Princípio do Suicídio



No início do livro O Mito de Sísifo, Albert Camus sentencia que a questão principal da filosofia trata de saber "se a vida vale ou não a pena ser vivida?". Seguindo esse questionar, apresentarei três pensamentos que não justificam o cessar antecipado da vida como uma maneira ética. Para com isso, não somente intensificar e anteceder ainda mais a discussão filosófica se a vida deve ou não ser vivida, mas procurar a ilegitimidade no auto-aniquilamento para ser explicitada a todos que assim escolherem.

O primeiro ponto a ser apresentado, concerne ao pensamento de Kant. Como sabemos, na Crítica da Razão Pura (1781) Imannuel Kant procura fundamentar a metafísica diante do dogmatismo racional e do ceticismo radical sistematizando uma terceira via, na qual "passaria nesses dois perigosos rochedos", o Criticismo. Assim, nesta primeira investigação Kant apresenta a pergunta: O que posso conhecer? Diante dessa pergunta, o filosofo explica que o homem por possuir apenas intuição sensível, o conhecimento só concerne aos objetos dados mediante a experiência para que o entendimento formule juízos e atribua conceitos formando Objetos. Nisso, qualquer forma que venha estar acima da nossa experiência não pode ser dado como conhecido, por se tratarem de idéias. Por isso, as idéias de Deus, imortalidade da alma, começo do mundo e liberdade são antinomias da razão, ou seja, são fugas da razão para com o próprio limite, engendrando numa dialética, que no pensar kantiano é uma arte do engano e da aparência. Em que a pessoa expressa um saber fundamentado na insuficiência cognitiva precisando recorrer ao âmbito da fé.

Todavia, como a Crítica da Razão Pura apresenta o limite do conhecimento humano, o eu transcendental, isto é, o conhecimento possível a própria capacidade de conhecimento do sujeito, torna-se esclarecido apreendendo autonomia para suas capacidades de agir no mundo. Pois, saber o que pode ser conhecido no mundo proporciona a transformação de suas máximas em leis universais que serão universalidade de toda humanidade para alcançar os reinos dos fins. Reino não na perspectiva teológica, e sim teleológica. Com isso, Kant escreve a Crítica da Razão Prática, onde fundamenta tais considerações através de outra pergunta: O que devo fazer? Primeiro, a liberdade já está intrínseca na autonomia do agir humano, pois é apreendido a partir do esclarecimento da suas capacidades. Depois, como o homem é finito e estando ele dentro de causalidade onde sua ação se dirige para toda humanidade deve a alma ser imortal para que continue nesse caminho da vontade soberana que tornaria digno de ser feliz, contudo, esta vontade soberana, de acordo com a moralidade tem de estar em algo que a moral em si se confunde: Deus. Assim, Kant "salva" as idéias metafísicas, e a partir deste "salvar" podemos adentrar no enfrentamento da questão proposta aqui: O suicídio é um ato ético?

Pra este filósofo, a pergunta concerniria ao âmbito da moralidade, pois a moral antecede a ética, visto que ela conduz a própria capacidade do indivíduo, por via do imperativo categórico: age de tal forma que a tua ação se torne lei universal. Verificar se sua ação é válida ou não. Pois como escrito anteriormente na separação metodológica do "eu teórico" e do "eu prático", o homem tem a capacidade de entender a inteligibilidade do mundo para poder atuar na história, isto porque o eu transcendental é o elemento aglutinador de tal "separação". Assim, o suicídio não pode vir a ser uma lei universal, porque se todos os homens viessem a se matar não haveria mais homens e assim tal lei sucumbiria. De tal modo, a filosofia kantiana julga o suicídio como um ato não capaz de sustentar a moralidade e, por conseguinte, nem a eticidade.

O segundo pensamento, referente à questão, é a cerca de Martin Heidegger. Heidegger no seu principal livro Ser e Tempo (1927), explicita que o pensamento ocidental esqueceu da questão principal que sustenta todas as demais, O que é o ser? Isto porque, nós apenas tratamos do ser do ente, ou seja, do ente enquanto ele mesmo e não da totalidade, que nos levaria a perguntar como o ente aparece através do ser mesmo. Tal questionamento era feito, de acordo com Heidegger, pelos pensadores originários, como Parmênides, Heráclito, Anaximandro, etc. Contudo, com Platão procurando explicar como podemos estar seguros diante do movente, tudo que a gente se depara nesse mundo são imagens de uma Ideia fixa e imutável, onde está o verdadeiro conhecimento. Assim, ocorreu o primeiro esquecimento do ser, porque começou a tratar somente do ser do ente, da Ideia, e não do ser mesmo, promovendo o conhecimento dos oh, entes, surgindo à ontologia. A seguir com Aristóteles a ontologia tornou-se categoria de estudo da filosofia primeira, que ainda detinha a teleologia: o estudo da causa primeira e a teologia: o estudo do divino, sendo tal formulação, nos anos seguintes, denominada como metafísica por tratar das coisas que situam além da física. Com o cristianismo apoderando de tal pensamento, o adequou à doutrina promovendo o esquecimento do esquecimento, e a cada época o ser do ente fora interpretado de maneira diversa: cogito, objetividade, espírito, vontade, etc.

