GENTE DE FUTURO (TRABALHO ETNOGRÁFICO)



INTRODUÇÃO:

  

         Esta etnografia teve como objetivo exercitar a disciplina de Antropologia no Curso de Psicologia. Para isso,  foi observado o programa intitulado GENTE DE FUTURO,  que faz parte de um  projeto do Governo Federal,  desenvolvido em várias cidades do Brasil  no CRAS (Centro de Referência e Assistência Social). O programa beneficia adolescentes carentes e em estado de risco, numa faixa etária de 14 a 18 anos, com cursos profissionalizantes e diversas oficinas. Ele tem como  principal objetivo, retira-los da rua, ensinar-lhes uma profissão, capacita-los  e encaminha-los ao mercado de trabalho.

 

         A  sua produção foi feita por meio da observação em dias alternados, durante a segunda quinzena de  agosto e a primeira quinzena de setembro de  2008.

Os registros  foram escritos no  próprio CRAS, até o momento em que percebi que isso estava "incomodando"  os garotos.  A partir de então, registrava mentalmente  o que observava e em casa passava para o computador para evitar possíveis esquecimentos.

 

 

CARACTERIZAÇÃO DO AMBIENTE:

 

           Este trabalho foi realizado  numa cidade da Zona da Mata Atlântica  Mineira,   com uma população aproximada de 80 mil habitantes.

           O  CRAS (Centro de Referência e Assistência Social) está implantado  numa casa razoavelmente grande, de dois andares, porém muito modesta.   Logo na recepção já é possível perceber a simplicidade do ambiente.  Na parede,  nota-se  vários  cartazes manuscritos,  mencionando as normas internas. Para atendimento ao público,  é utilizado   um comprido e velho balcão. No andar superior,   encontra-se a secretaria, as duas salas de aula, cozinha, banheiro, área e sala de reunião. O banheiro é o mesmo para meninas e meninos. Por isso, um aviso num pedaço de cartolina  (ocupado/livre) fica pendurado na porta. Passando pela sala de espera, chega-se a cozinha, que é simples e muito limpa. Cada usuário recebe orientação para lavar o copo que usar.  Saindo da  cozinha existe um pequeno pátio cimentado,  que dá acesso aos canteiros que estão sendo preparados (de acordo com o projeto)  para ser  uma horta.

 

  

A OBSERVAÇÃO E OBJETIVO DO PROGRAMA " GENTE DE FUTURO" .

  

           O Projeto GENTE DE FUTURO, tem como proposta qualificar e capacitar adolescentes carentes de escolas públicas com freqüência escolar mínima de oitenta por cento e encaminha-los ao mercado de trabalho. O Programa tem parceria com a UFV (Universidade Federal de Viçosa)  e outros órgãos,  que disponibilizam estágios para os alunos. Durante o projeto,  eles participam de várias oficinas, tem aulas diferenciadas teóricas e práticas.

           Na minha observação, foquei apenas duas  aulas. A Primeira Aula De Informática e a Aula de Cidadania e Ética.

  

OBSERVAÇÃO

         Entrei  numa sala com aproximadamente 10 carteiras. A sala estava vazia porque os alunos do projeto estavam numa atividade extra;  participavam de uma oficina sobre reciclagem de papel no CAMPUS da UFV. Embora  o meu objeto de estudo fosse  o grupo de alunos, aproveitei o momento para observar com maior tranqüilidade aquele ambiente.

           Na parede próxima ao quadro, estavam afixados  alguns cartazes feitos com recortes de revistas, abordando temas sobre família, honestidade, alimentação correta, paz, dizeres bíblicos e muitos avisos.

           Entre os avisos, alguns  destacavam-se dos demais, pois continham letras maiores e proibiam brincadeiras que envolvem contato físico, outro proibia  a entrada de qualquer tipo de objeto, pois o projeto disponibiliza todo o material para as atividades ministradas na instituição.

