Da colonização à identidade: A formação identitária baiana, em "Luanda Beira Bahia" de Adonias Filho.



Emanuela Mendes Kruschewsky**

RESUMO

O presente artigo objetiva analisar a obra Luanda Beira Bahia,do autor baiano Adonias Filho,tendo como linha temática a identidade cultura e formação identitária baiana.Deste modo, a obra vem confirmar a identidade presente escrita pelo autor,assim como,rememorar a identidade do povo baiano e do povo brasileiro.Buscando deixar explícitas as representações identitárias apresentadas na obra adoniana.

PALAVRAS  CHAVES

Identidade; formação; Adonias Filho.

Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas[...]A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. [...](trecho da Carta de Pero Vaz Caminha a El Rei de Portugal)

CONSIDERAÇÃO INICIAIS

O Brasil regional sofreu influências relacionados a geografia, economia, folclore e tradição deixando assim marcas,costumes e características desse Brasil regionalista.Dentro do Realismo, que procurou compreender valores e motivos de vidas, o regionalismo buscou inspirar-se dentro dessas características. O regionalismo é reduzido a sinônimo de localismo literário, a literatura regional explora e expõe formas tipicamente regionais.

Reafirmando Stwert (in Coutinho) regionalismo, em um sentido largo da obra é regional quando apresenta alguma região particular e definido mais estritamente que para ser regional, além de ter uma localização, mas também retirar substâncias reais desse local. O Realismo, com seu tom de verdade, fez com que se perdesse o sentimentalismo forte no Romantismo, sem deixar escapar as diferenças entre regiões como: tradição,tipos e linguagens que compõe o Brasil regional.

O regionalismo é um conjunto de retalhos que arma o todo nacional, na qual ocorreram contribuições indígenas, portuguesas e negras, fazendo um variante na identidade, sentimentos, línguas, costumes, religião. Na literatura regional o que importa são as regiões culturais ou literárias, constituindo assim ciclos nessa literatura. À proporção que a literatura brasileira se desenvolve, chega-se a certeza que a literatura se readquire sempre que está perto de suas raízes.

Dentro desses ciclos expostos por Coutinho, o ciclo nordestino sofria influência direta da literatura francesa, embora tais influências chegassem com alguns anos de atraso. O regionalismo, na prosa de ficção nasceu sob o entusiasmo do Romantismo, encontrando uma mistura entre naturalistas e realistas, deparando-se nos principais romances de autores nordestinos, um cruzamento de estilos e de tratamentos ora românticos, ora naturalistas. Composta por características como:

uma literatura mais descritiva e paisagística, do que psicológico-social; a prosa ficcional nordestina estava em perfeito contato com o início da formação literária brasileira.

O ciclo baiano iniciou-se por meio do ciclo da terra, voltando-se sobre o homem na representação de quase todos os aspectos de uma vida social e restrita, mostrando costumes e hábitos, condições sociais e políticas, o mundo baiano mostrou-se em todas as áreas. Assim conseguiu-se caracterizar, por meio do grupo ficcionista, o "romance baiano", tendo como início a terra, que é o eixo irredutível em torno do qual se concentra o panorama normal, o romance baiano apresentava como pano de fundo, figuras humanizadas, tramas ora comédia ora drama, aventuras, assim tornou-se uma narrativa flagrante, objetiva e direta.

Entre autores baianos destacam-se Jorge Amado sempre em função do sociologismo, romances com clima urbano, novelas e paisagens rurais. Mostrando o desbravamento da saga do cacau ou exibindo aspectos da cidade do Salvador (proletariado, drama dos saveristas, infância abandonada, presença dos negros) e esses personagens eram humanos e a humanização é desenvolvida de romance em romance, partindo dos tipos sociais. Outro autor é Adonias Filho, configurando-se com romances d sentido universal, sem embargo enquadram-se na moldura regional, tendo a terra como inspiração, personagens com sentimentos trágicos e penetrações psicológicas. Esses sentimentos caracterizam a relação entre o homem e a terra.

O escritor Adonias Filho oferece, em sua literatura sobre as raízes da civilização do cacau, muitos pontos em comum com Jorge Amado no que se diz respeito à construção do ideias a ela relacionada e a influência do tema da morte e emoções na contemporaneidade de parricídios, incestos, fratricídios etc. Em seus romances, como Os Servos da Morte (1946),Memórias de lázaro (1961),Corpo Vivo (1962), Luanda Beira Bahia (1971) e As Velhas (1975) ,as narrativas formam fios da trama,visões que ora se entrelaçam,ora se distanciam na construção do imaginário acerca de mortes trágicas.

A construção literária da identidade regional colaborou na formação de uma imagem dessa sociedade do cacau fez de si própria.A literatura regional passou a validar,no plano imaginário,a existência da civilização do cacau,contribuiu com alusões sobre a identidade regional,relacionadas as identidades nacional e baiana,sendo assim,vividas e criadas por muitos autores.Ao juntar ficção e história,a literatura foi de grande ajuda na construção de uma memória social.Sendo memória um fenômeno social influenciado pelas relações entre o sujeito que lembra e os fatos ocorridos.A memória,enquanto preservação de informações,é constituída por um conjunto de funções pelas quais o indivíduo atualiza fatos passados,vários episódios,com menos importâncias,serão esquecidos da memória individual.A memória é um elemento fundamental na construção da identidade individual e da sociedade.