Com isso, Heidegger procurar recolocar a questão do sentido do ser através de uma analítica, que apenas seria concernente ao ente que coloca a pergunta pelo ser: o homem. Contudo, esta denominação de "homem" encobre a condição originária deste ente, porque está carregada de pensamentos metafísicos, com isso, Heidegger indica como ser-aí (Dasein) o modo originário de esse ente comportar no mundo. Isto porque, o ser-aí, nós, é o único ente que compreende o seu ser e o ser em geral e age de acordo com essa compreensão. Nisso, Heidegger define o conceito de existência e promove existência somente ao ser-aí, todos os demais entes, pedra, árvore, cachorros, Deus, apenas são. Com isso, não se trata de uma analítica qualquer, mas de uma analítica existencial que procura mostrar as estruturas existenciais do Dasein: compreensão, disposição, discurso e de-cadência. Sendo que essa analítica que procura delimitar os estágios importantes para a construção da ontologia tradicional e assim, desenvolver uma ontologia da finitude, pois não parte de um ente supra-sensível, e sim do ente no qual está inserido no tempo e se move dentro âmbito, temporalizando as coisas e a si próprio. Nisso, um método que fornece essa condição é necessário para desmontar todo pensamento metafísico até então e salientar para a diferença ontológica entre o ser e o ente, o método qual serve para Heidegger realizar a sua analítica é o da Desconstrução (Destruktion).

Uma das primeiras desconstruções destina a separação cartesiana entre o homem e o mundo, que, seguindo a filosofia medieval, para Descartes é mais fácil de conhecer a mente do que o corpo, visto que a mente está em estreita ligação com a alma e doravante a Deus. O que não acontece com o corpo e com o mundo. Entretanto, Heidegger escreve que nós somos no mundo, ou seja, antes de qualquer suspensão ou dúvida se há ou não um mundo, já nos movemos no mundo, porque enquanto Dasein somos seres-no-mundo. Este construto ainda nos leva a considerar a outro fator existencial, que ao sermos-lançados no mundo compreendemos sermos-com (mitsein) os outros e junto-as (bei-dem) coisas. Sendo que nossa ligação com os outros e com as coisas estabelecerem dentro do campo significativo e referencial do mundo, pois nós apenas lidamos com as coisas que são encontradas inseridas num campo referencial que nos conduzimos. Assim, na medida em que nos ocupamos, como assistir a um filme, para nós temos apenas referência e significado os utensílios que nós usualmente precisamos para o entretimento, como, sofá, cadeira, TV, DVD e o filme. Do mesmo modo é diante da disposição afetiva relacionado com o mundo que convidamos outros seres-aí que nos indica o aumento de nosso afeto que está inserido na abertura do nosso "mundo".

Dentro dessa ocupação, o Dasein manifesta sua autenticidade e inautenticidade que corresponde ao modo como agimos de acordo com nós mesmos e com o impessoal, dentro desta relação entre o si-mesmo ou com o impessoal é onde podemos responder a questão do suicídio. O ser-aí autêntico é aquele que na de-cisão sempre escolhe a si-mesmo, ou seja, suas possibilidades de ser diante da própria liberdade, enquanto que o inautêntico deixa que o impessoal escolha para si-mesmo o que não quer escolher, pois toda escolha promove um rompimento exercido pela de-cisão e o faz para atentar para a possibilidade da impossibilidade da existência, ou seja, a morte. Pois somos seres-para-morte, ou seja, estamos sempre com a morte entre as nossas possibilidades o que radica que a morte não é algo que virá, mas já está em nós a todo o momento. Por isso só o autêntico está ciente dessa condição e, com isso, o faz mover no mundo sempre com a principal disposição afetiva que abre o mundo ao Dasein, a angústia. Já que, a angústia desvela o dis-tanciamento (na interpretação heideggeriana dis-tanciar significa retirar o intervalo entre uma coisa a outra) do Dasein para o mundo e promove a compreensão que não há nada que o sustente e fundamento, porque o Dasein é sem fundamento; Deus é uma compreensão ontológica ausente no mundo, por isso o homem (Dasein) não pode ser sustentado por tal idéia, nem mesmo na fé, já que ela não consegue ultrapassar o mundo.

Assim, o suicídio seria uma forma de o ser-aí poder escapar da autenticidade que traria a angústia de ser-para-morte, que diante das possibilidades concernente a de-cisão dentro do instante promovendo a angústia de estar sempre em débito com os outros, pois como ser finito nunca poderá completar toda a relação com o outro. E se Heidegger não escreveu um tratado ou estabeleceu normas para uma eticidade, através dessas considerações podemos analisar que o aniquilar a si-mesmo não seria um agir ético, mas uma fuga do si-mesmo que prefere o nadificar das possibilidades a exercê-las no âmbito livre de ser-no-mundo.

