Bastava uma cascata colorida



Bastava uma cascata colorida

 

Foguetes são foguetes, fogos são fogos.

 

Com esse raciocínio tautológico, de propósito aparentemente retórico, Luca Matéria buscou despertar a curiosidade de um grupo de pessoas, com quem acampava na praia, debaixo da ponte, na noite escura do réveillon.  Noite escura, porque as luzes estavam longe, do outro lado do rio, do lado da cidade grande. Debaixo da ponte, porque ameaçava garoar, e havia peixe para assar ao moquém.

 

O raciocínio, na verdade, foi o pontapé inicial de uma explanação daquilo que mestre Luca via implicado na queima de fogos, e no espocar de foguetes, ao influxo das festas de fim de ano.  

 

À meia-noite, olhando o clarão que irrompia à distância, ele disse: se bem que alguns estudiosos, com inteira razão, descubram nas festas do réveillon vestígios de um ritual arcaico de passagem, penso não ser intempestivo notar que o ritual, vale dizer, a tentativa paradoxal de segmentar o indivisível fluxo do tempo, deva enlaçar apenas o minguado instante em que uma data cede lugar a outra.

 

Isso quer dizer o que? perguntou um rapaz, assoprando as brasas do moquém.

 

Quer dizer que os rituais devem sempre guardar relações de proporcionalidade com a representação que se deseja celebrar. Pelo menos é esta a lição tradicional. As primitivas uniões sexuais ritualísticas, que acompanhavam as  festas da semeadura, por exemplo, transcorriam lenta e iterativamente, porque a fecundação  da terra representava ser um processo lento e iterativo. O ritual carnavalesco, a seu turno à exceção do baiano, naturalmente dura em torno de três dias, tendo em vista, ao que tudo indica, ser esse um tempo razoável, para despachar as petições da orgia  acumuladas durante o ano. Por outro lado, consideremos o batismo.  O ritual do batismo é sumário, porque a representação  celebrada, no caso a troca do estatuto  pagão pelo cristão, irrompe imediatamente após  o sacerdote pronunciar o comando éfeta, ou o candidato mergulhar no ribeirão.  

 

Perdão, mestre, mas já vi batismos se prolongarem pelo dia todo, com banquete, dança e outros festejos.

 

Na verdade permita-me reparar você não viu nenhum prolongamento.  O batismo começa e termina lá mesmo, no ribeirão, ou na pia batismal.  O que você viu banquete e dança não se inscreve no âmbito do mistério religioso, mas caracteriza procedimentos mundanos, estruturados em outro tipo de espaço e em outra dimensão de tempo. Se me permite a comparação, o batismo seria como a novena; a dança e o banquete, como a quermesse. Entendeu?

 

Entendi, mas aonde o mestre quer chegar?

 

Boa pergunta. Não quero chegar a  lugar nenhum, senão ao conhecimento de que, para guardar coerência com o instante mágico e fugaz da troca dos tempos, na noite do réveillon, bastava queimar um fogo, apenas um, quem sabe uma cascata colorida que simbolizasse a nostalgia do passado e a esperança do porvir.

 

Pelo que entendi, mestre, o senhor acha desnecessário queimar toneladas de fogos durante quinze, vinte minutos ou mais. É isso?

 

Desculpe, mas não se trata de ser necessário ou desnecessário. Trata-se, antes de tudo, de ser incoerente, brutal e imoral. Incoerente porque ignora, ao arbítrio de interesses políticos e comerciais, o princípio da proporcionalidade do ritual com a representação celebrada; brutal, porque a queima desproporcional se repete por toda parte, multiplicando o exagero, e poluindo estupidamente o ar já sobremodo castigado pelas emissões ordinárias; imoral, porque, além do desperdício e da agressão ambiental, transforma o engenho subjetivo e sutil da troca dos tempos   numa longa, pesada, fumarenta, vulgar e monótona  exterioridade.  Enfim, um abuso de lesa-consciência.

 

Dito isto, mestre Luca fez uma pausa e reivindicou um prova do peixe.

 

Negativo, mestre, peixe só depois que o senhor nos falar dos foguetes. Afinal as palavras são suas  foguetes são foguetes, fogos são fogos pilheriou uma senhorita muito gentil.

 

Mestre Luca sorriu com a gentileza da mocinha, deu-lhe razão de fato o peixe ainda pedia mais calor mas ponderou que talvez não houvesse tempo. O tema dos foguetes era extenso e sinuoso.  Ficava para o próximo acampamento.

 

De todos os modos, não querendo decepcionar, achou por bem classificar os foguetes em dois grupos. No primeiro alojou aqueles espocados antes da meia-noite, os quais denominou formais, visto que desempenham o nítido papel de arautos dos festejos. No outro grupo, acomodou os artefatos detonados depois da meia-noite, os quais chamou de líricos.

  

Foguetes líricos, mestre ?

 

Sim. Não encontrei melhor designação.

 

Então explica pra gente, vai.

 

Luca Matéria explicou que na noite do réveillon quem não fica em casa toma rumos diferentes. Muitos buscam pontos  convencionais, como praias, clubes, bares e restaurantes. Alguns, porém,   simplesmente saem por aí,  madrugada adentro, cativos espontâneos das tendências noturnas, ao encontro do que possa afagar o seu estado de espírito.  Nessa atmosfera, se calhar por que não? soltam foguetes.     A esses foguetes, largados pelo caminho como escombros do primeiro grupo, agora castos de toda malícia, isentos de qualquer interesse, à margem de qualquer codificação,   Mestre Luca  credita o mérito de exprimirem o verdadeiro sentimento da inquietação  humana diante do inexorável fluxo do  tempo, vale dizer, de exprimirem o que de melhor, de mais autêntico,  a noitada  do réveillon pode oferecer.

 

A designação de líricos, destarte, objetiva colocar esses foguetes anímicos sob a digna tutela da poesia, em todo caso da Poética de Manuel Bandeira, que revelou ao mundo um novo tipo de lirismo, o lirismo dos bêbedos.

 

Às quatro e cinquenta e cinco   da manhã, finalmente, a ceia foi servida. A fome e o delicioso paladar do peixe impuseram um instante taciturno a todos os comensais. Recesso  compreensível, porquanto, conforme esclarece Machado de Assis, a discrição é muita vez uma questão meramente gastronômica.

 

Nisso, subitamente, no silêncio da mastigação, saltam de uma fulgurante lancha que passava rio acima, com pessoas no convés, cantando e dançando marchinhas de carnaval, meia dúzia de foguetes madrugadores.   

 

O riso foi inevitável. Todos riram à volta do moquém. Não havia dúvida,  eram foguetes líricos, era uma lancha lírica, tão líricos quanto a aurora que raiava, tão líricos quanto a alegria de viver.  

 


Autor: Osorio De Vasconcellos


Artigos Relacionados


Virada Do Ano Na Iália

Viver

A Noite De S. João: Quando O Porto Se Veste De Festa

Longe Dos Olhos

Space Camp Brasil

Reveillon Sangrento

Passagem De Ano Em Espanha