1. De cultura em cultura: As várias misturas do Brasil.

Dentro da obra estudada, Adonias Filho, deixa um pouco de lado a saga regionalista do cacau e volta-se para o estudo de uma Bahia de suas tradições e raízes.O autor expressa seus personagens com características híbridas que retrocede a miscigenação das raças acontecidas em terras colonizadas.No decorrer da obra,pode-se perceber as representações identitárias brasileiras,um resgate da memória cultural da região cacaueira,referindo-se as diferenças étnicas culturais,uma ruptura com as origens e uma retomada à tradição.

Luanda Beira Bahia é um relato da origem brasileira, no qual o autor traça imagens da Bahia, Ilhéus,onde vive um dos personagens principais,Caúla,filho de descendentes de índios,"cabocla de Olivença era,filha daqueles índios."(p.14) e de descendentes europeus,"A cara sardenta e vermelha de galo de briga,a cabelaça alourada,azulão nos olhos[...]Parecia um gringo."(p.14).Depois do suposto desaparecimento do pai,quando criança,e da morte de sua mãe,ele decide virar marinheiro.Parte de Ilhéus rumo a Salvador,se apaixona por uma bela negra,decepcionado parte rumo à África,berço das culturas,chegando em Beira e depois em Luanda ,conhece e apaixona-se por uma africana,descendente de negros e europeus.

Apesar de suas viagens, em busca de sua identidade, Caúla jamais esqueceu esquece suas raízes em Ilhéus e, principalmente, da Jindiba:

Idade impossível de saber-se, talvez cem ou duzentos anos, teria visto a praia ainda selvagem, o Pontal com três choupanas e Ilhéus sem porto. Canos, remos nas mãos dos escravos e índios, o mar com a serenidade de um lago [...]. Uma jindiba,aquela árvore.As raízes vinham do chão,espalhavam-se como suportes,bases do tronco imenso que muito em cima,se abria em galhos e na copa gigante.(Adonias Filho,p.7.1997)

A Jindiba,árvore de origem africana,simbolizava para Caúla seu porto seguro,em alguns momentos de saudade e lembranças,a Jindiba vinha em seus pensamentos,"a árvore, que Caúla já aceitava como um pedaço de si próprio, conhecia o mar. As raízes na areia penetravam. Salgado o vento que movia as folhas." (p. 16).Essa árvore de tronco imenso,raízes profundas,copa gigante é para Caúla uma espécie de símbolo de tradição,seu vínculo com sua terra natal,Ilhéus.

A estória que Adonias Filho descreve, mostra o conflito que Caúla vive um dilema entre ficar em terra firme ou seguir o destino dos homens do Pontal, que tinham que escolher entre dois caminhos, o de ficar e desbravar as terras,comum nas ficções adonianas,ou de partir mar afora:

Os homens de Ilhéus, ali do Pontal e do Malhado, tinham apenas dois caminhos  dois caminhos e nada mais. Entravam matas adentro para o ventre das selvas ou saiam mar afora para os portos do mundo. Preferiam o mar, os brancos e os negros, os de sangue português e africano, enquanto os caboclos de sangue índio escolhiam os sertões. (Adonias Filho, p.19,1997)

Mas dentro de Caúla corria sangue caboclo e português, quem falaria mais alto?Afinal, filho de João Joanes que "tinha o doido sangue dos marinheiros herdado de pai, avô e bisavô." (p.14), uma hora ia querer ganhar o mundo, apesar de sua mãe sempre impedi-lo de seguir o destino incerto de seu pai:

- O mar, filho, é ruim  ela sempre dizia. A jindiba falasse e não diria o mesmo. A árvore, que Caúla já aceitava como um pedaço de si próprio, conhecia o mar. As raízes na areia penetravam. Salgado o vento que movia as folhas. (idem, p. 16).

A Jindiba sempre testemunhando cada dia daquela família, sempre presenciando os fatos, desde a construção da casa, o nascimento de Caúla e a espera de Morena por Sardento. A árvore, que ninguémsabia como chegara ali,sabia que um dia Caúla partiria pro mar,assim como João Joanes,

ela,a jindiba,sabia.E sabia que a mãe de Caúla achava ruim o mar porque tinha medo.O filho poderia tornar-se,como o pai,um marinheiro e sair pra nunca mais voltar.(p.23)

2.Luanda Beira Bahia:iguais,porém diferentes.

Cidades colonizadas por Portugal, Luanda, Beira e Bahia tem por características comuns a língua e alguns costumes similares. África, berço das civilizações, matriz negra e grande influenciadora na identidade cultural brasileira, contribui na formação identitária baiana. A Bahia sofreu, principalmente, influências portuguesas e africanas, e isso porque a cidade de Salvador perde o posto de capital federal, serva apenas de escala para contrabandos de escravos, troca de animais e mantimentos. Apesar desses escravos serem trazidos para o Brasil nesses termos,foram o alicerce para a criação da cultura popular baiana e brasileira.