           Depois  voltei para a  " sala de espera" ,  onde algumas mães também já  aguardavam para conversar com a psicóloga coordenadora do projeto. Enquanto esperavam, trocavam informações sobre os filhos que freqüentam o programa, bem como os benefícios proporcionados por ele.  As mães que ali aguardavam, tinham aparência muito humilde, trajavam-se com muita simplicidade e trazia no rosto uma expressão de sofrimento e preocupação. Uma delas, enquanto conversava,  mantinha  a mão na face, despertando uma espécie de  piedade.  " Graças a  Deus meu mínino ta aqui, esse dinheirim ajuda dimais"  

           A outra que procurava uma vaga para o filho, a quem ela chamou de revoltado, falou: " Pena que num tem mais vaga, tinha que abri mais, isso aqui é tão bão pra eles pará de pensar  bobage, pensar em droga e a gente ainda ganha um dinheirim que  ajuda muito em casa ".  Neste momento,  ficou  evidente  o interesse das mães  pela bolsa que o filhos recebem,  ao participarem  do projeto,  e ao mesmo tempo ficou visível a ausência paterna.

            Cada participante do GENTE DO FUTURO recebe como ajuda de custo 100 reais mensais. Mas para freqüentar e receber este valor, é necessário 80 por cento de freqüência na escola e a mesma freqüência no programa, senão perde a bolsa. Isso faz com que as mães estimulem os seu filhos a participarem com a maior  assiduidade possível.

 

 

           Na sala de espera, nota-se   muitos pensamentos de escritores conhecidos,   escritos em pedaços de cartolina afixados nas paredes. Dentre eles:  "Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem ".

"Me  ame quando eu menos merecer, pois é quando mais preciso." (Mário Quintana)

         Na parede  que dá acesso 'a cozinha, lê_se " Não importa saber se a gente acredita em Deus, importa saber se Deus acredita na gente." (Mário Quintana)

         Enquanto aguardávamos,    os alunos retornam  da oficina de reciclagem da UFV  e passam pela sala de espera. Desses, alguns já foram presos e cometeram vários delitos.

Nota-se que quase todos usam brincos, tatuagens,  bonés, colares artesanais  e roupas simples.  Dois deles,   demonstram uma certa vaidade, tem um corte de cabelo bem rente, bem baixinho, usam roupas e  tênis velhos, porém   limpos. Os demais usam chinelos e aparentam um certo desleixo.

         É impressionante como estes garotos tem um semblante duro, frio  à  primeira vista. Percebe-se que depois de alguns minutos de conversa, eles vão " baixando a guarda"  vão se " "desarmando ". Em alguns alunos, durante  brincadeiras feitas entre eles, é possível flagrar um  belo e surpreendente sorriso,  esfacelando o semblante duro, carrancudo, muitas vezes aparentando muito mais idade do que realmente se tem. 

         Na hora do intervalo, eles fumam,  alguns   praticam  brincadeiras agressivas, do tipo: torcer o braço do outro, ou dar uma gravata, dar " cascudos" , chutes etc. Este tipo de procedimento é proibido e está explícito em vários cartazes.   No pequeno pátio conversam animadamente sobre seus gostos musicais, vida noturna, relação familiar, drogas e diversos assuntos. Um deles diz: " Eu apanhava do meu pai com pauladas véi, depois que fiz 13 anos ele nunca mais me bateu. Aí passei a reagir , véi. Hj ele num me incara mais não. Ele sabe que si vier pra cima de mim, tem troco, véi." Quando percebem a minha presença passam a falar em código. Utilizam expressões que não consigo entender.

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1Cascudos: Expressão usada em algumas regiões para se referir a  batidas com a mão fechada   na cabeça de alguém

 

 

PRIMEIRA AULA DE INFORMÁTICA

                     A sala de informática contém vários trabalhos   com gravuras feitos por eles,   afixados nas paredes. Nota-se em quase todos os cartazes,  o desenho ou figuras femininas. Algumas com mantos e  luz, como se fossem santas, outras retratando a mãe.

           Os equipamentos disponíveis são apenas dois e mesmo assim funcionando de forma  precária, com a tela tremendo o tempo inteiro. Quando os 6 alunos entram na sala, a primeira pergunta que fazem ao instrutor quase em uníssono é: "Tem internet?  Quando o  professor responde que não, percebe-se a decepção do grupo.  Mas parecem esquecer rapidamente e passam a demonstrar grande interesse pelos computadores, mesmo estando funcionando tão precariamente.

 

           O instrutor de informática, um jovem aluno voluntário do curso de agrimensura da UFV, explica os primeiros passos para a utilização do equipamento.

