O ESTATUTO DA PSICANÁLISE: A LUZ DA NEUROCIÊNCIA
Teresinha Augusta Pereira de Carvalho
O fato da psicanálise tratar da subjetividade da mente (a psique), capturando no consciente o aparelho psíquico e lidando com conceitos abstratos para fundamentar sua empiria (observações das afecções mentais e as estruturas psíquicas: neuroses, psicoses e perversões), Freud fundou o estatuto teórico dessa ciência a Psicanálise- a luz das ciências da sua época. Há de considerar, para o bem da própria ciência contemporânea, que no entanto, a psicanálise e a neurociência já estiveram muito próximase o seu ponto de ligação foi Sigmund Freud. Ele iniciou sua carreira como neuroanatomista e neurologista e, até o fim da vida, manteve a convicção de que os fenômenos mentais possuem um substrato biológico. Trabalhou nos laboratórios do fisiologista Ernst Brücke e do neuroanatomista e psiquiatra Theodor Meynert, e atuou com neurologista no hospital geral de Viena. Antes de criar a psicanálise, escreveu monografias sobre a paralisia cerebral infantil e sobre a afasia.
Todos háde constatar que Freud, do começo ao fim de sua obra, (até porque foi um neurologista), tentou inserir a psicanálise no âmbito das ciências da natureza. Ou seja, nem no início da sua obra nem em momento algum posterior dela, Freud descarta a participação dos elementos biológicos na necessidade da descrição dos fatos anímicos que ele pretendia descrever e, nem tão a hereditariedade. "A hereditariedade na etiologia das neuroses", ele afirmava que a nossa opinião sobre o papel etiológico da hereditariedade das doenças nervosas deve decididamente basear-se num exame estatístico imparcial, e não em petições de princípio".(Freud,1896). Não era de uma hereditariedade genética como hoje pensa, masera uma teoria segundo a qual, dentro da natureza, haveria dispositivo de purificação dos erros e das taras da raça; ou seja, não era apenas numa biologia darwinista, mas ele tinha também uma concepção lamarckista da transmissão; ou seja, certos elementos importantes para a espécie, que pudessem, por acaso, ser assimilados num certo momento histórico se transmitiriam de geração em geração. O seu mestre Charcot era grande estudioso da histeria, um homem que tinha um projeto de demonstrar que a histeria é uma doença neurológica como as outras, colocando, no corpo da sua teoria, a idéia de que o elemento principal na histeria seriam essas famílias neuropáticas e que todos os demais fatores etiológicos seriam apenas causas incidentais, os agents provocateurs. Então era mais ou menos esse o panorama psicopatológico dominante na virada do século XIX para o século XX, quando Freud entra no debate: alegava que o fator hereditário está presente, na condição de precondição. Essa precondição vai atuar de maneira patogênica ou não, segundo o contexto, segundo as coordenadas existenciais daquele indivíduo. Então para a gente poder entender a incidência desse fator biológico, a priori herdado na organização do fenômeno psicopatológico, é necessário compreender a inscrição dessa herança num certo contexto, que é ao mesmo tempo simbólico, histórico e cultural.
Com o advento das neurociências, neste século , chegou o momento de reinserir a psicanalise no rol das ciências naturais(com mais precisão, biológicas). Assim, a observação dos comportamentos manifestos do inconsciente, através de suas afecções psíquicas, far-se-á pela observância dos fenômenos biológicos do corpo-mente e, de modo especifico do funcionamento do cérebro. Ora, aceitando os paradigmas das ciências naturais (biologia evolucionista, neurobiologia, neuro-anatomiae a biologia molecular e genética), então a apropriação (digo teórica) do aparelho psíquico fica concebido como um sistema neurobiológico, de tal maneira que os sintomas psicopatológicos podem ser verificados(verificabilidade empírica) pelos acontecimentos/eventos psicosomáticos e não permanecerem a nível semântico. Reafirmando a nova interlocução "neurociencia-piscanalise", citamos Kandel: "A neurociência moderna representa a fusão da biologia molecular com a neuropsicologia, anatomia, embriologia, biologia celular e a psicologia... O objetivo futuro é produzir uma psicologia que embora ainda relacionada às questões de como as representações internas são geradas com a psicodinâmica e os estados subjetivos da mente estejam solidamente embasados na neurociência empírica".(Kandel, 1997. p. 4). O próprio neurocientista Edelman (1992) acata e defende a teoria freudiana dos processos inconsciente quando cita: "Freud foi a figura mais importante entre aqueles que sublinharam o papel dos processos inconscientes no nosso comportamento e sentimentos"(p.208). Ele prossegue, "No seu 'Project for a Scientific Psychology', Freud tentou dar uma explicação neuronal explicita da relação dos processos conscientes e inconscientes com o comportamento.....A existência do inconsciente é um princípio fundamental e unificador das teorias psicológicas (grifo meu) deFreud" (p.209).