Último ponto corresponde à filosofia de engajamento de Jean-Paul Sartre. Sabe-se que o livro sobre a moral que fora prometido não veio a ser escrito, mas podemos a partir de avaliações sobre a obra escrita estipular uma linha de pensamento ético-moral e assim apontar uma resposta para a questão aqui tratada. Sartre no primeiro momento do seu pensamento foi influenciado pela fenomenologia de Husserl, pela ontologia hermenêutica de Heidegger e pela dialética hegeliana que resultou na primeira obra de cunho filosófico: O Ser e O Nada. Cujo subtítulo, ensaio de uma ontologia fenomenológica, explicita a intenção deste filósofo de apresentar considerações acerca do homem em apreender o mundo na sua manifestação, e dentro das observações, procurar as determinações das coisas mesmas. Sartre retirou da filosofia de Husserl, a intencionalidade da consciência para explicar os modos do homem conhecer o mundo, não como algo separado de si, mas que acontece a todo instante, num simples visar, através das modulações noéticas e noemáticas. Assim, a consciência não detém algo em-si, mas ela é para-si, ou seja, sempre está querendo completar o que já e sempre é... Nada. Enquanto os objetos encontrados no mundo já são, em-si maciços não movimenta para se completar, pois já possuem seu Ser.

No segundo momento da sua filosofia, Sartre se aproxima da história e do marxismo. O indivíduo que no primeiro momento estava quase no solipsismo, procurando a complementação falha da consciência no mundo pelos seus atos. Agora o indivíduo é carregado para o confronto com a história e as situações que o definem, ele tem que se engajar com os outros para só assim poder encontrar a atitude livre de ser absorvido pelas condições que o procurem definir, ou seja, a complementação da consciência agora não é apenas um modo de visar o mundo, e sim de ir encontro ao mundo e requisitar as condições para um desenvolvimento profícuo das particularidades. Apesar destas diferenças, há um fio condutor que liga esses dois momentos na filosofia sartriana: a liberdade. O homem está condenado a ser livre. Esse paradoxo é a base da antropologia existencial que dos primeiros escritos, como o romance a Náusea, até o livro-panfletário, O que é Literatura? Faz-se presente tal temática.Pois como o homem é livre, ele está a todo o momento escolhendo e desta atitude não pode se furtar, porque a não-escolha já é uma escolha, visto que pela junção liberdade e escolha advém ao indivíduo a responsabilidade. Responsabilidade para com qualquer conseqüência e, principalmente, para o que o homem advém a ser, com isso formando a humanidade na qual está inserido. Isto significa que, o homem através das escolhas, provenientes da liberdade, define como seja a humanidade. Eis sua maior responsabilidade. Assim, toda ação traz um eticidade que vem procurar a definir o homem.

Se ao homem escolher a si mesmo significa escolher a humanidade. Podemos dizer que o suicídio para Sartre concerne numa ação que o homem diante da liberdade escolhe aniquilação da humanidade, porque ele não morre sozinho, mas sempre com outros e diante do contexto no qual parte e para a situação que procura defini-lo. Assim, o suicídio é sempre coletivo, não um ato individual, e na procura de legitimar o ato livre não pode ser considerado como ato ético, mas um modo de se pertencer ao mundo. Um pertencimento, claro, definido pela ausência de ações. Contudo, se durante o ato está formando a humanidade, o suicídio nunca será uma ação de responsabilidade, mas na verdade de fuga dela, é o não querer a liberdade. Que, como Sartre ilustra em o Ser e o Nada, a liberdade é como um homem parado na beira de um penhasco olha para baixo e sabe que há nada o impedindo de pular, aí prefere afastar-se para não deparar com sua própria condição. Não há nada que o define, simplesmente suas ações constroem um sentido. Porém é quando estamos sempre na beira do precipício que podemos realizar as escolhas mais propícias para a formação da humanidade e o suicídio é uma forma drástica de se afastar de vez dessa situação livre e negar a responsabilidade que procura legitimar os homens.

Portanto, os pontos que aqui foram apresentados tiveram ao todo o resultado de que o suicídio nunca vem a denotar um ato ético que a pessoa possa estar propícia a realização, mas um extremo de negação de si mesmo e do mundo, que ao fim de todas as condições sempre fornece uma forma de não executar tal ato. Porque, diante do mundo e das suas ausências, apenas no enfrentamento com os outros e na legitimidade dos modos de ser é que compreenderemos as saídas de determinadas situações. No entanto, quando a pessoa está esquecida do seu não-fundamento e num determinado momento em que advém esse esclarecimento, o suicídio aparece como caminho diante das imprecisões ditadas pela vida. Enquanto, aquele indivíduo que antecede a morte entre as possibilidades que cada vez são manifestas no seu poder-ser interpreta a vida como maior meio de ser preenchido por qualquer desconforto. Assim, esse indivíduo torna apto a poder sempre ao final afirmar: "Era isto a vida? Pois bem, mais uma vez!"


Autor: Thiago Dantas


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