Enquanto ele fala, os alunos riem conversam e nem sempre conseguem acompanhar as explicações.  Estão curiosos, querem explorar, "fuçar" do jeito deles aquela novidade. Alguns estão tocando num  teclado e mouse pela primeira vez.  

 

 

           Foram divididos em 2 grupos. A e B. O grupo B, embora com apenas três alunos, é mais indisciplinado. Ele é  "comandado" por um aluno de porte físico meio franzino,  porém com muita autoridade e rispidez  na voz. Ele vai tentando descobrir jogos e outras coisas, enquanto o instrutor chama a atenção, sem sucesso. Um aluno coça a cabeça constantemente numa demonstração de impaciência.

O professor não desiste. Ele foi preparado para ter paciência pois já tinha informação sobre os alunos. E assim convence aos adolescentes sobre como fazer um texto no programa WORD. Assim que recebe as instruções, começam a escrever. Um deles pergunta: Iscrevê o que fessô? O professor respondeu  O que vocês quiserem.

No grupo A,  um aluno dava sugestão, o outro,  no teclado as vezes concordava, outras vezes não, no final escreveram " CV Comando vermelho pode crer"  " PCC BOLADO"

TCP  Terceiro Comando Puro  Só os loucos me acompanham" .

 

           No grupo B, mesmo com a insistência do professor, o aluno continua "comandando"  o grupo e não concorda em revezar o mouse com os colegas.  Ele é o menor dos três, mas exerce  uma espécie de liderança sobre eles.  No texto do Word, escreve: " PCC, nóis troca tiro,morre, mais num corre, ta ligado?"

         Num dado momento, um aluno do grupo A, diz: "Fessô dexa nóis fazê alguma coisa  aê, um desenho, alguma coisa que num seja letra".

Era visivelmente a impaciência dos alunos com a produção de textos. 

 

         A curiosidade do grupo com relação ao equipamento era muito grande para ser represada naquele momento, para ser contida na criação de um texto. Eles queriam explorar mais aquela máquina, pareciam estar diante de um brinquedo sonhado e ganhado na noite de natal. Os risos  entusiasmados, embalavam cada  clique  que parecia novidade.

 

           O "líder" do grupo B com um tom de brincadeira  disse ao instrutor:" Fessô, tem as manha de arrumá um  desse pra mim não? Mais eu quero com internet viu , véi?" Todos os outros riram

muito,  e um deles,   até lhe deu  pequenos "cascudos"  dizendo  " 2  Aí cê acordô, né véi? "

         A aula prosseguiu entre brincadeiras e "azarações" entre os dois grupos.  Ao final, quando o instrutor disse que o tempo havia se esgotado, que a próxima aula seria apenas na semana seguinte, todos eles reclamaram, pois queriam continuar nos computadores. Para tanta curiosidade a ser explorada, a próxima aula parecia muito  distante.

O líder do grupo B disse: " Ah fessô, dexa nois ficá mais um poco. Tirando os clipes, essa é a única aula que presta"

Os outros riram como se concordassem com o comentário dele.

Mas a aula estava encerrada.

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2 Expressão usada como uma espécie de gíria, para demonstrar que a pessoa está sonhando, delirando.

 

AULA DE CIDADANIA E ÉTICA

 

         Para essa aula foram  utilizados vídeos e clipes gravados por bandas vindas da periferia e que fazem grande sucesso nas favelas cariocas. Geralmente estas bandas,   abordam temas como drogas, violência, pobreza, aborto, etc

         Durante o clip, os seis  adolescentes cantavam junto, batiam nas carteiras acompanhando o ritmo da música. Conheciam praticamente todas as letras das bandas apresentadas. Uma das músicas  mencionava o poder de Deus.  Assim que terminou a música, o professor iniciou um debate sobre o que é Deus e a importância Dele na vida de cada um dos presentes.  No começo, ninguém se manifestou. Eles se entreolhavam, mas nada diziam. O professor insistiu: "Gente, eu quero ouvir a opinião de vocês. Vamos falem". Como nenhum quis ser o primeiro a falar, o professor se dirigiu a um deles e perguntou: "Fulano o que é  Deus para você? Você acredita em Deus?"   As respostas foram surpreendentes   O garoto respondeu orgulhosamente: "Claro que acredito fessô, já levei quatro tiros e não morri, só pode ser Deus que livrô a minha cara". Depois da primeira resposta,  os outros  se animaram e começaram a contar de forma entusiástica as suas experiências com Deus. Todos os 6 presentes naquele momento, tinham uma história em que foram livrados de uma morte violenta, ou conheciam alguém, que fora salvo,  pela vontade de Deus.

