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Auto de Natal de um presidente pernambucano

Auto de Natal de um presidente pernambucano

Edson Silva

A riqueza literária brasileira dá asas para imaginação e ousa prever o futuro, ou pelo menos se aproximar dele. Quem pode garantir com alguma certeza, por exemplo, que o poema Operário em Construção, escrito em 1956 por Vinicius de Moraes, não estaria prevendo a vida do então sindicalista Luiz Inácio da Silva, o Lula, que nem gostava de política, mas por meio da consciência de classe acabou se apaixonando por ela, fundou o Partido dos Trabalhadores (PT), nos anos 80, e foi eleito duas vezes presidente do Brasil, em 2002 e 2006 ? Já nos anos 80, não profecia, mas relato quase jornalístico, a vida de Lula foi  lembrada na música Xote Bandeiroso, do Língua de Trapo, que trata da tomada de consciência do operário ante ao patrão, nos moldes da obra do Vinicius.

E o que dizer de Morte e Vida Severina, de 1966, quando Lula era apenas operário de metalúrgica do ABC paulista e nem sonhava ser sindicalista? A obra é de João Cabral de Melo Neto, pernambucano como o Lula, porém nascido em 1920, 25 anos antes de Luiz Inácio. A obra narra a história de Severino, um migrante do sertão para o litoral em busca de trabalho e dignidade. Reservadas proporções de tempo e história, bem que poderia ser a história do menino pobre de uma família de oito irmãos, abandonado pelo pai e com uma mãe de fibra que imigra, viajando 13 dias em pau de arara, até chegar em Santos, onde a família se radicou primeiramente e depois seguiria para o ABC.

O menino Lula se tornaria rapaz, seria o que mais se alfabetizou entre os irmãos, tornou-se torneiro mecânico, trabalhou em diversas metalúrgicas, tornou-se sindicalista, fundou o PT, disputou eleição para governador, deputado federal e cinco para Presidente da República, vencendo duas. Peço licença póstuma ao João Cabral para o Auto de Natal de um presidente pernambucano, que se segue e os negritos são estrofes originais do Morte e Vida Severina, ou Auto de Natal de Pernambucano. 

O meu nome é Luiz Inácio. Não tinha outro de pia. Como havia muitos Luizes Inácios. Por estas freguesias. Deram então de me chamar. Luiz Inácio de Eurídice.Mas isso diz pouco, pois nossa gente não é craque. Pelo menos em Mitologia. Garanto que não é a Eurídice de Orfeu e dou minha garantia. Como então dizer quem fala. Ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Luiz Inácio. Da Eurídice do Aristides. Lá de Garanhuns, interior de Pernambuco. Sétimo de oito filhos. Que igual aos meus irmãos. Somos muitos Severinos. Iguais em tudo na vida:na mesma cabeça grande. Que a custo é que se equilibra. No mesmo ventre crescido. Sobre as mesmas pernas finas. E iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta.   

E se somos Severinos. Iguais em tudo na vida. Morremos de morte igual. Mesma morte severina: que é a morte de que se morre. De velhice antes dos trinta. De emboscada antes dos vinte. De fome um pouco por dia. Mas, para que me conheçam. Melhor Vossas Senhorias. E melhor possam seguir a história de minha vida. Passo a ser o Luiz Inácio que em vossa presença emigra. Virei Lula presidente. Contra tudo o que se via e consegui melhorar muita coisa, como uma das ciganas do Egito previa. Enxergo daqui a planura. Que é a vida do homem de ofício. Bem mais sadia que os mangues. Tenha embora precipícios. Não o vejo dentro dos mangues. Vejo-o dentro de uma fábrica: se está negro não é lama,  é graxa de sua máquina. Coisa mais limpa que a lama do pescador de maré. Que vemos aqui vestido de lama da cara ao pé. E mais: para que não pensem que em sua vida tudo é triste, vejo coisa que o trabalho talvez até lhe conquiste: que é mudar-se destes mangues daqui do Capibaribe para um mocambo melhor nos mangues do Beberibe. Melhoria que aconteceu para muitos, após um migrante ter virado o presidente Lula! 

Edson Silva, jornalista da Assessoria de Imprensa da Prefeitura de Sumaré

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