Para ressaltar o posição da psicanalise a luz da neurociência, faz-se necessário a referência ao Projeto para uma psicologia científica (1895), que Freud escreveu e foi publicado postumamente com a intenção de tornar a psicologia uma ciência natural.Trata-se de uma teoria geral do psiquismo humano, escrita em uma linguagem neurológica.O respectivo projeto baseia-se em modelos da termodinâmica, ainda muito rudimentares de conhecimentos neurocientíficos da época. O neurônio já tinha sido descrito anatomicamente poucos anos antes, por Cajal e Waldeyer, mas, em 1895, essa descoberta ainda era cercada de muita controvérsia. Face a dificuldade teórica, Freud construiu uma neuropsicologia extremamente especulativa e, talvez pela falta de uma base empírica sólida, tenha decidido pela não-publicação da obra. Entretanto, algumas dessas especulações são hoje consideradas antevisões espantosas como por exemplo: Freud imaginou a existência de "barreiras de contato" entre os neurônios, o que corresponde diretamente ao que Sherrington iria descrever e chamar de "sinapse" em 1897(dois anos depois do projeto); descreveu mecanismos de "facilitação" da transmissão da energia nervosa na formação das memórias., que em Edelman trata-se de "reentradas"(**). Muitos autores encontram no projeto diversos conceitos e modelos que agora são adotados pela ciência cognitiva e pela neurociência computacional.(Artigo publicado originalmente em: Neurociências, 1(3): 191-196, 2004).
Bem, a relação entre a neurociência e a psicanálise é um debate central do pensamento contemporâneo, cuja a questão fundamentalé uma nova concepção do que formao inconsciente. Sabe-se que os comportamentos que se remetem aoinconsciente podem ser facilmente transformados em estados conscientes 'o pré-consciente' e também àqueles que só com grande dificuldade podem ser transformados ou pelo menos ser de todo 'o inconsciente propriamente dito'. Pois, o próprio Freud afirmava que certos acontecimentos ameaçadores( traumáticos) ficam retidos na memória quase sem nenhum acesso à evocação consciente. Portanto, a noção de Freud do "recalcamento" é consistente com os modelos desenvolvidos por Edelman (1992) e Damásio(1993,1999) a cerca da memória. Diz Edelman quea distinção entre eu(ego) e não-eu(isso) exige a participação de sistemas de memória que ficam para sempre inacessíveis à consciência(sic). Assim, o termo recalcamento na neurociência é a incapacidade seletiva para recordar e estaria a recategorização(***) fortemente carregadas de valor. Pois, continua Edelman, dada a natureza socialmente construída da "consciencia elaborada"(conceito de Edelman*), do ponto de vista da evolução seria vantajoso possuir mecanismos de recalcamento das "recategorizações" que venham reduzir o acesso a estados ameaçadores. Deste modo a neurociência vem comprovando também as explicações psicanalíticas para a memória, para o sonho, para as lacunas da consciência entre outros, e, a psicanálise não precisa afastar da neurociência e nem tão pouco aderir ao modelo que ela propõe. Fala-nos Monah Winograd "Ao contrário, é preciso escutá-la como quem escuta um indivíduo que traz seu discurso para dentro da clinica e perguntar de uma só vez sobre a sua história, sobre a imagem de pensamento que ela sugere e sobre os saberes e ações inéditos que ela permite".(Resenha: Um Diálogo entre a Psicanálise e Neurociência).
Ao tempo em que o 'Project for a Scientific Psychology'desperta hoje interesse dos neurocientistas, é também é considerado um precursor da metapsicologia freudiana, contendo os principais conceitos psicanalíticos, como:"energia psíquica", "processo primário", "processo secundário", "ego" e "repressão". De modo que só foi possível compreender mais profundamente os artigos metapsicológicos de Freud após a publicação do projeto. Todavia há de concordar que ametapsicolgia freudianaé uma elaboração conceitual, que fornece uma explicação para as situações que se apresentam na experiência clinica, na tentativa de ser: a enunciação do inconsciente. Portanto, somente no setting da clinica psicanalítica é que o inconsciente deverá ser desvelado ou revelado.