         Em seguida, o professor começou a falar sobre a ética, honestidade e caráter. Um dos alunos interrompeu a aula e disse,  numa fala meio arrastada: "Ética fessô, é comida no prato, um pisante  novo  e dinheiro no bolso, tipo o Beira Mar". Os outros concordaram e começaram um debate caloroso sobre o ídolo *(Fernandinho Beira Mar).  Cada um contava com mais propriedade e admiração  a vida pessoal de um dos grandes  líderes  do tráfico de drogas. Os adolescentes conhecem  detalhes e pormenores da vida do traficante. As mordomias e privilégios que ele tem na prisão,  o nome da noiva e até a data programada para o casamento, ainda na cadeia. Sabem os nomes dos principais "assessores" dele e a "caridade"  que ele faz junto á favela, distribuindo cestas básicas, remédios,  butijão de gás e  outros "serviços".

 

           O professor ouviu sem recriminar a opinião do grupo, mas mencionou os riscos que envolvem o caminho das drogas e as vantagens de ser um " cidadão de bem" .

         Depois voltou a questionar a turma, dessa vez,  sobre os seus ideais e os seus sonhos. Para esta questão, não hesitaram em responder pois já estavam mesmo "aquecidos" com a pergunta anterior. E mais uma vez, as respostas surpreendem: Um dos garotos, que apresentava mais simplicidade e um olhar tímido, respondeu: Meu maior sonho, fessô,  é trabalhar fichado  e comprar um fugão a gás pra minha mãe. 

Os outros  riram,  mas percebia-se um certo respeito pelo desejo do colega.

Alguns sonham com celulares, tênis, internet. 

         Um dos garotos num tom de zombaria disse: "O meu é conhecer o "Beira"  e entrar pras boca"

O professor fez uma intervenção e  disse: "Pessoal , eu to falando sério, sobre esta questão dos sonhos, da meta de vocês".  Os garotos faziam muitas brincadeiras e azarações. Mas em meio a tudo isso, percebia-se o desejo real pelo Celular, tênis, internet...

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3 Traficante carioca, atualmente preso. Já passou por  penitenciárias de vários estados.  Mesmo preso, de acordo com a polícia, continua liderando o tráfico em algumas favelas cariocas.

4 fichado: Expressão usada para se referir ao trabalho com carteira  assinada pelo  empregador.

 

 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

         Neste trabalho o principal objetivo foi o de observar e descrever  com o olhar de "estranhamento" o envolvimento e a interação dos adolescentes participantes do Programa GENTE DE FUTURO. O Programa, que  para mim, era apenas um nome e se resumia em mais um curso profissionalizante,  passou a ter voz, ação, prática e emoção.

 

         Nesta observação, pude fazer maior aproximação com os participantes do projeto e  perceber quão fortes são as simbologias, sonhos e códigos que de certa forma, unifica o  grupo.                        Desde o sonho do tênis novo, do celular  ao trabalho fichado com salário fixo.

         Em alguns momentos me emocionei com frases simples, ditas em tom de brincadeira, mas que camuflavam uma sinceridade estonteante;   sonhos modestos, mas que para aquele grupo parecem tão distantes e muitas vezes inatingíveis.

 

         Diante deste trabalho, cheguei a conclusão que os sonhos são latentes das mais diferenciadas formas. Penso que qualquer pessoa que tivesse observado o grupo,  perceberia como o sonho e a sua concretização,   muitas vezes,  pode estar intrinsecamente ligado a mais simples oportunidade. Oportunidade esta,  que nem  sempre é   disponibilizada  por uma sociedade que cobra normas, condutas e padrões de comportamento.  Percebe-se,  que tudo o que esses adolescentes precisam,  é de, repito mais uma vez,  oportunidade. De acesso ao  trabalho, educação, lazer e  saúde, para que possam fazer jus ao nome do projeto e ser  realmente  GENTE DE FUTURO.

 

 

 

 

 


Autor: Denise Salles


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