Bico e a Bota Encantada



BICÓ E A BOTA ENCANTADA

(Contada por Bicó, morador do Araçatuba do Limão - município de Maués-AM.).

 

As estórias de botos encantados, Curupira, Matim e Juma, são comuns no interior e fazem parte do folclore do povo. Dizem que a curupira é um pequeno animal com formas humanas, toda pelada e com os pés para trás. É por isso que não consegue seguir os rastros do homem, andando sempre no sentido contrário. Costuma aparecer nas estradas de pau-rosa1. Para capturá-la, basta colocar um espelho junto a uma garrafa de cachaça no local por onde ela passa. É tiro e queda, ela adora se olhar no espelho e aprecia uma pinga.

Já o Matim é um espírito. Sente-se apenas sua presença através de seus assobios extremamente agudos. Comenta-se que os matins são pessoas que sofrem uma metamorfose. Só saem à noite e principalmente nas noites de sextas-feiras.

O Juma é, segundo relatos de cabocos, um enorme homem, de grande estatura e muita força. Carrega consigo um grande cacete que usa para caçar, se defender ou atacar seus inimigos. Já os botos, estes sim, transformam-se em seres humanos e costumam ir às festas para conquistar as meninas mais lindas e de preferência, virgens, deixando-as morrendo de paixão. Mas não são só os botos que aprontam das suas, as botas também assediam os homens, fazendo com que eles enlouqueçam por elas, e se não se pegarem a um bom curador2, ficam loucos ou encantados.

No Rio Araçatuba do Limão, adjacência de Maués aconteceu a história de uma bota que a noite se transformava em uma bela loira e ia até a rede de um caboclo morador do local.

Quem presenciou toda a trama foi Bicó, um caboclo que conhece e já viveu estórias sobrenaturais. Acostumado a dormir dias e dias na mata, Bicó é um exímio caçador e conhecedor de todos os mistérios da floresta.

Conta que nessa casa à beira do rio, morava uma família. Pacheco, um dos membros da casa, era um rapaz novo e inexperiente. De um certo tempo, sem motivo aparente, começou a ficar pálido, mudando totalmente seu comportamento. Sempre arredio, não conversava mais com outras pessoas e sempre que ia pescar, dispensava a companhia de amigos.

Vale registrar que as casas no interior não possuem cômodos, apenas um salão e um barracão anexo, onde fica a cozinha. Cercadas e cobertas de palha, cujo único cômodo, abriga toda a família que dorme em suas redes. A partir de um certo dia, o rapaz deixou de dormir dentro da casa, indo atar sua rede no barracão da cozinha. Cada vez estava mais estranho e com visível aparência de doente.

Bicó com a pulga atrás da orelha, desconfiou do comportamento do rapaz e, em uma bela noite de luar, fingiu que ia caçar para observar toda a movimentação na casa, escondido entre árvores. Já pela madrugada, Bicó vê o rapaz se levantar da rede e caminhar em direção ao porto. Ficou boquiaberto ao ver o moço aproximar-se de uma bela mulher, que acabara de sair do fundo do rio.

Os dois se abraçaram demoradamente. Trocaram beijos, carícias e por fim, foram até a rede do rapaz, onde fizeram amor.

Terminado o ato, a bela loira rumou para o porto e caiu nágua. Em poucos segundos, boiou, já como um boto comum. Por sua vez, o rapaz continuou em sua rede, agora dormindo profundamente. Bicó ao desfazer-se do susto, voltou para dentro da casa, pensando numa maneira de livrar o rapaz do perigo de ficar louco ou encantado.

Segundo Bicó, a loira era a mulher mais linda que já vira, nem mesmo as belas mulheres que desfilam na Festa do Guaraná ou Festival de Verão se assemelhavam a ela. Diante de tanta beleza, seu apetite sexual tornou-se incontrolável, queria também provar daquela gostosura, precisava apenas arquitetar a forma de conseguir seu intento.

Pela manhã, usando sua astúcia de mateiro e com muita diplomacia, Bicó conseguiu ficar a sós com o rapaz. Depois de ter fumado mais de meia dúzia de cigarro porronca3 e muita conversa, convenceu o rapaz a repartir com ele a sua fêmea.

Anoiteceu. Lá estava Bicó com sua panema4 em ponto de bala, pois a última mulher que ele tinha provado5 foi a famosa Piaca e já fazia alguns anos. Durante todo esse tempo (em jejum), quem quebrava o seu galho, eram algumas ovelhas das fazendas vizinhas ou então, a maria munheca6.

No horário costumeiro, surgiu de dentro dágua, aquela linda mulher. Caminhou até a rede de Pacheco, se deitou com ele e fez muito amor. Terminado o ato, ela voltou para o porto e nesse momento surgiu Bicó que a agarra a força, dá uma rasteira, joga-a sobre a grama molhada e como um louco, pratica um ato sexual de forma selvagem, com gritos e sussurros desesperados. Depois desse dia, as coisas pioraram. O rapaz parecia louco. Vendo o seu estado agravar-se, Bicó contou aos seus familiares toda a história. Sabendo que o rapaz corria grande risco, o levaram para o Lago Pretinho do Canarana, onde morava a sacaca7 Maria Aluna que vendo o rapaz, já diagnosticou: Se não cuidarmos dele, poderá ficar encantado, pois doido ele já está e a bota quer levá-lo para o fundo do rio.

Foi marcada a noite para desfazer o encanto. Nessa noite a casa foi literalmente banhada com alho e sal grosso virgem. Foram necessário cinco homens fortes para segurar o possuído. Na hora h, o barulho de botos boiando no porto da casa, era inacreditável. Eram milhares, e ouvia-se passos ao redor da casa. Terminado o trabalho, a curandeira sugeriu que a família mudasse a sua morada do antigo lugar.

Bicó jura que o fato aconteceu de verdade e lamenta ter provado somente uma vez daquela loira boa e gostosa.

Nota: Pacheco foi encaminhado para Manaus onde recebeu tratamento psiquiátrico no hospital Eduardo Ribeiro. Recebeu alta por apresentar normalidade. Voltou para Maués, sofrendo recaída. Retornou para Manaus e novamente foi internado (no mesmo hospital), entretanto, não conseguiu a sanidade. Há mais de dois anos (março/2000) seus parentes não sabem de seu paradeiro, se é vivo ou morto. Informação oral prestada por sua prima que o internou.

 

 

Glossário

1.      Picada feita na mata por onde se transporta a árvore de pau-rosa. 2. Macumbeiro, rezador, pajé, sacaca. 3. É o fumo em estado natural, sem química, cujas folhas são prensadas e trançadas por uma linha até ficar no ponto de fazer o cigarro. 4. Aquele que não consegue êxito durante a pesca ou à caça, avarento, desafortunado, sem sorte. 5- Sentido figurado, quer dizer ter relações sexuais. 6. Masturbação (gíria). 7. O mesmo que curador (a).


Autor: Aldemir Bentes


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