O homem não está nem conseguindo dormir! O noivo da moça é gente graúda, coisa fina lá das bandas do Rio de Janeiro e ele não quer fazer feio. E não é que a costureira resolveu dar no pé sem nem ter terminado o vestido da moça... A casa hoje estava em pé de guerra. Chorava a filha, chorava a mãe e o pai chorou também, que ninguém é de ferro.

—Não se preocupe, seu Jeremias. Faz o senhor bem de cumprir com o seu dever. É assim que os homens de bem devem proceder, ainda mais que seu Geraldo vai casar a filha. E ela vai ficar uma formosura de moça naquele vestido branco...

—É... mas a senhora sabe que dava pena de ver a moça? O tempo está muito curto e arranjar outra costureira é coisa que não se ajeita fácil!

Flausina ouviu tudo, pagou a contae o homem foi-se embora. Teve outro acesso de alucinação: viu-se à porta da igreja, esperando um noivo que não aparecia. Voltando a si, correu ao quarto, subiu numa escada para descer do armário uma caixa enorme, guardada por ela a sete chaves. Recolheu a poeira dos anos, abriu o embrulho, retirou-lhe o papel azul que protege os tecidos brancos. Seu vestido de noiva estava intacto, alvo e guardava ainda todos os cheiros do tempo dos boiadeiros. Trocou-se rapidamente e foi mirar-se no espelho. De repente, seu rosto foi desaparecendo e lentamente um outro rosto tomando seu lugar no espelho. Sorriu e gargalhou acariciando o rosto de Adélia refletido. Despiu-se e olhou para cada pérola bordada cuidadosamente nos muitos metros do véu que encontrava uma grinalda salpicada de brilhantes. Aproximando o vestido do rosto, beijou-o demoradamente, despedindo-se de todos os noivos sonhados no tempo dos boiadeiros e tropeiros. Guardou o vestido na caixa e correu à casa de Adélia. Ninguém jamais procurou saber o que acontecera de fato à costureira.


Autor: Nara Junqueira


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