Caúla quando freqüentava a escola onde aprendia Maria da Hora,sua professora negra que tanto se orgulhava,sobre os mares e continentes,abrindo sempre sua mão sobre a África,escutava histórias sobre os homens de Ilhéus,que se perdiam naqueles mares,na qual muitos homens embarcavam nos navios,deixando para trás suas esposas e filhos:"O mar levava os homens para muito longe.Voltavam alguns,quando voltavam,e outros desapareciam como se morressem."(p.7)Desde menino,o filho de Sardento,ouvia histórias sobre África,querendo ganhar mundo,como seu pai.Depois da morte de sua mãe,Caúla,sozinho no mundo,ouviu sua tradição familiar de que "o filho de João Joanes,o Sardento,tinha que ser marinheiro como o pai e aquilo era tão certo como Deus escolhe os melhores para o serviço do mar"(p.44).

As personagens adonianas são unidas pelas teias de um destino sempre trágico, sendo o destino, se torna um personagem no romance de Adonias, em Luanda Beira Bahiao autor narra por menores, elementos naturais como árvore, céu, terra, mar. E em busca do resgate de sua identidade, Caúla parte para o mar,tentando situar-sefora do seu limite de terra,Ilhéus (Pontal),sua terra de origem,conhecendo outros lugares do mundo,outros mares,partindo da "Velha Bahia"(p.49).

Adonias ambienta o romance em um território concebido de lugares e povodos que remetem ao desbravamento de Caúla por suas raízes desde Ilhéus e a Jindiba, onde nasceu e teve seu primeiro emprego como sapateiro era "um rapazinho de dezesseis anos em camiseta de meia e calças de brim"(p.16),depois chegando a Bahia,com seu casario avistado pelo mar,mas,do outro lado,na África,encontra-se Luanda:

a cidade que se alarga em avenidas e jardins,ruas e alamedas,limitada pelos morros que os fortes de guerra ocupam.As praças velhas de séculos,cercadas pelos sobradinhos magros e os casarões pesados,tão iguais às de Salvador da Bahia que até o calçamento é o mesmo.(ibidem,p.52)

É em Luanda que habita Iuta,moça mestiça,filha de angolana com brasileiro,trabalha em uma barraca em frente ao porto da cidade,na qual chegara seu pai e marinheiros de outros países.Mas,os navios brasileiros atracavam "raramente,assim de meio em meio ano."(p.54),brasileiros que falavam a mesma língua que os angolanos,mostrando assim uma irmandade entre os países.Além da língua,Adonias Filho põe em evidência ainda o mar é um elo de ligação entre essas duas cidades que tem em comum,além da geografia,o componente étnico negro.

Depois de decepcionar-se com Conceição do Carmo, mulher de vida fácil, "mulatinha de olhos verdes, cabelos corridos, seios grandes e coxas grossas [...]" (p.58). Caúla retorna a Ilhéus, depois de um tempo volta a Salvador e de lá parte para Luanda, tem uma breve passagem por Beira, tem um envolvimento com Maria-do-mar, ao chegar à cidade. Dentro das relações étnicas ocorridas na obra, a personagem é descrita com: olhos verdes, mestiça de pele macia e escura, cabelos corridos e acinzentados.

Na África, Caúla conheceu que as culturas baianas e africanas se entrelaçam "pedaços vivos desse mundo estavam na Bahia, as gordas velhas sentadas frente a tabuleiros e panelas de acarajés, negras de Angola [...]"(p.147).Com essas vivências de Caúla,permite a visualização dos espaços físicos da obra e das semelhanças híbridas entre as personagens,essas primeiras impressões do filho de Sardento mostram os pontos em comum no modo de vida entre brasileiros e africanos,demonstrando assim uma proximidade entre Luanda,Beira,afirmando a identidade cultural desses lugares colonizados por Portugal.

CONCLUSÃO

O presente artigo visou o estudo da formação identitária baiana na obra Luanda Beira Bahia mostrando o ponto de vista do autor Adonias Filho, usando como pano de fundo o amor trágico de Caúla e Iuta, um jovem brasileiro e uma jovem africana, ligados pela dor do abandono do pai, a morte das mães e um encontro que colocaria fim a suas vidas, o reencontro com João Sardento.

A formação da identidade Bahia começou com a chegada dos portugueses em terras tupis, na qual o envolvimento desses povos fez com que surgisse uma nova raça, nomeada de caboclo. Mas, além de chegarem ao Brasil, os portugueses já estavam colonizando a África, países como Angola e Moçambique, ex-colônias lusitanas, lá nasceu a miscigenação de brancos e negros, os mulatos.

REFERÊNCIAS:

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DECCA, Edgar Salvadori de. Tal pai, qual filho?Narrativas da Identidade Nacional. In: CHIAPPINI, Lígia; BRESCIANI, Maria Stella (orgs.) Literatura e cultura no Brasil: identidades e fronteiras. São Paulo:Cortez,2002.p.15-27.

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Autor: Emanuela Kruschewsky


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