O Travesseiro Da Wilma



Wilma, ontem, às 14:30,ligou e disse: acabei de me dar um tiro. Tinha a voz pastosa, percebia-se que estava chorando. Não achei que fosse brincadeira. Achei que estivesse, sim, numa crise federal de auto-piedade, porque, é bom que se saiba, ainda que os motivos que levem ao sofrimento não sejam reais, a dor é real.

Na verdade ela não ligou pra mim. Ela ligou para o Pedro.

Como ele estava no banho, a mulher dele me pediu para atender o celular.

Tipo de notícia que, por telefone, num domingo à tarde...

Ainda mais de uma mulher que,se eu vi 3 vezes na vida foi muito...

Mas já era moeda corrente na casa que às vezes a Wilma ligava, descompensada, e pedia ajuda para o Pedro, o que aborrecia um pouco a mulher dele, mas afinal o Pedro é terapeuta, não dela, mas terapeuta e além de amigo, sensível à essas reações humanas, que não raro, por um motivo ou por mil, perdem o prumo.

O ponto x da questão é que as provas que passamos não tem o mesmo aviso que as provas colegiais, onde os alunos sabem, por exemplo, que quarta de manhã tem prova de biologia. A gente não. E eu continuo aluno, só que recebendo provas surpresa. E neste dia a prova foi para todos. Inclusive para Wilma.

- Olha, Wilma, o Pedro agora não pode atender, você está bem, está sangrando muito...? – além de eu não saber o que dizer, havia a suspeita de que aquilo fosse chororô de deprimido querendo chamar a atenção. Minha situação nessa historia é a seguinte: recém separado e montando casa nova, enquanto as coisas não se ajustam estou morando na casa deles, Pedro e Tânia, que é um casal muito amigo e nota pra lá de 20. E na medida que o tempo linear avançava, a Tânia – esposa do Pedro, agora com a pulga atrás da orelha, conjeturando na minha outra orelha,me restou a presença de espírito, que assim equacionou: se for mentira... e a Tania nem me deixou terminar, se for mentira ela vai ver só... mas se for verdade, uma vida pode ser salva.

-Wilma, onde você mora?

Anotei tudo, eu conhecia a rua, era ali perto.

Chegamos tarde, ainda que não deu nem tempo para o Pedro se enxugar, pois numa carreira fomos para lá. Ocorre que havia o sobrinho da Wilma.

O sobrinho foi o canal desta bem sucedida ação de resgate, que teve a intimidade e a audácia de pular o muro da casa, amarrar a tia com o fio do abajur – porque ela não queria ir, porque ela dizia que estava tudo ótimo...- e levá-la ao hospital mais próximo.

Nós não teríamos tido, ou assim penso, tamanha audácia.

Wilma é alcoólatra. Não estava bêbada na hora do "incidente", estava em surto. Havia de fato, bebido mundos e fundos na noite anterior. E tomado calmantes.

O ex-marido e um dos filhos, um rapaz de 19 anos, que lá chegaram 2 minutos depois, conversaram com o Pedro, disseram inclusive que ela, ano passado,havia tentado ingressar na irmandade de Álcoólicos Anônimos, apenas para apaziguar familiares, que depois checaram que se ela assistiu duas reuniões, foi muito. O Pedro não sabia.

"Ajuda-te a ti mesmo, que eu te ajudarei", disse o Senhor da Luz.

Alcoolismo, parece, é considerado o detentor da triste equação: "maior índice de causa provável de morte no Brasil". Sendo que este mesmo Brasil, segundo soube, foi alvo de um puxão de orelha da ONU em 2006, em virtude dos esforços nacionais em produzir/divulgar/incentivar o uso de bebida alcoólica.

Tudo isso fui aprendendo na ida de carro ao pronto-socorrro,dos lábios do ex-marido da Wilma, que naquele instantenos contava as histórias da irmandade de AA. Pedro um pouco já conhecia, mas em silêncio ouvia.

Então, concluí, o que existe para compensar a oferta da loucura? De um lado, burrice, falta de informação, preconceito. De outro, AA. Simplesmente a maior ONG do mundo, com 4 milhões de membros e cerca de 150 mil grupos pelo globo. Ainda não tive tempo de ler a história de AA, mas, por exemplo, no livro Dr. Bob e os Bons Veteranos, você vê ali uma aula de intuição, coragem e boa vontade que eu, particularmente, nunca tinha sequer suspeitado, ao menos no hemisfério ocidental.

Quando chegamos no primeiro hospital, depois de estacionar o carro, o ex-marido da Wilmaficou sabendo que o sobrinho, na pressa, se confundira, que estávamos no lugar errado, devendo pois, nos dirigir ao certo. O Pedro, mudo, apreensivo. O ex-marido falante, naquele fraseado que não é prosa mas antes, e quase, uma função fisiológica, uma defesa supra-orgânica para enfrentar o cinzento da situação e não pensar no filho, no banco de trás ao meu lado, mudo, impávido, mas com os olhos marejados.

E o ex acrescenta, a segunda maior ONG do mundo se chama Green-Peace, e tem 200 mil membros.

Wilma foi hospitalizada às 15 horas, tendo entrado em cirurgia algum tempo depois.

Curiosas as entrelinhas da vida. Era o mesmo hospital onde, quase 20 anos atrás, estava eu fazendopapel igual ao que o da família da Wilma (exceto o ex-marido) estava fazendo agora. Apontando o dedo. Porque quando não se tem consciência de um problema,quase sempre tratamos dele com ignorância e os frutos dessa ação, mais cedo ou mais tarde, caem bem em cima da nossa cabeça.

O circo estava armado,com irmãos e irmãs, cunhados e cunhadas, todo mundo com seu prego na mão para marretar a mão alheia na cruz, o Pedro no meio da turba explicando que já havia ligado para a terapeuta dela, mas o celular estava fora de área, o Pedro e sua imensa boa vontade tentando amainar ânimos e tonificar desânimos.

A Associação de Psiquiatria, tanto a Canadense, quanto a Americana, relatam em seus estudos que o alcoólatra nãotem defesas mentais capazes de protegê-lo da compulsão pela garrafa. Outro dado interessante, das mesmas fontes: o alcoólatra não quer fazer aquele monte de bobagens que acaba fazendo quando alcoolizado. E mais: alcoolismo é doença incurável, catalogada e reconhecida há décadas pela OMS, sendo ainda uma das raras doenças auto-diagnosticáveis, ou seja, só você pode dizer para si mesmo se é ou não.

Quando o Pedro voltou do velório, me viu no computador, digitando. Trocamos olhares, palavras não cabiam.

A Wilma deixou 2 adolescentes.

Para que ninguém ouvisse o estampido, ela colocou um travesseiro entre o cano da arma e a região do abdomem, talvez para não chamar atenção. A bala perfurou o fígado.

Depois ligou pro Nelsom, pro Pedro, pro ex-marido, porque, talvez, houvesse mudado de idéia.

Mas a idéia se plasmou.

Quando você joga uma pedrinha na água, nota-se os círculos se propagando, trivial fenômeno das partículas em reação.

O pequeno furo no travesseiro da Wilma ainda nem começou a revelar seu impacto.


Autor: Bernard Gontier


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