Tentando trazer os principais conceitos psicanalíticos de Freud a luz da neurociência: 1. tomamos o conceito de "repressão" que é central na psicanálise. Trata-se de um mecanismo de defesa intrapsíquico que ativamente impede o acesso à consciência de determinadas representações mentais, consideradas indesejáveis ou inaceitáveis. Para Freud, não conseguimos nos lembrar de quase nada dos primeiros anos de nossas vidas em função da repressão da sexualidade infantil. Porém, nas últimas décadas, houve um grande progresso no conhecimento da neurobiologia da memória. As memórias, segundo Damásio(1993) podem ser classificadas em explícitas (ou declarativas) e implícitas (ou não-declarativas). As memórias explícitas representam informações sobre o que é o mundo, informações essas que são acessíveis à consciência, podem ser evocadas voluntariamente e expressas em palavras. Elas são processadas basicamente no hemisfério cerebral esquerdo, e estão relacionadas ao hipocampo e demais estruturas do complexo hipocampo, e ainda ao diencéfalo, ao giro do cíngulo, e às regiões ventromediais e dorsolaterais do córtex pré-frontal. Já a memória implícita refere-se ao aprendizado de como fazer as coisas. Expressa-se numa melhora de desempenho em uma determinada atividade, que se dá em função de experiências prévias. É um tipo de memória automática e reflexa, que não pode ser traduzida em palavras, e que independe da recuperação consciente das experiências que produziram o aprendizado. Há vários tipos de
memória implícita: memória de procedimento, condicionamento clássico, condicionamento operante, aprendizagem não-associativa, pré-ativação e memória emocional. Esta última, que consiste na aprendizagem condicionada de respostas emocionais a uma determinada situação, está relacionada à amígdala, sendo processada principalmente no hemisfério direito. Somente as memórias explícitas são passíveis de repressão ; as memórias implícitas de longo prazo, já são por natureza inconscientes. De acordo com alguns neurocientistas, os mecanismos neurobiológicos subjacentes à repressão estariam relacionados a uma desconexão funcional entre os dois hemisférios. Recordações afetivas dolorosas ou desagradáveis não teriam acesso ao hemisfério esquerdo e, com isso, não poderiam ser verbalizadas e se tornar conscientes. Possivelmente a região orbitofrontal direita, através de uma ação inibitória, teria alguma participação nesse mecanismo.
E ainda, os neurocientistas confere que não temos memórias explícitas dos primeiros anos de nossas vidas porque o hipocampo não se torna plenamente funcional até a idade de 3 ou 4 anos. Nesse período, a plasticidade neuronal com a formação de novas sinapses e a eliminação de outras atinge seu auge, o que poderia acarretar o apagamento de muitos engramas referentes às experiências precoces da criança.
As lembranças mais precoces do ser humano são principalmente emocionais e visuais. Essas primeiras lembranças são armazenadas no hemisfério direito, não podendo ser recuperadas verbalmente mais tarde na vida adulta.
Aceita-se,portanto asdescobertas neurocientíficas corroborando a teoria psicanalítica? O que a neurociência pode proporcionar à psicanálise? Deve-se buscar uma comparação entre as hipóteses formuladas pela psicanálise e os achados da neurobiologia?
"A psicanálise não tem o objetivo de desvendar os mecanismos fisiológicos do cérebro. Isso é função da neurociência. Mas os fenômenos que emergem desses processos físicos são objeto da investigação psicanalítica", diz o psicanalista brasileiro Yusaku Soussumi, da Sociedade Internacional de Neuropsicanálise.
Finalizando provisoriamente, pergunta-se: qual o estatuto da psicanálise a luz da neurociência?
Respondendo temporariamente: consiste em mostrar como é que a mente se inscreve no biologia.
Portanto defendo a tese de que o estatuto da psicanálise a luz da neurociência não de é de subordinação e nem de colaboração , mas uma caminhar para a síntese dos conhecimentos científicos contemporâneos com a missão de devolver a mente à natureza, sem abandonarmos o método cientifico.
(*) Edelman(1992) define dois tipos interconectados de "consciência: a) a Primária fornece um meio para relacionar o input presente de um individuo com os seus atos e recompensas passadas; ela é necessária à evolução da consciência elaborada; b) a Elaborada pela evolução de novas formas de memória simbólica e de novos sistemas que possam servir a comunicação e a transmissão social.; corresponde a aquisição evolutiva da capacidade da linguagem. Ela surge com o aparecimento evolutivo das capacidades semânticas e se desenvolve com o acesso à linguagem e à referência simbólica. A consciência elaborada está dependente da construção de um "eu" através das trocas afetivas intersubjetivas.( p.p 181-197)
(**)Em Edelman(1992,p.134) - Reentrant cortical integration mapas de grupos neurais, recebem inputs independentes e se comunicam entre si por intermédio de fibras nervosas que transportam sinais reentrantes de mapa para outro
(***) Na TSGN(Teoria da Seleção dos Grupos Neurais de Edelman(1992) explica como os processos psicológicos se relacionam com os fisiológicos e que o cérebro desempenha uma tarefa de 'auto-categorização' conceptual; ou seja fazendo corresponder categorias perceptivas passadas, com mensagens dos sistemas de valor, um processo que é levado a efeito pelos sitemas corticais capazes de desempenhar funções conceptuais.(Sic).
Autor: Teresa Carvalho
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